Se tem animais, ou conhece quem os tenha, já deve ter visto ou ouvido falar daqueles cães ou gatos, por exemplo, que vão para perto da porta sempre que os donos estão a chegar. Rupert Sheldrake, originalmente bioquímico na área das plantas, interrogava-se sobre o motivo para isso acontecer e decidiu estudar o assunto. Para a experiência, usou o cão Jaytee e diz que o animal conseguiu antecipar a chegada da dona em mais de 80% das vezes. Como? Telepatia, afirma o investigador britânico.
O investigador francês René Peoc’h também apontou para a mesma resposta, mas, neste caso, com base num trabalho com coelhos. Mais especificamente, com coelhas irmãs criadas juntas e separadas aos seis meses. A experiência consistia em assustar uma das coelhas, medir as variações no fluxo sanguíneo e perceber se a irmã, que se encontrava a 23 quilómetros de distância, sofria as mesmas alterações. Tudo pelo poder do pensamento, que Peoc’h também tentou demonstrar logo na tese de doutoramento, entregue em 1986, sobre a suposta influência que pintos podem ter no movimento de robôs.
Sem animais, mas também na área da parapsicologia, o investigador Dean Radin testou a clarividência de um grupo de indivíduos, confrontados com fotografias de pessoas vivas e mortas. O artigo com as conclusões do estudo acabou por ser retirado pela revista científica que o publicou — já veremos porquê.
O que têm estes investigadores em comum? Foram financiados pela Fundação Bial, uma instituição nascida dos laboratórios farmacêuticos com o mesmo nome e com um objetivo que, para os não-cientistas, parece surpreendente: incentivar “o estudo científico do ser humano, tanto do ponto de vista físico como espiritual”. Será neste último que se enquadram os estudos mais peculiares: da transmissão de pensamentos à possibilidade de mover objetos com a força da mente, da capacidade médium às experiências de quase-morte, passando pela intuição, clarividência e outros fenómenos psíquicos, cabe quase tudo na lista das investigações que a Fundação tem financiado na área da parapsicologia. O presidente, Luís Portela, diz que é assim que deve ser. Para o médico, que é também chairman dos laboratórios, não existe qualquer incompatibilidade entre a ciência e a espiritualidade. Pelo contrário: defende que cabe, precisamente, à ciência explicar os fenómenos paranormais.
O problema é que, pelo menos alguns deles, não cumprem aquilo que, por regra, é recomendado a qualquer estudo científico. Não se sabe, por exemplo, quais são as instituições de origem dos investigadores (que, em tese, recebem o financiamento) e há trabalhos que não foram publicados ou os seus resultados partilhados para validação pelo resto da comunidade. Mais que isso, outros especialistas recusam algumas das conclusões, por falta de base científica.
Sobre as instituições e os resultados dos projetos, a Fundação Bial admitiu ao Observador que não tinha mais informação do que aquela que era disponibilizada no site, sobretudo para os projetos mais antigos. A instituição, que recebe dinheiro exclusivamente dos Laboratórios, também não especifica que financiamento foi atribuído a cada projeto, referindo apenas que podem receber um máximo de 50 mil euros.
Telepatia entre cães e donos? Investigação à investigação diz que não
O estudo
Entre 1998 e 2010, a Fundação Bial financiou vários projetos do bioquímico Rupert Sheldrake sobre a transmissão de pensamentos entre animais e humanos — como o estudo com o cão Kane, que antecipava a chegada da dona, ou o papagaio N’Kisi, que adivinhava as intenções da sua. Não será por acaso: o tema fascina tanto o presidente da Fundação que Luís Portela não se coibe de falar desse tipo de experiências nos seus livros e nas entrevistas que dá. Diz que os animais não fazem batota, explicando, assim, porque é que entende que a transmissão de pensamentos é a resposta mais viável.
Foi essa, aliás, a conclusão do estudo protagonizado por Jaytee, o cão, e Pamela Smart, a dona que se tornou parceira de investigação de Rupert Sheldrake, depois de se voluntariar com o seu animal para fazer parte das experiências de telepatia com cães.
O ponto de partida foi o mais simples: “Durante vários anos, Jaytee foi observado pelos membros da família de Pamela Smart a antecipar a chegada da dona com meia hora de avanço ou até mais”, escreveu Rupert Sheldrake, num artigo preliminar sobre a investigação, publicado na revista Journal of the Society for Psychical Research. “Jaytee parece saber quando Pamela Smart está a caminho de casa, mesmo quando mais ninguém sabe e mesmo quando ela regressa fora dos horários normais.”
Lançado o mote, o comportamento do cão passou a ser registado (pela dona e pela família), ainda que de forma parcial. Entre 1994 e 1995, foram registados apenas 63 regressos a casa. Em 55, Jaytee revelou sinais de antecipação, para os restantes há pouca informação. Para os momentos em que não houve reação, são apresentadas justificações possíveis — como uma tempestade ou o animal ficar inibido na presença do pai de Pamela Smart — , mas não há uma identificação exaustiva das reações de antecipação que foram registadas mas que acabaram por revelar-se “alertas falsos”.
Nas conclusões, Rupert Sheldrake rejeita que as rotinas da dona, o som de carros familiares ou a reação dos pais de Pamela pudessem influenciar a reação do cão porque ela voltava a horas diferentes, em carros diferentes e sem os pais conhecerem a hora de regresso. Para o investigador, a explicação mais provável é outra: “Jaytee podia estar a responder às intenções de Pamela Smart [de voltar a casa] de uma forma desconhecida da ciência”.
A ideia de que estaria perante um caso que a ciência ainda não conseguiu explicar seria aceitável, mas o autor não ficou por aí. Nas mesmas conclusões, Sheldrake acrescenta que “as reações de Jaytee podem ser descritas como telepáticas, psíquicas ou dependentes de um sexto sentido”.
As dúvidas
É por causa desta conclusão, alegadamente não sustentada, que se levantam vozes críticas. Um grupo de investigadores céticos duvidou dos resultados e decidiu estudar o mesmo cão. A conclusão foi no sentido oposto: “Nas quatro experiências realizadas, Jaytee falhou em detetar com precisão que Pamela Smart estava a voltar para casa”, lê-se num artigo publicado na revista científica British Journal of Psychology. Rupert Sheldrake contestou estas conclusões.
Carlos Fernandes da Silva, investigador na área da Psicologia, concorda que existem alguns fenómenos anómalos para os quais a ciência ainda não encontrou explicação e que é preciso estudá-los. “O que um cientista deve dizer perante uma anomalia é: ‘Vamos estudar’”, explica. Mas, para o investigador do Cintesis (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde), a regra deve ser colocar hipóteses, sem avançar teorias, como a telepatia. Até porque, garante, “todos os estudos experimentais bem feitos sobre o que chamam de telepatia mostram que não há transmissão de pensamentos”.
Do lado dos especialistas em comportamento e bem-estar animal, Leonor Galhardo explica ao Observador que nunca viu os trabalhos de Rupert Sheldrake publicados em revistas científicas na área da cognição animal e que, por isso, prefere usar as explicações para as quais existem vários trabalhos científicos publicados. Neles, não encontra a telepatia: “Penso que este fenómeno [de antecipação de chegada dos donos] tem a sua explicação em mecanismos de perceção dos cães e a sua capacidade de apreender a passagem do tempo”, diz a professora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa).
E quanto aos casos em que a chegada do dono não pode ser antecipada pela perceção do tempo, ou que o animal não o consegue ouvir ou cheirar, referidos por Rupert Sheldrake? A investigadora defende que os cães têm “diferentes mecanismos de perceção que permitem estabelecer uma relação prévia entre certos estímulos e o evento em causa”, mesmo quando esses estímulos parecem não estar relacionados. Leonor Galhardo lembra que os cães têm a capacidade de “aprender sinais ultra subtis”.
A investigadora portuguesa que quis estudar a telepatia em coelhos
O estudo
Ainda na área da telepatia, a Fundação Bial financiou outros projetos com animais, incluindo os do investigador francês René Peoc’h e daqueles que tentaram dar seguimento ao seu trabalho, como Carlota Saldanha, do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa.
A investigadora portuguesa colaborou numa experiência com Peoc’h e teve dois projetos financiados pela Bial, entre 2003 e 2008. Peoc’h colocava os coelhos a fazer telepatia: separava coelhas que tinham crescido juntas e assustava uma delas para ver se havia reação na outra. Depois, recolhia sangue dos animais e enviava-o para ser analisado pela equipa de Carlota Saldanha.
A equipa da especialista em Bioquímica analisava os níveis de cortisol — uma hormona libertada em situações de stress — para verificar se havia uma transmissão telepática do medo de um animal para o outro, com quem supostamente estabeleceria telepatia. Com os trabalhos que desenvolveu, Carlota Saldanha não conseguiu encontrar cortisol no cérebro, mas já não teve oportunidade de avançar com a investigação.
“Desliguei-me desta área. Tinha 30 pessoas a trabalhar para mim, tinha de dar aulas e a diretiva em termos de investigação era para outro tipo de coisas”, conta ao Observador. Além disso, os resultados que tinha eram poucos para conseguir uma publicação numa revista científica — foram apenas apresentados no simpósio “Aquém e Além Cérebro”, promovido pela Fundação Bial, em 2004.
As dúvidas
Em tese, o caminho da ciência passa sempre pela publicação, até para partilhar o conhecimento e permitir os contributos — ou argumentos contrários — de outros. E isso acabou por não acontecer, neste caso específico. Questionado pelo Observador, Nuno Sousa, membro do Conselho de Administração da Fundação desde 2010, esclarece que, nos projetos financiados pela Bial, os investigadores devem comunicar os resultados, seja em conferências, teses ou artigos, mas que “não é exigido que haja publicação em revistas científicas”. O investigador acrescenta que cabe ao Conselho de Administração acompanhar os projetos em curso, fazer aconselhamento caso se justifique e incentivar a divulgação dos resultados negativos.
“É um assunto apaixonante que gostava de explorar”, diz Carlota Saldanha sobre a linha de investigação que não teve oportunidade de seguir. “Não posso afirmar que é telepatia, mas acredito na comunicação à distância. Tudo tem uma razão química e só quando tivermos a tecnologia necessária é que vamos conseguir demonstrá-lo.”
A (irrepetível) experiência dos pintos que mudam a direção dos robôs
O estudo
René Peoc’h acredita na capacidade telepática dos animais, mas também acredita que têm outras competências psíquicas. Foi isso que, diz, encontrou nas experiências que juntaram um robô, que fazia movimentos aleatórios, e pintos recém-nascidos. Segundo o investigador, a força do pensamento dos pintos tinha a capacidade de influenciar o movimento do robô, tornando-o não-aleatório.
Num dos projetos financiados pela Fundação Bial, entre 1997 e 2006, Peoc’h colocava os pintos numa caixa transparente próxima da zona onde se movia o ticoscópio — o tal robô — com uma vela acesa em cima. Era essa a única fonte de luz na sala, com a função de atrair a atenção dos pintos. O investigador reporta que em 53 das 80 experiências, o robô passou a mexer-se mais próximo da caixa dos pintos. “O estado psicológico dos pintos e/ou a importância dada ao alvo [neste caso o robô com a vela] são os pontos-chave para que este fenómeno aconteça”, escreveu René Peoc’h. Numa outra experiência, o investigador deixou a sala iluminada, mas sem a tal vela, e os movimentos do robô não se alteraram por causa dos pintos.
As dúvidas
Por muito estranha que lhe pudesse parecer a experiência, José Santos Víctor, presidente do Instituto de Sistemas e Robótica (no Instituto Superior Técnico), aceitou analisá-la. “Sei que há áreas da ciência que ainda estão por descobrir”, diz o professor de Robótica. “Há ideias que não têm aceitação imediata, mas que vão fazendo o seu caminho e se vão consolidando.” Para José Santos Víctor, porém, é claro que o método científico deve ser usado com o mesmo rigor, mesmo tratando-se de uma área menos estudada ou de um trabalho preliminar.
Se é observado um fenómeno anómalo, para o qual ainda não há explicação, é natural que o cientista tente registar o melhor possível as observações que fez, para que outros cientistas possam repetir, comparar, acrescentar ou consolidar essas experiências. “Quando não há nenhuma teoria que explique o fenómeno, no mínimo tem de fazer-se um registo rigoroso“, diz José Santos Víctor. O investigador dá o exemplo de Darwin e dos registos que fez durante a viagem a bordo do navio Beagle. Foi este registo exaustivo que lhe permitiu chegar à teoria da evolução das espécies, mas que também fez com que pudesse ser criticado e validado por outros cientistas.
René Peoc’h, pelo contrário, não têm um registo rigoroso da experiência — pelo menos, que esteja publicado —, o que torna praticamente impossível que outros investigadores repitam a experiência nas mesmas condições e confirmem ou refutem os resultados alcançados. “Nada daquilo foi reproduzido”, diz o investigador. Para agravar, há relatos de que René Peoc’h não terá permitido que nenhuma pessoa observasse a experiência, alegando que essa presença (e da sua força do pensamento) iria influenciar os resultados.
O argumento não convence José Santos Víctor, que também trabalha com robôs com movimentos aleatórios. “Imagine se sempre que tenho um grupo de pessoas a olhar para a experiência isso influenciasse os movimentos do robô.” O investigador dá ainda outro exemplo: se esta teoria fizesse sentido, sempre que um grupo de pessoas está a ver um jogo de futebol ou de ténis poderia condicionar a direção da bola e fazer marcar um golo ou um ponto. “Não há nenhum princípio da Física que justifique isso”, conclui.
O artigo científico que foi retirado por falta de validade
Outros dos fenómenos paranormais investigados pela Parapsicologia e com projetos apoiados pela Fundação Bial é a clarividência — a capacidade de conhecimento direto, sem recurso ao raciocínio ou aos órgãos dos sentidos. Dito de outra forma, a capacidade de saber uma determinada informação sem a ver, provar, ouvir, cheirar ou sentir. Neste caso, a experiência do parapsicólogo Dean Radin pretendia perceber até que ponto as 12 pessoas estudadas conseguiam adivinhar se as fotografias que estavam a ver eram de pessoas vivas ou mortas.
Com apenas duas opções, cada pessoa tinha, para cada fotografia, 50% de hipóteses de acertar. O autor considerou que acertar 53,8% das vezes era um resultado significativo e abria portas à investigação na área da clarividência. Os resultados foram publicados na revista científica Frontiers in Human Neuroscience em maio de 2016, mas, cinco meses depois, o artigo foi retirado pela revista por “preocupações com a validade científica”.
“Os editores chefes concluíram que as descobertas e afirmações no artigo não foram suportadas pelo nível de evidência verificável apresentada”, escreve a revista na justificação da retratação do artigo. “Os autores [do artigo original] não concordaram com a retratação.”
O investigador norte-americano, Dean Radin, que está longe de reunir consenso na comunidade científica, já teve sete projetos financiados pela Bial desde 2011.
As instituições científicas que não existem e os conflitos de interesse
Um investigador não precisa de estar ligado a uma instituição científica para desenvolver um bom trabalho, mas José Santos Víctor não deixa de estranhar que um investigador se apresente sem instituição que o apoie ou que lhe proporcione um ambiente científico propício.
Ao investigar os projetos de Rupert Sheldrake e René Peoc’h financiados pela Fundação Bial, o Observador não conseguiu identificar as instituições de acolhimento apresentadas pelos investigadores. Nem Luís Portela nem a Fundação Bial conseguiram confirmar se as instituições científicas indicadas pelos investigadores existem (ou existiram em algum momento), alegando que poderiam ser suficientemente antigas para não haver registo digital das mesmas.
Nuno Sousa, membro do Conselho de Administração da Fundação, garante, aliás, que quem recebe o dinheiro dos projetos são as instituições de acolhimento e que nenhum dos candidatos recebe o dinheiro diretamente. Assim sendo, quem o recebeu?
Mais fácil de localizar foi o Institute of Noetic Sciences (INS), ao qual pertencia Dean Radin e outros investigadores financiados pela Fundação Bial. Neste caso, o problema que se levanta é outro: há investigadores do INS como candidatos ao financiamento do projetos, mas também entre os membro do Conselho Científico. Poderá esta situação constituir um conflito de interesses? Nuno Sousa garante que não. Quando este membro do Conselho de Administração faz a distribuição dos projetos pelos membros do Conselho Científico tem o cuidado de não entregar um projeto para avaliação nem ao seu autor, nem a uma pessoa da mesma instituição. Cabe depois ao avaliador alertar para não avaliar o projeto de um candidato com quem tenha trabalhado.
Porque é que a Fundação Bial financia estes estudos?
Investigar para esclarecer — e a crença do fundador
Temas como telepatia, clarividência ou psicocinese, podem fazer levantar o sobrolho dos mais cépticos, mas Luís Portela não vê nada de errado nos estudos que a Fundação Bial financia. Pelo contrário. O médico que lidera os Laboratórios Bial há 40 anos — e que viveu sempre rodeado de ciência — defende que cabe, precisamente, à ciência explicar os fenómenos paranormais. Luís Portela acrescenta que, para ele, não existe qualquer incompatibilidade entre a ciência e a espiritualidade.
No gabinete bem iluminado pelas janelas largas onde recebe o Observador, repete várias vezes que a ciência deve investigar, para distinguir o que está certo do que está errado. “A verdade, pela verdade”, diz Portela. Então porque é que a ciência não investiga mais esta área? O presidente da Fundação Bial arrisca uma explicação: “Quando a religião se meteu ao caminho, inquinou um bocado isto”, ao colocar a fé de um lado e a ciência do outro. E ele não vê razões para essa separação.
A conversa com o médico é, no mínimo, desconcertante, por causa desta viagem constante — e muito antagónica — entre a espiritualidade e a ciência. Ora se define como um homem da ciência, que defende o método científico, ora assume as crenças e convicções próprias de um espiritualista — e bate-se por elas. Pelo meio, explica-nos, por exemplo, que está convencido que cada um de nós é uma partícula de energia, crê na teoria das vidas sucessivas e acredita na força do pensamento.
São essas convicções surpreendentes, baseadas nas experiências que cita, que ocupam as páginas dos seus últimos dois livros. Garante, porém, que não as impõe a ninguém. “Não gosto de vendedores de banha da cobra. Não gosto de vendedores de ideias.” Mas não nega que gosta de partilhar aquilo que já viveu. “Já conheci muitas pessoas com características mediúnicas”, diz.
E também já teve um cão que o esperava à porta. “Meu filho, não precisas de dizer quando vens para casa. Minutos antes de chegares a casa, o Petit vai para o portão à tua espera”, conta Luís Portela, recordando as palavras da sua mãe sobre o São Bernardo da família. Mas, confrontado com outras explicações possíveis para esse comportamento, admite que “essas explicações até possam ser mais apropriadas”.
Parapsicologia: no limbo entre a investigação científica e a fraude
A Parapsicologia surgiu como tentativa de estudar fenómenos anómalos que a ciência não conseguia explicar, mas ficou “muito abandalhada” pelos movimentos “new age” e pela espiritualidade, explica ao Observador Carlos Fernandes da Silva, investigador no Cintesis, referindo-se aos grupos que orbitam em torno da ciência, que tentam aproveitar-se dela, mas que não são verdadeiramente baseados nos conhecimentos científicos. Por causa dessa conotação negativa, o investigador na área da Psicologia prefere usar o termo “psi effects”. Também defende que a ciência deve estudar as situações anómalas (também chamadas de paranormais) para as quais ainda não há explicação científica, mas faz uma distinção: o que não se pode é avançar teorias que não têm qualquer fundamentação científica.
“Há que reconhecer que alguma investigação feita em Parapsicologia desde o início do século passado não foi feita sob o rigor do método científico e que algumas pessoas caíram na tentação de demonstrar que não-sei-quê era verdade”, admite Luís Portela, que vê nisso o maior motivo para a ciência dever investigar melhor esta área, para distinguir o que é verdade do que é mentira. Diz que é precisamente porque “muita gente tem explorado a ignorância das pessoas” que é preciso que “se aprofunde estas áreas sob o rigor do método científico”.
Ao mesmo tempo, porém, defende no último livro que, “para o aprofundamento científico destes fenómenos”, “talvez se torne necessário um ajustamento do método científico, admitindo experiências diretas de menor objetividade”. Como explicar essa contradição? Ao Observador, diz que “são coisas que acontecem quando acontecem, de uma forma inesperada, por vezes os próprios nem se dão conta”, logo não se pode marcar hora e dia para serem estudadas. Ora, a ser assim, dificilmente um estudo será compatível com o rigor do método científico que Luís Portela diz defender.
Garante que está “convencido que, à medida que se for aprofundando o conhecimento, alguns dos fenómenos descritos vão ser assinalados como balelas, como fantasias”, mas, por enquanto, mantém a crença em muitas dessas teorias. Mais que isso, Portela acredita que a ciência ajudará, assim, cada pessoa a ser melhor na relação consigo e com o outro. “Estou convencido que a ciência nos mostrará a existência de energias não conhecidas ou menos conhecidas que farão com que o homem possa desenvolver todo o seu potencial à superfície da Terra, vivendo melhor quer em termos individuais, quer em termos coletivos.”
É isso, aliás, que defende nos dois livros que escreveu sobre estes temas e que o físico Carlos Fiolhais teve a oportunidade de ler e de debater publicamente. Ao Observador, o comunicador de ciência confessou que teve “dificuldade em lê-los, por nem sequer entender alguns dos termos utilizados” e lembrou que os dois livros “não são de ciência, nem de divulgação de ciência”.
No livro “Da Ciência ao Amor”, por exemplo, Luís Portela defende que cada um de nós é uma partícula de energia universal. Não lhe chama espírito nem alma, porque isso é uma discussão das religiões. Mas o uso do termo ‘energia’, embora faça lembrar o conceito de ‘energia’ usado em Física, também não está relacionado com a ciência, como assinala Carlos Fiolhais. “Não se percebe o que é essa ‘energia’. A afirmação de que ‘somos partículas de energia universal’, apesar de usar as palavras ‘partículas’, ‘energia’ e ‘universal’, todas elas palavras da ciência, nada tem de científico”, diz o físico. “Nem há, em princípio, problema nenhum nisso, uma vez que o ser humano tem dimensões para além das da ciência.”
Uma fundação criada para apoiar a investigação física e espiritual
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A Psicofisiologia tem uma abordagem psicológica do que acontece a nível fisiológico, ao nível das reações físicas do organismo. O que acontece ao organismo quando se muda a atividade mental, como ler, imaginar, fazer cálculos ou ser confrontado com estímulos? A resposta pode ser medida nas ondas cerebrais, no tónus muscular, na frequência cardíaca ou na sudação.
A descrição é feita pela própria instituição: a Fundação Bial, criada em 1994, “tem como missão o incentivo do estudo científico do ser humano, tanto do ponto de vista físico como espiritual”. Os meios financeiros e administrativos são assegurados pelos Laboratórios Bial e a parte científica está sob a alçada do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP). As áreas privilegiadas pela Fundação são a Medicina, Psicofisiologia e Parapsicologia, todas elas áreas de interesse de Luís Portela.
O neto do fundador dos Laboratórios Bial formou-se como médico e ainda exerceu durante três anos. Depois, tentou fazer um doutoramento em Cambridge, mas com a morte do pai e as ações da empresa na mão, teve de abdicar da investigação para assumir o negócio. “Na altura, tive muita pena, era um sonho de vida [fazer investigação em Parapsicologia].” Mas sentiu que não podia virar costas à obra deixada pelo avô e pelo pai, tinha de lhe dar continuidade e fazê-la crescer.
Com Luís Portela a liderar a empresa, os Laboratórios Bial decidiram que era preciso apostar na inovação e investigação farmacêutica. O departamento só arrancou oficialmente em 1992, mas em 1996 já tinham registado a patente daquele que viria a ser o primeiro medicamento português — um antiepilético que chegou ao mercado nacional em 2010.
O foco no desenvolvimento da empresa com base na investigação científica permitiu fazer uma aproximação da empresa às universidades. “Queríamos que os académicos portugueses percebessem que podíamos ter uma boa relação e que queríamos incentivar o bom trabalho que faziam”, diz Luís Portela. E foi também para incentivar o trabalho de investigação na área da saúde e o fazer chegar a toda a comunidade médica que o então presidente da empresa decidiu criar o prémio Bial Medicina Clínica, em 1984.
Este prémio distingue trabalhos originais e de grande qualidade na área da prática clínica, mas para médicos e investigadores com uma carreira mais consolidada. Os investigadores mais jovens e com trabalhos de investigação exploratórios pediam um apoio diferente. Foi assim que nasceram os Apoios Financeiros a Projetos de Investigação Científica e, simultaneamente, a Fundação Bial — porque era preciso haver alguma independência dos Laboratórios Bial.
A parceria com o CRUP e a presença de académicos no Conselho de Administração e no Conselho Fiscal da Fundação dava a garantia que os concursos para os prémios e bolsas seriam bem conduzidos do ponto de vista científico. O primeiro elemento designado pelo CRUP para ao Conselho de Administração da Fundação Bial foi Nuno Grande, médico e fundador do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS).
Após a criação da Fundação, era preciso definir que áreas de investigação podiam ser apoiadas, uma vez que era impossível apoiar todas as áreas da Medicina. “[Foi Nuno Grande] que propôs que apoiássemos a Psicofisiologia e a Parapsicologia”, conta Luís Portela. “Era uma coisa que não me passava pela cabeça”, conta ao Observador. Mas numa entrevista ao Porto Canal já tinha admitido este desejo: “Na altura que deixei a minha carreira, prometi a mim próprio que se um dia as coisas me corressem bem e se tivesse uns tostõezinhos a mais, procuraria criar condições para apoiar aqueles que iam fazer a investigação que naquele momento eu estava a optar por não fazer”.
Avaliadores garantem rigor dos projetos
Maria de Sousa, reconhecida imunologista portuguesa e antiga professora do ICBAS, substituiu Nuno Grande no Conselho de Administração da Fundação Bial, de 2010 a 2014. Nesse período foi “responsável pela implementação de uma rigorosa avaliação feita pelos membros do Conselho Científico e pelo encorajamento dos investigadores a publicarem em revistas indexadas”, conta ao Observador. Publicar em revistas científicas de qualidade, alvo de escrutínio, não foi bem recebido por alguns dos investigadores, pelo menos nos primeiros anos, mas com o passar do tempo a avaliação rigorosa que implementou foi mostrando os seus frutos. A investigadora lembra, no entanto, que “os resultados da introdução de uma nova atitude em ciência são lentos”.
O rigor da avaliação é frisado também por Nuno Sousa, presidente da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho, que substituiu Maria de Sousa no Conselho de Administração quando esta completou 75 anos. “As práticas da Fundação Bial correspondem às melhores práticas internacionais”, diz o neurorradiologista ao Observador. “Tenho à vontade para dizer isto. Tenho muito experiência na área [de avaliação de projetos].” Todos os projetos são avaliados, no mínimo, por duas pessoas e, se houver discrepância, é solicitado o parecer a um terceiro elemento.
Durante a execução do projeto são apresentados periodicamente relatórios científicos e financeiros, para que os órgãos sociais possam monitorizar a evolução dos trabalhos. Mas Nuno Sousa assegura que os órgãos sociais não têm qualquer influência nos resultados apresentados. Nem na avaliação, como refere Luís Portela: “É o Conselho Científico que analisa [os projetos] de uma forma absolutamente independente”. O presidente da fundação confirma que a decisão final é do Conselho de Administração, do qual faz parte — tem um voto em cinco. “Mas respeitamos o que o Conselho Científico diz.”
Luís Portela destaca não só o trabalho dos mais de 50 membros do Conselho Científico, mas também dos elementos do Conselho de Administração (passados e presentes), nomeadamente Nuno Grande, Maria de Sousa e Nuno Sousa. “Qualquer um deles tinha uma perspetiva aberta da ciência e, portanto, acharam que era bom que se pudesse investir nesta área [Parapsicologia e Psicofisiologia]”, diz o empresário. “Sempre percebi que, enquanto responsáveis da nossa administração, procuravam fazer um trabalho isento. O facto de não acreditarem muito na Parapsicologia não os fazia afastar as coisas.”
O presidente da Fundação Bial considera “perverso” que a Parapsicologia tenha sido empurrada para um canto pelas Neurociências e ciência em geral por causa dos erros cometidos. “Deviam ter dado a mão para ajudar.” E é com o objetivo de aproximar neurocientistas, parapsicólogos e bolseiros Bial, e de os colocar em discussão, que a fundação promove os simpósios “Aquém e Além do Cérebro”. “Um neurocientista terá, a meu ver, a beneficiar de conhecer as ideias mais fora do quadrado que os parapsicólogos têm. E os parapsicólogos só terão benefício em perceber o que os neurocientistas estão a fazer [por exemplo, em termos de metodologia científica].”