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Tigelas maravilhosas, Mulheres Maravilha

Este artigo termina com um convite para uma festa. Antes disso, toca em temas como polietileno, polissemia material e poliamor mas, sobretudo, fala da maravilha banal de um tupperware.

É possível que achem estranho, caros leitores, se vos disser que têm, neste momento, num dos armários da vossa cozinha, objetos de museu. E, com alguma probabilidade, são objetos que valem algum dinheiro. Não, não estou a falar do faqueiro de prata. Nem dos copos de cristal ou do serviço da Vista Alegre. Estou a falar daqueles tupperwares de cor de rebuçado de fruta, já amarelados e riscados, com aquele cheiro característico de plástico velho, com as tampas translúcidas meio tortas. Nas vossas casas podem estar empilhados atrás das taças dos cereais no armário à esquerda do lava-loiças, mas em dezenas de museus pelo mundo fora estão expostos em vitrines de vidro, com direito a legenda e foco de luz. Muitos museus têm tupperwares originais nas suas coleções, como o V&A em Londres ou o MoMA em Nova Iorque. Se forem mesmo da marca Tupperware, quanto mais antigos forem, e quanto mais completos estiverem, mais valiosos são. Basta irem ao eBay ou a sites similares e podem verificar que alguns conjuntos passam uma centena de euros.

Ao contrário de outros objetos de que tenho falado, o tupperware é um objeto que aparece frequentemente nos livros de história de design. E é um objeto de autor. Aliás, o seu nome vem do nome do seu criador, um americano chamado Earl Tupper, que começou a usar plástico no fim dos anos 30 do séc. XX para fazer recipientes e outros utensílios de uso doméstico (ware, em inglês). Mas, apesar do seu pedigree enquanto objeto de design, um tupperware passa pelas nossas mãos sem passar pelos nossos olhos ou pela nossa cabeça, e por isso é que tem lugar nestas linhas. Ninguém se pergunta, suponho eu, até porque temos todos mais em que pensar, e um tupperware serve precisamente para isso, para despachar tarefas domésticas sem pensar muito, sem estarmos preocupados em saber por que foi inventado ou quando, ou por que tem aquela forma e aquela tampa. O tupperware foi concebido para ajudar e é invisível que cumpre a sua função: sai do armário, entra no frigorífico, sai do frigorífico, vai para o micro-ondas, sai do micro-ondas, vai para a máquina de lavar loiça, sai da máquina de lavar loiça, volta para o armário.

Os tupperwares estão tão disseminados na vida quotidiana que o seu nome já não é apenas o nome de uma marca. Tal como acontece com outras marcas muito conhecidas, Tupperware é hoje sinónimo de uma categoria de produtos, e aparece enquanto tal nos dicionários portugueses. No dicionário online da Priberam, por exemplo, tupperware é definido como “recipiente plástico usado para acondicionar alimentos, geralmente com tampa de fecho hermético”, e aparece também na sua grafia lexicalizada “taparuere” (que só de ler faz dores de cabeça e que, claro, não vou utilizar).

Earl Tupper tinha a intenção megalómana de inventar produtos que mudassem o mundo (e que o tornassem rico). Vinha de uma família remediada da América rural do início do séc. XX, e desde cedo, diz-se, inventava e reinventava objetos e soluções para problemas que encontrava. Quando chegou a altura de formar a sua própria família, abriu um negócio de jardinagem, enquanto, em paralelo, continuava a trabalhar compulsivamente nas suas invenções. Parece que se comparava a Leonardo da Vinci e que guardava num caderno as ideias inacreditáveis que lhe saíam da cabeça, entre as quais se encontravam, entre coisas inócuas como cones de gelado que não pingavam ou molduras para transportar fotografias em cintos, um objeto para provocar a menstruação em mulheres que estivessem com os períodos atrasados ou grávidas e um utensílio que permitiria remover o apêndice através do ânus sem cirurgia. Tudo coisas que Tupper defendia serem revolucionárias e que, vá-se lá saber porquê, nunca ninguém quis desenvolver.

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Felizmente para todos nós, Tupper não teve oportunidade de pôr em prática as suas invenções para fins médicos e, nos anos 30, vendo-se falido, acabou por ir trabalhar para uma empresa de plásticos ligada à famosa Du Pont. Não é de espantar que Tupper tenha ficado fascinado com as propriedades do plástico e que depressa se tenha dedicado a explorá-las. Numa dessas explorações, usou um resíduo do processamento de petróleo, uma substância escura, pegajosa e malcheirosa feita de escória de polietileno, refinou-a e limpou-a até chegar a um material translúcido, sem cheiro e flexível, a que chamou Poly-T.

Tupper começou a desenvolver recipientes de plástico e a sua persistência levou-o, em 1938, a criar a sua própria empresa de produção de objetos à base de Poly-T, a Tupper Plastics Company. Terminada a guerra, a empresa mudou o nome para Tupperware e começou a fabricar recipientes de plástico para uso doméstico. Era preciso dar novos destinos ao plástico, que antes tinha sido alocado à produção de equipamento militar. Mas as pessoas não estavam habituadas a usar produtos de plástico nas suas casas, e continuavam a associar este material a equipamentos industriais. Quando os primeiros tupperwares chegaram às lojas ninguém parecia muito interessado. E as donas de casa estavam mais habituadas a frascos de vidro e recipientes de cerâmica, não sabiam sequer como funcionava um tupperware.

As festas davam às donas de casa umas horas por semana fora da sua rotina aborrecida,  em que conversavam com outras mulheres com a desculpa de se tratar de um evento sobre economia doméstica. O sucesso das festas Tupperware chegou a tal ponto que a empresa premiava as melhores vendedoras com automóveis, joias, eletrodomésticos e guarda-roupas inteiros.

Esta podia ser a história de mais uma invenção falhada de Tupper. Mas, graças a Brownie Wise, uma mãe divorciada de Detroit, à história cliché-dita-machista da persistência do homem americano empreendedor somou-se uma outra história que veio a definir o sucesso da Tupperware, a história cliché-dita-feminista da mulher de classe média inteligente que revolucionou a empresa (e que no fim foi descartada pelo dito homem americano empreendedor).

Wise era vendedora numa empresa de produtos de limpeza. Fazia demonstrações dos produtos nas casas das clientes. O número de pessoas a que chegava era muito superior do que se vendesse porta a porta, porque as clientes traziam as suas amigas. Acreditando no potencial dos tupperwares, Wise começou a incluir nas suas vendas os produtos de Tupper, fazendo “Poly-T Parties”, onde também recrutava novas vendedoras. As vendas de tupperwares aumentaram significativamente com a estratégia de Wise, e Earl Tupper acabou por contratá-la para o cargo de vice-presidente das Tupperware Parties no início dos anos 50, decidindo também que os tupperwares deixariam de ser vendidos nas lojas e passariam a ser comercializados exclusivamente através das ditas festas em casa das clientes.

As festas da Tupperware eram, segundo parece, muito animadas. Mas aquilo que traziam às donas de casa americanas da classe média não era apenas animação. Os tupperwares vendidos nas festas ajudavam, efetivamente, a gerir as cozinhas com mais eficácia, aumentando o tempo de conservação dos alimentos e diminuindo o número de idas às compras. Mas, sobretudo, os tupperwares trouxeram a muitas mulheres que não trabalhavam rendimentos que de outra forma não conseguiriam obter, sem terem de descurar as suas (muitas) obrigações domésticas. E não eram rendimentos insignificantes. O ambiente informal das festas Tupperware era temperado com alguma dose de pressão para comprar os produtos. O esquema era eficaz: uma dúzia de mulheres era convidada (a Tupperware até tinha um formato de convite próprio para o efeito), todas se vestiam a preceito, a dona de casa hospedeira servia uns petiscos e umas bebidas, em determinadas situações a demonstradora deveria usar luvas brancas. Criava-se uma atmosfera de distinção que, apesar de informal, certamente coibia as mulheres de sair de lá de mãos vazias, ainda que não houvesse obrigação de comprar nada. A dona de casa que organizava a festa recebia também um presente, e poderia, se quisesse, ser também ela uma vendedora Tupperware.

Além de tudo isso, as festas davam às donas de casa umas horas por semana fora da sua rotina aborrecida,  em que conversavam com outras mulheres com a desculpa de se tratar de um evento sobre economia doméstica. O sucesso das festas Tupperware chegou a tal ponto que a empresa premiava as melhores vendedoras com automóveis, joias, eletrodomésticos e guarda-roupas inteiros, organizando eventos extravagantes que juntavam centenas de pessoas e em que se cantavam hinos à Tupperware e se faziam cerimónias de reconhecimento das melhores vendedoras, todas vestidas de branco, a acender velas. Muitas donas de casa foram tão bem-sucedidas que os respetivos maridos deixaram os seus empregos e juntaram-se a elas.

Parece a descrição de um culto estranho, não é? Se pensarem nas festas Tupperware como congregações periódicas, na mesa da sala de estar cheia de tupperwares como um altar, em frente ao qual se reuniam as devotas donas de casa a idolatrar as virtudes de recipientes de plástico, se pensarem nos encontros como festividades religiosas, em Wise como uma sacerdotisa carismática, no hino Tupperware como um cântico, na venda de tupperwares como uma conversão, ou na própria tecnologia da Tupperware como um fenómeno milagroso, fica tudo um pouco sinistro. No entanto, a Tupperware, sobretudo pela mão de Brownie Wise, trouxe a muitas mulheres americanas não uma igreja para venerar, mas um gineceu empreendedor. De plástico flexível e em cores suaves, mas fértil e resistente. A estratégia empresarial de Wise acabou por se espalhar pelo resto do mundo, que rapidamente aderiu aos tupperwares nas décadas seguintes.

Estas histórias estão muito bem contadas por vários historiadores, em especial por Alison Clarke, que escreveu sobre a Tupperware e, sobretudo, sobre a importância das festas Tupperware como fenómeno de mediação cultural e social entre produção e consumo.

No entanto, não há muita coisa escrita e estudada sobre o tupperware enquanto objeto. A mediação ultrapassou o objeto, a interação com o produto tornou-se mais importante que o produto em si. O tupperware não tem sido só invisível para quem o põe no micro-ondas; também tem sido ignorado por quem o inclui nos livros sobre história do design ou por quem o fecha numa vitrine de museu. É verdade que, à primeira vista, este pedaço de plástico moldado não parece ter muito a dizer. Mas a sua simplicidade doméstica engana. Cada tupperware tem muito para contar, em especial o que está na imagem deste artigo.

Grafismo Ana Moreira/OBSERVADOR

O tupperware que estão a ver na imagem é uma “Wonder Bowl” (em português é conhecida por tigela maravilhosa), o primeiro design fabricado e comercializado pela Tupperware entre 1945 e 1946. Esta Wonder Bowl passou a integrar a sua própria coleção, chamada Wonderlier. Se calhar até têm uma ou várias em casa, ou lembram-se de taças parecidas da cozinha das vossas mães, avós ou madrinhas. As Wonder Bowl eram vendidas normalmente em trio, três tamanhos diferentes, por regra em três cores pastéis diferentes, entre verde-água, rosa e amarelo. Ou em conjuntos de cinco, também em tamanhos diferentes. Algumas linhas eram todas brancas, aquele branco leitoso meio translúcido que tanto caracteriza este tipo de plástico. Ainda hoje podem encontrar taças Wonder Bowl em alguns catálogos da Tupperware (de vez em quando a empresa relança esta coleção), e ainda hoje continua a ser um dos seus designs de maior sucesso. A pequena aba saliente da tampa foi mudando, e o design gráfico da marca também, mas o design, a tecnologia e a forma continuam praticamente iguais.

Eu tenho uma tigela maravilhosa, uma Wonder Bowl de meados dos anos 60, mesmo aqui ao meu lado, enquanto escrevo este artigo. Exatamente igual a esta verde esmeralda que está na imagem que os leitores estão a ver. Bem, na verdade, tenho a secretária atulhada de tupperwares antigos que pedi emprestados à minha mãe: taças da linha Wonderlier, taças de cereais, copos, um galheteiro, uma caixa quadrada, uma outra triangular, mais duas ou três caixas cilíndricas da linha “Servalier Astro” do início dos anos 70 (aquela linha em cores de amarelo torrado e cor de tijolo, usada para guardar alimentos secos na despensa), tudo com as respetivas tampas. E uma tigela minha da linha “Espacial”, que comprei há uns anos, num azul-topázio. Os tupperwares que tenho em cima da secretária são tão variados em cores, tamanhos, datas e formas quanto os livros onde estão pousados, ou não estivessem misturados com manuais e textos de história do design, literatura, antropologia, arquitetura, hidro-feminismo (descansem que não vou explicar isto aqui), filosofia, gaming e psicogeografia. Se formos a ver, um conjunto de tupperwares pode bem formar uma biblioteca material de semântica do design, tão heterogénea quanto o caos que reina à minha volta. Cada um destes tupperwares, pela sua história, é um livro em plástico injetado.

Mas voltemos à Wonder Bowl. Se tiverem uma igual ou parecida, peço-vos para irem à vossa cozinha e pegarem nela (se não tiverem entretanto despachado os tupperwares no eBay). É quase como se vos passasse a taça que tenho aqui para as mãos, não é? Numa festa Tupperware, as donas de casa eram incentivadas a pegar nas taças e a manuseá-las, para se familiarizarem com o objeto e ficarem convencidas a comprá-lo. Não vos quero convencer a comprar nada, mas gostava que se familiarizassem com a taça da mesma forma e que a deixassem contar a sua história.

A taça segura-se bem só com uma mão quando está vazia, é bastante leve. A tampa e a boca da taça têm um diâmetro equivalente à minha mão. A borda da taça tem uma pequena elevação, que assenta numa saliência que rodeia a taça, e que serve para encaixar a tampa (as primeiras Wonder Bowls não tinham esta saliência). Se passar os dedos por dentro e por fora noto que está ligeiramente riscada em alguns sítios, muitas marcas de garfos e facas a retirar restos de comida. Na beira da taça há algumas rachas pequenas, mas a taça ainda está em bom estado depois de tantas décadas de trabalho diário.

A Wonder Bowl tem uma forma elegante, que afina na direção de uma base mais estreita. Se virarem a taça ao contrário, como estou a fazer agora, irão ver que a base é ligeiramente afundada, e que no meio da base estão dois círculos mais pequenos, um dentro do outro, concêntricos. Na taça que tenho aqui, o círculo maior tem a indicação da patente americana e a referência a que se aguardam patentes de outros países. Na zona mais larga da base está escrito Tupperware e “Wonderlier bowl”. Na zona de baixo, a indicação de que foi feito na Grã-Bretanha, além de uma referência à Tupperware Londres. Por fim, um número com duas partes: 234-12. E, ainda na base, está uma letra em maiúscula isolada e enigmática: um C. Tudo isto está escrito no tupperware através de saliências no mesmo material e na mesma cor do recipiente, que nitidamente constam do molde de onde esta peça de plástico foi injetada. A informação faz parte do molde, e por isso acaba por fazer parte do objeto também, sendo legível e invisível ao mesmo tempo, não perturbando a linearidade, a funcionalidade e a simplicidade do design.

Tanto no centro da base da taça como no centro da tampa está um pontinho, que nos tupperwares mais recentes não é tão saliente. Este pontinho é o resto de uma excrescência fina que saía do molde, e que os métodos atuais de produção devem ter conseguido eliminar. É um detalhe minúsculo, mas que denuncia uma fase artesanal de um processo todo ele mecanizado.

A tampa da Wonder Bowl que tenho aqui é branca, aquele branco fosco típico das tampas da Tupperware. Tem uma borda saliente, que virando ao contrário se percebe que equivale à reentrância onde encaixa na taça. Tem uma pequena aba arredondada que sai de fora do seu círculo, onde também se encontra o enigmático C, e que tem um pequeno recorte circular. A tampa tem também muita informação escrita através de saliências. O código é diferente da taça: 227-20. E, quase a tocar a beira da tampa, está escrito “Tupper! Seal”, as duas palavras separadas pelo desenho de uma foca.

Tanto no centro da base da taça como no centro da tampa está um pontinho, que nos tupperwares mais recentes não é tão saliente. Este pontinho é o resto de uma excrescência fina que saía do molde, e que os métodos atuais de produção devem ter conseguido eliminar. Se tiverem tupperwares mais antigos vão sentir essa saliência, e vão ver que nem todos têm a saliência cortada exatamente do mesmo tamanho, porque era cortada manualmente com uma tesoura. É um detalhe minúsculo, mas que denuncia uma fase artesanal de um processo todo ele mecanizado.

Peguem novamente na taça e na sua tampa. Vão ver que a taça e a tampa são lisas e simples, não têm decoração nem relevos ou detalhes desnecessários. De certa forma, a taça Wonder Bowl é mais um símbolo do modernismo que aspirava a melhorar a vida das pessoas – caracterizado por formas sem ornamentos e estruturas desnecessárias –, do que do otimismo estético do design streamlined americano, que muitas vezes apresenta curvas ou adereços dispensáveis.

Na verdade, na Wonder Bowl não há nada que não esteja orientado para uma função. Todos os detalhes, de uma simplicidade confiante e assumida, têm um trabalho a executar. Até os círculos concêntricos na tampa, que dialogam com os mesmos círculos concêntricos da base da taça numa linha reta virtual que as atravessa, têm uma função, que existe em conjunto com a pequena aba saliente. É que a tampa destes tupperwares foi desenhada com um mecanismo habilidoso. Inspirando-se numa tampa de uma lata de tinta invertida, Tupper inventou uma tampa que tornava a taça hermética, e que permitia tirar parcialmente o ar do seu interior. Para obter esse efeito, e depois de fechar a taça, basta carregar no meio da tampa com os dedos enquanto se abre ligeiramente a tampa, libertando o ar, fechando-a novamente logo a seguir. Os círculos no centro da tampa são como alvos ou botões transparentes que ajudam a perceber onde se carrega, e a aba saliente ajuda a outra mão a abrir a tampa parcialmente para deixar sair o ar. Esta tampa “sela” os alimentos dentro da taça, e daí o desenho de uma foca (talvez o único elemento puramente decorativo neste objeto) a fazer trocadilho com a palavra seal, que em inglês quer dizer foca e selar.

Em conjunto com a aversão ao plástico que referi acima, foi também este mecanismo engenhoso de fechar a taça, patenteado por Tupper nos Estados Unidos em 1947, que provocou inicialmente alguma desorientação nas consumidoras americanas, que não sabiam, ao ver os produtos nas lojas, como se fechavam os recipientes. Mas foi também este mecanismo que verdadeiramente despoletou o sucesso da Tupperware, pela mão de Wise. Foi Wise que, reparando na tampa e na necessidade de o funcionamento dela ser demonstrado ao vivo para que as donas de casa o percebessem, começou a organizar as ditas festas, onde as convidadas eram ensinadas a fechar corretamente os tupperwares e assim preservar melhor os alimentos. Aliás, Wise terá dito que os tupperwares precisavam de ser postos “a arrotar”, numa clara alusão de puericultura, como diz Clarke, que todas as convidadas percebiam.

Quantos leitores saberão que, tal como os bebés, os tupperwares também se põem a arrotar? Quantos passaram uma vida inteira a fechar os tupperwares de forma incorreta? Na América dos anos 50, a comparação de um tupperware com um bebé teve um sucesso estrondoso, pela empatia que causou junto do seu público feminino. Mas, se o público era feminino, não deixava de ser especializado. Todos os tupperwares tinham nomes, e aqueles códigos inscritos nos tupperwares correspondiam aos moldes daquela peça específica, permitindo à dona de casa obter peças de substituição se alguma se estragasse. Os enigmáticos C da tampa e da taça Wonder Bowl que aqui tenho querem dizer que o diâmetro da abertura do tupperware e da tampa são um tamanho “C”, e que por isso encaixam (a tampa da minha tigela “Espacial” também é um C, e encaixa perfeitamente na Wonder Bowl da minha mãe, que é pelo menos 50 anos mais velha do que o meu tupperware). Muitos outros tupperwares que aqui tenho à volta têm outras letras, correspondendo a outros diâmetros. A pequena aba das tampas, além de ajudar a retirar o ar do tupperware, também permitia, com aquela reentrância, pendurar todas as tampas numa estrutura própria que se podia fixar na despensa, ficando todas as tampas arrumadas por tamanhos. No fundo, estes bebés de plástico de cor pastel das donas de casa americanas tinham códigos e especificações tão complexas como qualquer chave de parafusos ou berbequim sofisticado usado pelos seus maridos nas atividades DIY do fim-de-semana.

A taça que seguro na mão já está meia baça, mas pela fotografia que podem ver aqui nota-se que já teve algum brilho. O mesmo brilho consegue-se ver em vários anúncios da Tupperware dos anos 50. Num deles aparece precisamente esta taça, na ponta de uma mão elegante de uma senhora de unhas vermelhas cuidadosamente arranjadas, penteado e maquilhagem impecável, batom vermelho a condizer com as unhas, roupa discreta, brincos e colar de contas redondas reluzentes, num tom de verde-água combinado com o tupperware. A semelhança entre o brilho da taça Tupperware e o as joias da senhora, tudo na mesma cor luzidia e formato arredondado, não pode ser inocente: a dona de casa segura o tupperware delicadamente na ponta dos seus dedos, como se segurasse as joias que está a usar. Mas não olha para o tupperware com devoção nem inferioridade. O tupperware está abaixo da altura dos seus olhos. Tal como as joias modestas que a senhora usa, que não são nitidamente diamantes ou pérolas, o tupperware é um fiel companheiro de trabalho, um instrumento em que ela pode confiar. E assim é em muitos anúncios da Tupperware desta altura. As mulheres aparecem como donas de casa seguras de si, sempre dominando os tupperwares como generais na cozinha.

O tupperware está abaixo da altura dos seus olhos. Tal como as joias modestas que a senhora usa, que não são nitidamente diamantes ou pérolas, o tupperware é um fiel companheiro de trabalho, um instrumento em que ela pode confiar.

A Wonder Bowl também nos diz, por isso, que usar e vender tupperwares era, para a mulher da classe média americana, como pertencer a um clube exclusivo e aspiracional. Era uma irmandade de mulheres, onde podiam construir uma carreira e onde tinham a sua própria linguagem.

Tudo isto bate certo, mas há um detalhe na Wonder Bowl que me intriga.

A Tupperware está associada ao desenvolvimento de tecnologias de conservação de alimentos. Sem a disseminação dos frigoríficos não é claro se os tupperwares teriam sido inventados, pelo menos com a forma com que os conhecemos. Mas se o seu uso principal é arrumar e conservar alimentos no frigorífico, e se o plástico permitia fazer qualquer forma, por que razão os tupperwares começaram por ser redondos e afunilados? As Wonder Bowls podem ser empilhadas, mas o espaço vazio que deixam é significativo.

Só consultando os arquivos da Tupperware é que é possível ter a certeza, assumindo que esta informação existe, mas a razão mais óbvia parece ser aquela que a própria Tupperware anunciava como uma virtude destes recipientes: os tupperwares eram também pensados para serem levados à mesa, e por isso a sua forma redonda era mais elegante para servir. Havia até conjuntos de chá e de café feitos em tupperware. Não eram só recipientes para guardar comida. Também eram, supostamente, taças bonitas e elegantes para estarem na mesa.

Mas há uma explicação não assumida que oferece outra justificação para a forma arredondada. Devem lembrar-se do que disse acima sobre a novidade trazida pelos tupperwares. Quando surgiram, ninguém usava utensílios de plástico para guardar comida. Os tupperwares foram tão revolucionários que foi preciso aparecer Brownie Wise e levar os tupperwares para as donas de casa tocarem e experimentarem para ganharem a sua confiança. Foi preciso que Wise atirasse ao ar Wonder Bowls cheias de líquido nas salas de estar, por cima das cabeças espantadas das senhoras, para que estas percebessem que era um recipiente hermético. E foi preciso que lhes mostrasse como se fechava a tampa.

Ora, não é inverosímil pensar que Tupper, sabendo que até aí o plástico ainda não tinha entrado nas cozinhas, tenha querido tornar uma coisa estranha e industrial numa coisa mais caseira, evocando formas que já eram familiares em todos os lares. E que coisa mais milenarmente familiar pode haver do que uma taça de cerâmica?

Sim, quando olho para esta tigela de plástico da Tupperware aquilo que me vem à cabeça é uma taça de cerâmica. A base ligeiramente afundada, quase como que a fazer um frete fino de uma taça de barro, os círculos no fundo, que parecem ter sido feitos por um teque de metal, cuidadosamente manipulado para nivelar, na roda de oleiro, a base da taça. Mas, sobretudo, a sua forma e o círculo perpétuo que a estrutura, que parecem ter sido moldados por mãos de ceramista.

E o nome, Wonder Bowl, tigela maravilhosa, também sugere aos meus olhos essa magia, esse prodígio de transformar barro em plástico. Barthes (sempre o Roland Barthes quando se fala de plástico, não é?) dizia, em meados nos anos 50, que o plástico tinha esta característica mitológica de parecer surgir do nada, de parecer não ter intervenção humana. O oposto, diria eu, do barro, que muitas vezes preserva o toque das mãos de quem o moldou, que tem memória, a mesma memória que fica nas mãos que o formam (será que as minhas mãos ainda se lembram das taças que já fizeram na roda que ganha pó na minha cave?). Do barro que é um assombro em si mesmo, mas que conseguimos ver com os nossos olhos transformar-se numa taça. Se já viram alguma vez algum vídeo de um tupperware a ser feito, não conseguem acompanhar visualmente esse processo. Onde está um molde de metal numa máquina complexa, aparece de repente uma peça de plástico brilhante, vinda do nada, ou vinda daquilo que Barthes chamava a alquimia do plástico, que arrefece e estabiliza em menos de um segundo.

Há uma palavra para explicar esta imitação de características de objetos anteriores que não são necessárias em novos objetos feitos de materiais diferentes, como acontece com a imitação de uma forma de cerâmica pelos tupperwares: esqueumorfismo. O termo foi criado em 1889 pelo arqueólogo britânico Henry Colley March, e originalmente descrevia estruturas ou produtos físicos que tinham designs ou elementos de design semelhantes a objetos anteriores. Há muitos casos de esqueumorfismo desde a pré-história. A antropologia e a arqueologia relatam exemplos dos primeiros vasos de cerâmica do Neolítico, que imitavam nas suas pegas e nas suas decorações os já existentes recipientes em madeira e corda do período do Mesolítico, provavelmente, dizem os especialistas, para que os seus utilizadores não estranhassem tanto o novo objeto e encontrassem pontos de contacto com os utensílios que já lhes eram familiares. Exemplos atuais conhecidos são os separadores que temos nas agendas dos telemóveis, que imitam separadores em papel, ou as salsichas vegetarianas para cachorros-quentes que imitam salsichas de carne.

Também há esqueumorfismo auditivo, por exemplo quando eliminamos um ficheiro e o computador faz um barulho de papel amarrotado. Em nenhum desses casos havia necessidade de imitar a forma ou o design anterior; o objetivo é introduzir um novo produto ao consumidor sem que este estranhe muito a diferença. Quem estuda os esqueumorfismos conclui, como refere o antropólogo John Blitz, que estes ajudam a aceitar inovações, porque fazem uma ligação a elementos e formas familiares, evocam memórias coletivas positivas e criam uma escala de valor mais ampla, ao fazer incluir novas variantes em objetos da mesma categoria.

Além da utilização enquanto objeto de servir à mesa, esta é uma explicação possível para que a tigela Wonder Bowl tenha surgido com esta forma tradicional. Tupper aproveitou de maneira engenhosa as propriedades do plástico, mimetizando recipientes já existentes feitos de outros materiais, mas sem esconder a sua natureza. Barthes dizia que até ao surgimento do plástico as outras imitações de objetos tinham na sua base uma pretensão, “pertenciam ao mundo da aparência”, porque queriam enganar e fazer-se passar por ouro, pele, diamantes, seda e outras matérias, através de recursos mais baratos. O plástico não queria fazer passar-se por outra coisa. Seria o primeiro artifício, explicava Barthes, a almejar o comum e não o precioso, a “primeira substância mágica que aceita ser prosaica”.

Os esqueumorfismos significam, literalmente, “conter uma forma”; são metáforas “sólidas”, como diz Blitz, que representam conceitos de uma forma física ou visual. O que nos levaria também a outras teorias sobre a origem de “conter” e de “recipiente”, e sobre como o ser humano tem apreendido esses conceitos. Falo aqui da metáfora conceptual de George Lakoff e Mark Johnson, ou da teoria explicada por Carl Knappett, Lambros Malafouris e Peter Tomkins, de que a ideia de contenção, que está presente na cerâmica, vem de uma metáfora criada pela imagem do corpo e pela experiência primordial de ser. Isto porque o corpo humano pode ser experienciado e entendido ele próprio como um recipiente, tendo a pele como sua fronteira e os seus orifícios como entrada e saída do que contém e do que expulsa. É por experienciarmos um corpo e um corpo que contacta com a materialidade que lhe é exterior, dizem aqueles três autores, que conseguimos apreender os conceitos abstratos de fronteira, interior e exterior. Jean-Pierre Warnier, por exemplo, falou também da relação profunda entre o corpo do ser humano e os recipientes-objeto, sobretudo com a sedentarização trazida pelo Neolítico. Alguns autores, como Chris Tilley e Clive Gamble, referem a conexão entre vasos e corpos ao analisar potes do Neolítico com caras ou olhos.

Se já viram alguma vez algum vídeo de um tupperware a ser feito, não conseguem acompanhar visualmente esse processo. Onde está um molde de metal numa máquina complexa, aparece de repente uma peça de plástico brilhante, vinda do nada.

Como não pensar, neste contexto, na taça Wonder Bowl que arrota, qual corpo humano feito recipiente, qual recipiente feito corpo humano? Mas, temendo já ter deixado os meus leitores a boiar numa sopa viscosa de antropologia, etnografia, arqueologia e linguística cognitiva, vou deixar estes temas por aqui.

A década de 40 viu surgir na América a Wonder Bowl, mas também viu surgir a Wonder Woman. Que, curiosamente, também mexe com as ideias de conter e de recipiente: de acordo com a sua história inicial, a Mulher Maravilha foi esculpida do barro pela sua mãe, a Rainha das Amazonas. A Wonder Bowl mostrava uma transformação mágica do barro para o plástico, a Wonder Woman, uma transformação do barro para a mulher. Mais um vaso, mais um recipiente de forma humana.

A Wonder Woman, super heroína que dispensa apresentações, foi imaginada por um psicólogo chamado William Moulton Marston, fazendo a sua primeira aparição numa revista de banda desenhada em 1941. Moulton era também inventor, como Tupper. Mas é mais conhecido pela criação da Mulher Maravilha, personagem inspirada nas suas duas (sim, duas) mulheres, Elisabeth Holloway Marston e Olive Byrne. Olive Byrne conheceu os Marstons em 1925, quando William Marston era seu professor de psicologia. Foi através de Byrne que, parece, William Marston ficou a conhecer as “festas de bebés” das sociedades universitárias femininas, onde as novas alunas se vestiam de bebés e eram tratadas como tal, e que posteriormente serviram de material para algum do seu trabalho em psicologia (trabalho esse muito focado em comportamentos sexuais censurados à época). Olive Byrne mudou-se para a casa dos Marston, onde ficou a tomar conta dos dois filhos do casal, enquanto Elisabeth, também ela psicóloga, sustentava a “família”. Byrne viria a ter também dois filhos de William Marston, que o casal Marston adotou. Byrne uniu-se simbolicamente ao casal Marston usando duas braceletes largas, uma em cada braço, em vez de um anel. Diz-se que as duas braceletes de poder da Mulher Maravilha são uma homenagem de Marston a Byrne.

Ao que parece, William Marston era um grande apoiante da emancipação feminina e defendia que as mulheres deviam liderar o mundo. No entanto, parte da banda desenhada da Mulher Maravilha que pude ver mostra bastante objetificação e pouca emancipação, além de insistir, puxando pelo outro lado de Marston, em repetidas cenas alusivas a comportamentos sadomasoquistas (é frequente ver a Mulher Maravilha atada com cordas ou ligaduras, mas decidi não ver muito mais para não perturbar o algoritmo do meu computador). Banda desenhada e sadomasoquismo não são temas, confesso, que me interessem muito, e por isso não tenho muito a dizer. Talvez seja uma forma gráfica e catártica de mostrar como a Mulher Maravilha se separa das grilhetas que a acorrentam aos homens. Mas a verdade é que as braceletes de Byrne pareciam significar devoção, compromisso e, decerto, alguma submissão (provavelmente, em formatos muito variados).

Duvido que Elisabeth Marston ou Olive Byrne tenham organizado alguma festa Tupperware, mas não consigo deixar de imaginar, ao mesmo tempo, as baby parties frequentadas por Byrne e Marston e as Tupperware parties de Wise, dois ambientes femininos tão distintos da América de meados do séc. XX. Apesar de a banda desenhada ser anterior à participação de Wise na Tupperware, também é curioso ver como a história de Brownie Wise na Tupperware tem alguma coisa de Wonder Woman. A Wonder Woman que lidera as restantes Amazonas e viaja até ao mundo real para o salvar, o reconhecimento pelo personagem masculino da história, Steve Trevor, um funcionário dos serviços secretos americanos, da importância da Wonder Woman, a sua contratação para trabalhar ao lado de Trevor no Departamento de Guerra, o apoio dado à Wonder Woman pelas Holliday Girls, uma sociedade de uma universidade feminina. Brownie Wise foi uma Mulher Maravilha, de certa maneira, Earl Tupper um reticente Steve Trevor, e as suas vendedoras Tupperware as suas Holliday Girls. E, por último, ainda que duvide que tenham alguma relação, também não consigo deixar de sorrir ao imaginar um eventual elo de ligação entre a Wonder Woman e a Wonder Bowl, criada uns anos a seguir àquela heroína de banda desenhada. Uma supostamente inspirada no amor livre e nos comportamentos sexuais não convencionais, e outra concebida para ajudar a dona-de-casa certinha e bem comportada nas suas lides domésticas. As duas bastante distintas, mas unidas numa ideia genérica de emancipação da mulher.

Se há alguma coisa de maravilhoso e de transcendente em tudo isto, no plástico dos tupperwares, na irmandade feminina que os difundiu, na cerâmica e nos superpoderes da Mulher Maravilha, é preciso lembrar também que o conceito de recipiente e a cerâmica aparecem com frequência na Bíblia. Não é afinal a Bíblia que fala em corpos como sendo vasos, recetáculos da bênção divina? E, numa visão mais apocalíptica, que, tal como os vasos do oleiro, também os seres humanos serão quebrados em pedaços?

Se há alguma coisa de maravilhoso e de transcendente em tudo isto, no plástico dos tupperwares, na irmandade feminina que os difundiu, na cerâmica e nos superpoderes da Mulher Maravilha, é preciso lembrar também que o conceito de recipiente e a cerâmica aparecem com frequência na Bíblia.

Vilém Flusser escreveu sobre esta profecia bíblica, com o objetivo de explorar o conceito de recipiente. Explicou, numa perspetiva filosófica, o recipiente como forma eterna, como se tudo o que existisse, todos os fenómenos, desde a maçã ao tronco da árvore, tivessem surgido de um molde imperecível que lhes deu forma, que é percetível à volta deles e que nunca pode ser partido. Esta visão é, diz Flusser, uma visão de ceramista, e é a visão que levou Pitágoras, Platão ou Galileu a reconhecer as fórmulas (as formas) dos fenómenos que conseguiram explicar. Mas todos aqueles que se dedicam a produzir formas abstratas de raiz, como os programadores de computador, que criam formas e realidades alternativas, estão a tentar aproximar-se dos poderes de Deus, explica Flusser, estão a tentar criar formas puras. E quem cria essas formas, sendo também potes modelados por Deus, Homens e Mulheres Maravilha feitos a partir do barro, serão partidos em conjunto com eles antes que consigam chegar às formas divinas.

Se Flusser escrevesse sobre recipientes agora, talvez falasse de como a ideia de conceber uma forma maior que dá forma a outras coisas, a ideia de criar cisões entre duas realidades, está também na base de muitas coisas perniciosas e sombrias que ocupam os dias de hoje, e que inequivocamente constituem um desafio a Deus muito mais preocupante. A ideia da guerra nuclear, por exemplo, é ela própria a criação de um desses vasos negros e ocos onde toda a destruição pode ser moldada, homens armados em deuses, fazedores de mitos que não são mais do que figuras de barro que mais tarde ou mais cedo serão esmagadas com os seus potes.

Os tupperwares nasceram de materiais de plástico que inicialmente foram usados em aviões de guerra. E floresceram na sombra fria de uma ameaça nuclear, protegendo a classe média americana num estado de semi-vácuo arrefecido, devidamente acondicionada num gigante e luzidio frigorífico streamlined. Entraram em casas pelo mundo fora pelas mãos de milhares de mulheres, Mulheres Maravilha sem braceletes douradas mas de luvas brancas e saia pelo joelho. Uma irmandade de Amazonas armadas de tampas de polietileno, que pode não ter conseguido acabar com a maldade do mundo mas que, discretamente, por entre a banalidade dos dias e a partir de salas de estar insuspeitas, revolucionou estilos de vida e relações de consumo. Voltemos por isso aos tupperwares, às suas cores sacarinas e à promessa soalheira que trouxeram. Não para nos enfiarmos numa caixa de plástico e fecharmos a tampa à espera de melhores dias, que mesmo o melhor tupperware não conserva o seu conteúdo por tempo indefinido. Mas para nos focarmos nas coisas excecionais que a normalidade nos traz. Nas coisas que são em simultâneo extraordinárias e banais, como um tupperware, como diz Clarke.

Por isso, e antes que sejamos todos quebrados como vasos de barro (e todos lá chegaremos, com ou sem profecias bíblicas), deixo aqui uma sugestão. Liguem às vossas mães, avós e madrinhas, combinem um lanche, peçam-lhes para ver os tupperwares que elas ainda têm guardados, peçam-lhes para vos contar as histórias que ainda se conservam, meias bafientas, por baixo das suas tampas. Mostrem-lhes como os tupperwares que elas têm guardados brilham no site do MoMA, o plástico amarelado transformado em cetim nacarado, como se a passagem do tempo os tivesse transformado em pérolas. E garantam que elas percebem como os seus dias de há muitas décadas, que na altura eram sentidos como triviais e invisíveis, eram afinal tão extraordinários. Que não eram só as taças que eram maravilhosas, que também elas eram, e ainda são, Mulheres Maravilha (só não se esqueçam de lhes dizer para não usarem esses tupperwares, sobretudo no micro-ondas, que a Tupperware só retirou elementos nocivos da composição dos seus produtos, como o BPA, a partir de 2010).

E, por último, uma declaração de interesses necessária. Não tenho ligação à Tupperware. Não sou consultora (como a marca agora diz), não recebi nem vou receber qualquer contrapartida da Tupperware por escrever este artigo. Se bem que, olhando para os meus tupperwares, já esteja a precisar de substituir alguns. Quem sabe, talvez organize uma Tupperware Party (sabiam que ainda se podem fazer festas Tupperware?). Prometo servir um lanche, ir ao cabeleireiro, vestir-me a rigor e usar luvas brancas. Não haverá cenas de Wonder Woman, que uma Tupperware Party é um evento respeitável, mas usarei os meus superpoderes para fazer voar Wonder Bowls cheias de sumo de laranja pela minha sala de estar. No fim, ganho uns trocos e troco uns tupperwares. Além de fazer um estudo de história do design com recurso a metodologias etnográficas e fenomenológicas. Considerem-se convidados.

Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.

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