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Toledo: ponto crucial da Guerra Civil espanhola

A Guerra Civil espanhola (1936-1939) colocou frente a frente republicanos e nacionalistas. Toledo foi mais político do que militar. Foi o marco da reviravolta no poder. Ensaio de José Luís Andrade.

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O início da Guerra Civil

Dia 14 de Julho de 1936. O cadáver de José Calvo Sotelo, um dos principais líderes parlamentares da oposição espanhola, aparece crivado de balas junto a um cemitério a oriente de Madrid. Soube-se pela família que fora detido em casa, pela calada da noite, e levado sob escolta por membros das forças de segurança sob o comando do capitão Fernando Condés, da Guardia Civil e organizador das milícias do PSOE. No interior de um dos veículos da polícia, um militante (civil) do Partido Socialista enfiou-lhe uma bala na nuca. Pela bazófia e gáudio com que os assassinos propalaram a execução, percebeu-se que o outro dirigente da direita, José María Gil-Robles, cujo partido (CEDA) fora o mais votado nas eleições de Fevereiro desse ano, só não tivera o mesmo fim por se encontrar ausente de Madrid.

Aturdidos com a notícia, os vários clãs militares, que desde há meses vinham equacionando a tomada do poder para repor a ordem e a segurança em Espanha, decidiram unir esforços e pôr de lado quaisquer escrúpulos legalistas que ainda subsistiam na mente de alguns. Sob a batuta do brigadeiro Emilio Mola Vidal, os planos do levantamento militar foram postos em marcha. Em toda a Espanha, apenas um punhado de generais mas centenas de capitães e majores aprestaram-se a vir para a rua com a sua tropa e exigir a queda do governo da Frente Popular e o fim do seu programa revolucionário não sufragado nas urnas. O Governo, por infiltrados e informadores, acompanhava o desenrolar da conjura mas não tinha noção da extensão que as redes cúmplices haviam, entretanto, atingido.

Três dias depois da descoberta do corpo de Calvo Sotelo, um pequeno incidente em Melilha, na zona espanhola do Protectorado de Marrocos, fez precipitar a insurreição militar e, no dia seguinte, a 18, a Espanha peninsular começou a acordar com muitos centros urbanos com presença militar a declararem o estado de guerra. Entre 18 e 22, o futuro de Espanha parecia jogar-se na ponta das baionetas e na retórica da violência política. Sob o peso do volume das forças militares, de segurança e milicianas afectas à Frente Popular, o golpe acaba por falhar na maioria das principais cidades. Em Madrid e em Barcelona, a fidelidade da Guardia Civil permitiu ao Governo dominar e desarmar os sublevados e levar a cabo os primeiros grandes massacres e execuções de prisioneiros.

A norte, a 20, Mola, o organizador principal da insurreição, volvido agora chefe operacional das forças setentrionais, fica em estado de choque quando lhe chega a notícia da morte acidental da figura consensualmente prevista para encabeçar o golpe, o general José Sanjurjo, em Cascais. Tudo parece correr mal e Mola pensa em recuar e reagrupar na linha do Douro. Mas consegue avançar com colunas improvisadas, de Leão e sobretudo de Navarra, sobre Madrid sendo detido nas serranias do Guadarrama, pelo peso das forças do Governo e por falta de munições. Para se ocupar exclusivamente da acção operacional, força a constituição de uma Junta coordenadora, presidida pelo respeitado general de divisão Miguel Cabanellas Ferrer, prócere maçon e republicano dos sete costados.

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A sul, dominada Sevilha, o igualmente republicano general de divisão Gonzalo Queipo de Llano envidava esforços para controlar a Andaluzia ocidental e central. No estrebuchar da situação, os olhos de ambas as partes estavam postos na tropa de África, a mais prestigiada força do exército espanhol. Sob o comando do general de divisão Francisco Franco, contingentes de Regulares e do Tercio de Extranjeros (La Legión) atravessaram o estreito de Gibraltar numa arriscadíssima manobra, já que os sublevados não dispunham nem do controlo dos ares nem, muito menos, dos mares. Perante a evidência do apoio militar francês a Madrid, aviões de transporte, emprestados à pressa pela Itália e pela Alemanha, e traineiras e atuneiros dos portos nas mãos dos rebeldes conseguirem passar para a península grande quantidade de munições e de homens que rapidamente se transformaram na principal força de choque rebelde. Reposto algum equilíbrio militar, a obrigar as forças do Governo a remeter-se à defesa, falhada a sublevação castrense começava a guerra civil.

No meio da confusão de sublevações e repressões, vários foram os locais que acabaram por ficar isolados, rodeados por forças contrárias. Foram sobretudo focos sublevados, como reconheceria o dirigente anarquista Joan García Oliver: «Nesta guerra está a dar-se um fenómeno anormal. Os fascistas quando são atacados em cidades isoladas aguentam muito e os nossos não aguentam nada; [os fascistas] cercam uma pequena cidade e ao cabo de dois dias tomam-na. Nós cercamo-la e ficamos ali a vida inteira.» A norte foram Oviedo, Teruel, Huesca, Saragoça e o quartel de Simancas, em Gijón, com resultados díspares. A sul, na Andaluzia, Queipo de Llano não conseguiu chegar a tempo de libertar as forças insurrectas da Guardia Civil entrincheiradas no Santuário de Santa Maria de la Cabeza. Mas em Toledo, onde a sublevação falhara, um punhado de rebeldes levava a cabo uma inexorável defesa numantina, encurralados no edifício da Academia Militar de Infantaria, Cavalaria e Intendência, no Alcácer da cidade.

Na óptica estritamente militar o episódio do cerco ao Alcácer de Toledo não é seguramente dos mais significativos da história da guerra civil de Espanha. Mas do ponto de vista do impacto político entendo que ele é o ponto crucial na complexa dinâmica da última guerra civil espanhola e o principal marco da reviravolta no balancé do poder das forças em confronto.

O caminho para Madrid, por Toledo

Com o seu flanco esquerdo encostado à protecção da fronteira portuguesa, as colunas militares do general Franco prosseguiam o seu implacável percurso a caminho de Madrid, pela Extremadura que puseram a ferro e fogo, eliminando qualquer possibilidade de resistência de retaguarda e sancionando com execução sumária os responsáveis pelas atrocidades entretanto cometidas sobre as populações não afectas à Frente Popular.

Francisco Franco dava mostras de entender que a acção militar, embora criticamente instrumental, era apenas um dos vectores de uma estratégia mais abrangente e de fundo. Além de que pensava que as forças rebeldes até podiam tomar a capital mas não tinham a massa crítica necessária para a ocupar e dominar.

O dispositivo militar que Madrid lhes atravessara no caminho, no vale do Tejo, mostrava-se impotente para travar o avanço dos rebeldes, entretanto já reunidos, pelas serranias de Cáceres, às forças nortenhas de Mola. Sob o comando directo do tenente-coronel Juan Yagüe Blanco as forças rebeldes aproximavam-se a passos largos de Madrid. Caída Talavera a 3 de Setembro, foi a caminho da capital, na conquista de Cazalegas, a 17, que morreu o português Joaquim Sousa Oliveira, sargento do Tercio e comandante do destacamento que protagonizara a primeira acção militar da sublevação, em Melilha, na tarde de 17 de Julho. Quando a 21 de Setembro as forças rebeldes conquistaram Maqueda, lançaram o pânico na capital espanhola.

Na Espanha «em chamas», o assédio das forças frente populistas ao Alcácer de Toledo estava a tornar-se num gigantesco fiasco. Mas a maioria dos chefes operacionais rebeldes, liderados por Juan Yagüe, quer «esquecer» os seus camaradas sitiados e precipitar-se já sobre Madrid, aproveitando o ímpeto dos sucessivos sucessos militares, procurando tirar partido da insegurança que grassava entre os defensores da capital; e, não menos despiciendo, pelo facto de as colunas de Mola a noroeste e nordeste de Madrid estarem já minimamente municiadas. Mas Franco opõe-se e diz que o caminho de vitória passa por Toledo. Contrariamente ao que afirmaram posteriormente alguns precipitados historiadores, a decisão do comandante do exército de África foi de uma grande visão estratégica, olhando para a guerra de uma forma mais global e não meramente militar.

A determinação de Franco não era resultado de uma reflexão momentânea. Um mês antes, a 22 de Agosto, um avião dos sublevados havia deixado cair no Alcácer de Toledo uma mensagem do General que prometia libertá-los do cerco frentepopulista, encorajando-os a resistir. A 6 de Setembro, um outro avião tripulado pelo próprio Alfredo Kindelán, comandante da força aérea dos insurrectos, havia deixado cair sobre o pátio do Alcácer, alimentos enlatados e missivas encorajadoras de Mola, e uma carta do próprio Kindelán para o aluno Milans del Bosch, incentivando-os a aguentar até à chegada do prometido auxílio.

Francisco Franco dava mostras de entender que a acção militar, embora criticamente instrumental, era apenas um dos vectores de uma estratégia mais abrangente e de fundo. Além de que pensava que as forças rebeldes até podiam tomar a capital mas não tinham a massa crítica necessária para a ocupar e dominar. E, a 24 de Setembro, decide substituir o seu velho amigo, o recalcitrante Yagüe, pelo coronel José Enrique Varela que rapidamente deflecte as vanguardas para Toledo, por sueste.

Quando às 7 da tarde do dia 27 de Setembro, a secção de Regulares do tenente Luis Lahuerta Ciordia transpôs os muros do Alcácer, logo seguida pela V Bandera da Legião, às ordens do capitão Carlos Tiede Zeden, os gritos de «Viva España!» puderam ouvir-se até no outro lado do Atlântico. Acompanhado em todo o mundo pelos simpatizantes dos dois lados, a libertação dos sitiados na vetusta Academia, destruída até ao miolo, protagonizada pela guarda avançada do major Mohammed Ben Mizzian Al Kassem, constituiu uma coroa de glória para os rebeldes. A emocionante libertação, com o pungente drama humano vivido pelos sitiados, atraiu definitivamente para a causa dos sublevados muitos católicos e direitistas em todo o mundo, mormente nos Estados Unidos, onde chegavam igualmente as notícias de execuções sistemáticas de milhares de crentes. E provou que, afinal, a guerra ainda ia durar bastante, contrariamente ao que diziam muitos analistas políticos internacionais que entendiam ser inevitável a vitória do governo de Madrid, detentor da maioria da força armada e na posse dos principais meios financeiros, das indústrias pesadas e das fontes de produção primária.

Em termos externos, a libertação de Toledo aumentou a esperança de vitória e o prestígio da causa dos auto-intitulados «nacionais» e, internamente, contribuiu de forma decisiva para colocar Franco no comando supremo, militar e político, dos insurgentes, o que aconteceria logo a 1 de Outubro de 1936. Para Franco, responsável pela decisão de mudar o rumo das colunas de Varela, a conquista de Toledo foi a sua consagração definitiva e um conveniente trampolim para a sua afirmação como caudillo incontestado dos sublevados.

A partir de então tudo seria diferente. Com efeito, a epopeia representada por este episódio da revolta foi determinante no conquistar das simpatias internacionais para a causa dos sublevados pela mediatização, alimentada, paradoxalmente, pelo próprio governo da Frente Popular que, numa desastrada gestão do caso, por várias vezes anunciara a capitulação dos sitiados. A Unión Rádio de Madrid, por exemplo, recorrendo a fake-news, apregoara a capitulação dos rebeldes, «como aliás se podia confirmar nos jornais de Madrid» dizia, referindo-se às montagens fotográficas publicadas pela imprensa afecta, em que surgiam os «fascistas» a abandonar o Alcácer, de braços no ar. Mas o Rádio Club Português captara posteriormente uma declaração radiofónica da deputada socialista Margarita Nelken Mansberger, incitando as forças do Governo a tomar o Alcácer, pelo que os jornalistas portugueses se tinham apercebido de que, afinal, ao contrário do que Madrid dizia, aquele reduto não havia ainda claudicado. Radiodifundiram então a notícia, o que levou Franco, na posse dessa informação, a inclinar-se definitivamente para Toledo, na sua marcha para Madrid. Foi também o Rádio Clube Português quem difundiu essa resolução firme, numa emissão captada pelos defensores do Alcácer. A gaffe da deputada socialista (comunista, dois meses depois) contribuiu sem sombra de dúvida para aumentar a esperança dos resistentes.

A maioria dos católicos e não-esquerdistas revolucionários da Europa e da América acabou por identificar como sua a desesperada coragem dos sitiados de Toledo. A resistência do Alcácer acabou por ter uma especial projecção moral, dentro e fora de Espanha, não só pelo seu particular dramatismo mas também pelo facto de Toledo se encontrar tão próximo de Madrid, ponto focal da atenção do público e dos agentes da comunicação social estrangeira que cobriam avidamente a Guerra.

Milicias republicanas em 1936 na fortaleza Alcazar em Toledo

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Estaline não escapou à onda de choque que resultara da surpreendente decisão estratégica de Franco de só cair sobre Madrid depois de libertar Toledo. E apercebendo-se de que afinal a Guerra ainda ia durar, um par de dias depois, decide dar luz verde à intensificação do programa de intervenção em Espanha (a Operação X) que vinha sendo executado desde a Primavera de 1936, meses antes do levantamento militar. A 18 de Setembro, a Komintern tinha já iniciado o recrutamento das Brigadas Internacionais mas Estaline, informado pelos seus agentes de que a vitória das forças da Frente Popular era mais que certa, ainda continuava a fingir jogar pelos termos do Acordo de Não-Intervenção, estabelecido em fins de Agosto.

Após a libertação de Toledo, constatando que as informações tinham sido mais um wishful-thinking do que uma análise fria e descomprometida, Moscovo muda rapidamente a sua estratégia envolvendo-se, às claras, no conflito. A partir de Outubro, todas as instâncias da projecção do poder externo de Moscovo passaram a actuar de forma articulada. O pessoal militar enviado para Espanha foi entregue à chefia do velho bolchevique (participara nas revoluções de 1905 e de 1917) general Jan Berzin (pseudónimo do letão Peteris Kjusis), conhecido no país vizinho como Grishin. Berzin fora o primeiro dirigente do 4º Directório (GRU), o sistema de espionagem militar do Exército Vermelho. Mas, do ponto de vista de poder efectivo, nenhum cargo viria a ser tão marcante como o que o Rezident do NKVD, Aleksandre Mikhaïlovitch Orlov (nascido Leiba Lazarevitch Feldbin), desempenhou. E, num cenário propositadamente arquitectado por Estaline, da insana rivalidade daqueles dois serviços, intercalado com a actuação dos agentes da Komintern, sairiam os principais pretextos para que, no futuro, a maioria dos quadros soviéticos que passaram por Espanha tivessem vindo a ser executados, para aplacar a paranoica suspeição do ditador georgiano.

É no início de Outubro de 1936, mais precisamente a 3, que surgiu pela primeira vez a expressão «quinta-coluna», popularizada posteriormente pelo drama homónimo de Hemingway. Apareceu num texto de Dolores Ibárruri, la Pasionaria, publicado no Mundo Obrero. O historiador escocês Julius Ruiz, que pesquizou a fundo o tema, não encontrou qualquer evidência da origem mitificada da expressão que é geralmente atribuída a um lapso «bronco» do general Emilio Mola que, segundo reza a «lenda», teria afirmado que além das quatro colunas militares que os sublevados tinham lançado sobre Madrid depois da libertação de Toledo, havia que considerar uma quinta, formada virtualmente pelos simpatizantes dos rebeldes no interior da cidade. Algumas fontes atribuíram a expressão a Queipo de Llano e outras mesmo a Franco. Mas a verdade é que nunca foi possível comprovar que qualquer deles a tivesse usado. Ruiz, estudando a estreita relação de la Pasionaria com os agentes da Komintern, entende ser bem mais provável encontrar a sua génese na máquina de propaganda soviética que, entre o fim de Agosto e meados de Setembro de 1936, se instalara em Madrid. O racional da ideia teria sido justificar junto dos mais moderados (e dos estrangeiros) a necessidade de eliminação dos milhares de detidos por suspeita política; que efectivamente viriam a ser massacrados, semanas depois, mormente em Paracuellos.

Estaline, procurando segurar a frente ideológica em Espanha, onde os trotskistas pareciam ganhar terreno, a 16 de Outubro de 1936, enviou a José Díaz, secretário-geral do PCE, um telegrama, amplamente publicitado, em que lhe asseverava que «o povo trabalhador da USSR apenas cumpria o seu dever ao procurar fazer todo o possível para ajudar as massas revolucionárias em Espanha; entendiam que a libertação de Espanha da opressão reaccionária fascista não era um assunto particular dos espanhóis mas uma causa comum de toda a humanidade progressista».

Clarificada a atitude política do Kremlin, havia que fazer evoluir a frente diplomática em consonância, perdidas que estavam as ilusões de uma vitória militar rápida. A nova linha de orientação passava agora por fazer acentuar a ideia de que o governo da Frente Popular era o «único legítimo representante do povo espanhol» e que, concomitantemente, de acordo com a jurisprudência internacional, a proibição do fornecimento de armas apenas se devia aplicar aos rebeldes. Era preciso tocar a gaita democrática para encantar e embaraçar o Reino Unido e a França, forçando-os a afastarem-se da sua posição aparentemente neutral.

Estaline via essa mudança de orientação como uma condição necessária embora não suficiente. Era igualmente preciso que os seus protegidos de Espanha ganhassem a guerra, a fim de impedir que o ímpeto de vitória dos direitistas se propagasse aos «fascistas» da Europa Central. Era, pois, mister bloquear todo o auxílio externo aos insurgentes, actuando no seio do Comité de Não-Intervenção. Como o representante soviético nesse organismo, o embaixador Ivan Mikhaïlovitch Maisky, se encontrasse de férias, foi Serguei Kagan, o seu braço direito, quem declarou à imprensa que, se não cessassem as violações ao Acordo, nomeadamente por parte de Portugal, o governo soviético se considerava liberto de quaisquer compromissos assumidos, naquele âmbito.

A resistência do Alcácer de Toledo

Toledo foi pois o turning-point da guerra civil de Espanha. Mas o que é que de facto aconteceu no Alcácer, desde o levantamento militar nos últimos dias de Julho até à sua libertação no fim da tarde de 27 de Setembro de 1936? Contrariamente ao que respingou do mito do Alcácer, os cadetes da Academia Militar de Toledo encontravam-se de férias. Após uma agressão a um cadete por milicianos esquerdistas, e perante a ameaça latente da reacção musculada, o ministro da Guerra, por sugestão do então governador-civil, Vicente Costales Martínez, tinha decidido que a Academia fosse trasladada de imediato para o vizinho campo de manobras de Alijares e que as aulas da Escola de Ginástica fossem suspensas. Pouco depois, os cadetes foram dispensados e dispersados, entrando prematuramente em período de férias de Verão. Apesar desse facto, persistindo no equívoco, as manifestações laudatórias dedicadas à gesta do Alcácer foram insistindo em designar os defensores por «cadetes», quase por antonomásia.

É verdade que nos dias 19 e 20 de Julho, durante a confusão da tentativa de pronunciamento militar preparado pelo general Mola, havia convergido no Alcácer um punhado de cadetes, mais precisamente 10, sendo inicialmente 9 de Infantaria, alunos da própria Academia, e um de Artilharia (Francisco Javier Valencia Remón). Estavam pela região (alguns até em Madrid) e, face à eclosão da sublevação, tinham decido concentrar-se em Toledo. Um deles, José de la Cruz Presa, filho do subsecretário da Guerra, general Manuel de la Cruz Boullosa, foi logo obrigado a regressar, à força, a Madrid; mas iludindo a vigilância da Polícia, juntou-se às forças insurrectas no quartel de la Montaña del Príncipe Pío, onde viria a morrer no massacre do dia 20. Os outros foram António de Sotelo Fernández, José Luís Coloma Gallegos, Jaime Milans del Bosch y Ussia, Juan Rodríguez de Santiago-Concha, Juan Lanquín Cruz, José Maria Crespo de Mella, Eugenio de Boronat Terol e Ángel Valero González. Mas eram uma escassíssima minoria entre os defensores.

A reacção dos apoiantes da Frente Popular, alimentada por uma inesgotável torrente de milicianos vindos de Madrid, pôs a ferro e fogo a cidade de Toledo e toda a sua província, com numerosas execuções sumárias de direitistas e membros do clero. Perante isso, quer as famílias dos insurrectos, quer os seus mais notórios simpatizantes civis, procuraram igualmente refúgio no velho Alcácer, dando origem a um total de cerca de duas mil pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças.

Na manhã de 18 de Julho, o coronel José Moscardó Ituarte, director da Escola Central de Ginástica do Exército, e que viria a ser a figura proeminente da epopeia do Alcácer, encontrava-se a chegar a Madrid, de camioneta, para preparar a sua projectada ida à Alemanha, a fim de assistir aos Jogos Olímpicos desse Verão de 1936. Tomou então conhecimento da sublevação do exército de África e de Navarra. Face ao clima que constatou nos corredores dos comandos militares e na rua, onde pode observar grande quantidade de civis armados, resolveu regressar de imediato a Toledo. Do visto e percebido deu nota aos comandantes e oficiais que, expectantes, o aguardavam no Alcácer.

Na cidade, as primeiras forças a manifestarem-se pelos sublevados foram os cerca de 600 guardias civiles da região que haviam aceitado cumprir a ordem de concentração dada pelo seu comandante, o tenente-coronel Pedro Romero Basart. Juntamente com alguns oficiais em estágio na fábrica de armas próxima, colocaram-se às ordens do coronel José Moscardó, tornado, por antiguidade, em circunstancial governador militar. (O comandante da Academia de Infantaria, Cavalaria e Intendência e por inerência o governador militar da cidade era o coronel José Abeilhé que, na altura, se encontrava ausente.)

Mal chegado de Madrid e poucas horas após ter sido declarado governador militar, Moscardó negou-se a cumprir a ordem que lhe chegara para enviar para a capital os stocks de munições da fábrica de armamento toledana. Em resposta sancionatória, com intuitos punitivos, saiu de Madrid uma coluna militar, comandada pelo veterano africanista general José Riquelme y López-Bago, e composta essencialmente por guardias de asalto, duas companhias de infantaria, uma bateria de artilharia e uma grande molhada de milicianos frentepopulistas. Chegariam a 21, no mesmo dia em que, pela primeira vez, o Alcácer foi bombardeado pela aviação de Madrid, às ordens do aristocrata comunista Ignacio Pío Hidalgo de Cisneros y López-Montenegro. Depois de declarar o estado de guerra e após uma tentativa falhada de resistir entrincheirado no perímetro exterior da cidade, Moscardó resolveu mandar recolher toda a tropa fiel (e alguns reféns que preventivamente detivera) ao abrigo da cidadela do Alcácer e dos edifícios adjacentes, onde já se encontravam centena e meia de soldados da Academia de Infantaria, Cavalaria e Intendência e recrutas das equipes de ginástica.

A reacção dos apoiantes da Frente Popular, alimentada por uma inesgotável torrente de milicianos vindos de Madrid, pôs a ferro e fogo a cidade de Toledo e toda a sua província, com numerosas execuções sumárias de direitistas e membros do clero. Perante isso, quer as famílias dos insurrectos, quer os seus mais notórios simpatizantes civis, procuraram igualmente refúgio no velho Alcácer, dando origem a um total de cerca de duas mil pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças. Segundo Alfredo Martínez Leal que, em El asedio del Alcázar de Toledo, dá a lista nominal, eram cerca de 1.100 elementos das forças militares e de segurança pública, incluindo 664 guardias civiles e 24 das forças de Asalto, Seguridad y Vigilancia, 45 professores e alunos da Escola de Ginástica, 146 chefes e oficiais (alguns aposentados), os 8 cadetes da Academia de Toledo, o de Artilharia e cerca de 660 civis, incluindo 108 que seriam militarizados, 4 Irmãs da Caridade, enfermeiras, e a sua madre superior Josefa.

O governo da Frente Popular desde bem cedo havia percebido a necessidade imperiosa de tomar as instalações onde os sublevados se haviam entrincheirado. Sobretudo quando a presença do exército de Marrocos no vale do Tejo passou a ser uma ameaça directa a Madrid. Uma vez assegurado o sítio, o experimentado general Riquelme, entretanto substituído em Toledo pelo coronel Aureliano Álvarez-Coque, foi encarregado de estabelecer uma linha de defesa que impedisse o avanço dos revoltosos.

O Alcácer depois da derrocada da fachada norte

Em Toledo, além de atiradores e metralhadoras, colocados à volta de todo o perímetro da periferia da cidadela, foi instalada, em 22 de Julho, na Dehesa de Pinedo, uma bateria de montanha, com canhões de 10,5, logo complementada, dois dias depois, com uma de 15,5. Esta última intervirá muito pouco, sem que se perceba porquê, só regressando à acção na segunda metade de Agosto. Em princípios desse mês, duas novas baterias, agora de campanha, de 7,5, a partir de Pinedo, e outras duas de 15,5, a partir do campo de Alijares, passaram igualmente a flagelar os sitiados, levando ao colapso da maioria das paredes da vetusta edificação.

Lutando contra o tempo, com as paredes da Academia a ruírem de dia para dia, e com os víveres a acabarem, apenas a disciplina, a convicção e a fé permitiam aos rebeldes continuar. No seu espírito esteve sempre presente o que acontecera no quartel da Montaña, em Madrid, ou no de Loyola, em San Sebastián, onde os sublevados que se haviam rendido, desarmados, foram linchados às centenas. Episódio importante para o ânimo dos resistentes foi a descoberta, numa casa próxima do Alcácer de algumas toneladas de trigo, mediante a indicação de um refugiado, o padeiro francês Isidore Clamagiraud, simpatizante da causa rebelde. Foram recolhidos, em diferentes saídas, 360 sacos de 90 kg cada.

Perante a manifesta incapacidade de dar corpo eficaz às múltiplas forças militares e milicianas fiéis a Madrid, Riquelme foi rapidamente substituído pelo coronel Mariano Salafranca Barrio. Este, tirando partido dos seus bons contactos a nível governamental, conseguiu receber reforços de vulto, incluindo carros blindados e uma mítica e glorificada Columna Fantasma. Comandada pelo capitão Manuel Uribarri Barutell, da Guardia Civil, a força havia-se mostrado incapaz, contudo, de ocupar Guadalupe, onde grande parte do povo, apoiando o pequeno destacamento da Guardia Civil, se entrincheirara no burgo para defender o Santuário. A coluna, oriunda de Valência, era constituída por cerca de 2.600 homens, a maioria dos quais do exército regular e, como tal, enquadrada por oficiais e sargentos profissionais em batalhões e companhias. Apenas uma escassa minoria da tropa era composta por milicianos. Na tentativa frustrada de ocupação de Guadalupe, povoação pequena mas de grande relevância histórica e religiosa, fora ainda assim reforçada com elementos do destacamento do dirigente socialista Orencio Labrador Maza, organizador do Regimiento de Campesinos de Toledo. O próprio Riquelme havia estado no cerco à povoação mas com o aproximar de um pequeno destacamento de socorro (seguido de uma coluna) das tropas de Yagüe, resolvera voltar para a segurança do seu quartel-general.

Com uma manobra exímia, Yagüe conquistou Talavera de la Reina a 3 de Setembro, destroçando as forças que impediam o acesso a Madrid pelo sudoeste. O caminho parecia estar livre, como reconheceria o cabecilha comunista Enrique Líster Forján. Perante tamanho desaire, a 4 de Setembro o governo de José Giral Pereira caiu e este foi substituído por Francisco Largo Caballero que, ao acumular a pasta da Guerra, demitiu Salafranca e nomeou para o seu lugar o coronel José Asensio Torrado. Mas Madrid ignorava que, ponderando vários contornos do enquadramento do conflito que não apenas os estritamente militares, Franco já havia decidido, mesmo antes da queda de Talavera, abrir a tenaz que se fechava sobre Madrid.

Com a gesta do Alcácer a dominar a actualidade informativa espanhola e internacional, o comandante do exército do sector, Asensio Torrado deixou o tenente-coronel Ricardo Burillo Stholle a chefiar o dispositivo governamental da frente do Centro, para se lançar ele mesmo no ataque ao Alcácer que, como já dissemos, se estava a tornar num verdadeiro pesadelo para o Governo, símbolo da sua impotência e, ao revés, da heroicidade dos sublevados. Para as forças da Frente Popular, a resistência do Alcácer ameaçava deixar de ser meramente uma questão de propaganda negativa para se transformar num problema militar de nível estratégico, com a aproximação das tropas de Franco. Toledo, espinho cravado na retaguarda, não só se encontrava já muito próximo da frente como obrigava a fixar vários milhares de combatentes, que seriam preciosos nas linhas de defesa de Madrid, contra as forças rebeldes na ofensiva. Sobretudo quando a força frentepopulista que se propusera cortar o passo à coluna de socorro aos sublevados, veio a ser totalmente desbaratada pelas tropas de Varela, que atravessaram o Guadarrama aproximando-se perigosamente da capital.

Madrid tentou tudo para destruir o símbolo da revolta em que a resistência do Alcácer se tornara, desde a coacção mais canalha como a exercida sobre Moscardó com a ameaça de execução do seu filho Luis, tomado refém, até à utilização de um sacerdote colaboracionista (o cónego Enrique Vázquez Camarasa) para os desmoralizar e os convencer a entregar- se. É de realçar que Moscardó, mesmo quando confrontado, a 23 de Julho, com a ameaça de execução do filho, de 24 anos, transformado em ignóbil instrumento da chantagem com que o chefe das milícias da Frente Popular em Toledo, Cándido Cabello, o pretendera forçar a entregar o Alcácer, nunca exerceu qualquer represália sobre os reféns. Luis Moscardó seria assassinado um mês mais tarde junto à Sinagoga do Transito, juntamente com mais setenta prisioneiros, como represália por um bombardeamento efectuado, pasme-se, pela própria aviação governamental que errara o alvo e acertara na rua de Zocodover, matando 8 pessoas.

Perante a angustiante situação do assédio, é digno de nota o facto de os desertores, ao longo de todo o cerco, terem sido apenas 35, tendo-se registado 3 em Julho, 23 no mês de Agosto, sendo 11 na primeira semana, 11 na segunda e apenas 1 na terceira e, finalmente 9 em Setembro, incluindo o único oficial, o tenente de Infantaria Fernando Barrientos, o último combatente a fazê-lo. 

Outro esforço para obter a rendição dos sitiados foi levado a cabo, a 9 de Setembro, por aquele que viria a ser o homem chave na defesa governamental de Madrid, o major Vicente Rojo Lluch. Conseguiu estabelecer uma curta trégua para se entrevistar com Moscardó no Alcácer, para o instar a render-se, a solicitação do Comité de Defesa de Toledo. Cumpridas as formalidades, Rojo, ao despedir-se do seu camarada de curso, o major Blas Piñar Arnedo, e do seu amigo, o capitão Emílio Alamán Ortega, que o convidara a ficar e a juntar-se-lhes, retorquiu-lhes: «Não devo nem quero faltar à minha palavra. Quanto mais não seja, tenho a minha família em Madrid; a sua segurança depende do que eu faça. A minha sorte está lançada. Mas resistam sem vacilar. Sois os melhores e ganhareis. Adeus. Viva Espanha!»

Entretanto, Yagüe, mesmo em inferioridade numérica, mas com melhor espírito combativo, decide atacar as linhas avançadas frentepopulistas e, em dois passos, conquista Maqueda, a 21 de Setembro, como disse. Asensio Torrado regressa precipitadamente ao seu comando e envia o derrotado Burillo para Toledo com instruções para tomar o bastião rebelde «a qualquer preço». Perante a iminente chegada das tropas de Franco, as forças de Madrid em torno de Toledo dividiram-se em duas: uma guarneceria um perímetro defensivo que deveria impedir a progressão das colunas que eventualmente avançassem sobre a cidade; a outra, ofensiva, dentro de Toledo, teria de tentar, a qualquer custo, tomar o cerro da Academia. Estas tropas, constituídas agora essencialmente por comunistas, incentivados pelo enviado especial de Estaline, Mikhail Koltsov, ficaram sob o comando do tenente-coronel Burillo. Na presença do chefe do Governo, o socialista Francisco Largo Caballero, rebentaram duas minas, escavadas por debaixo do Alcácer, com uma carga de 5 toneladas de TNT cada; surpreendentemente, apenas causaram a morte de cinco pessoas, tendo os sobreviventes rechaçado com sucesso o ataque subsequente de quatro batalhões de guardias de asalto e milicianos, comandados pelo major Luis Barceló Jover​. Mas a pressão continuou tendo os sitiados sido bombardeados (inclusivamente com gases asfixiantes) por aviões e artilharia.

Ali esteve o célebre 5º Regimiento de Milícias Populares, construído sobre a estrutura das MAOC (Milicias Antifascistas Obreras y Campesinas), inicialmente às ordens do apparatchik comunista Enrique Castro Delgado e posteriormente, a partir de 19 de Setembro, sob Enrique Líster Forján. Em sucessivas vagas de assalto e repetidos bombardeamentos, os comunistas procuraram a todo o transe acabar com a resistência dos sitiados. Julgando que era humanamente insustentável resistir mais, os assessores de propaganda soviéticos, prepararam, como vimos, notícias da vitória a que queriam dar a máxima repercussão internacional.

Mas não tiveram melhor sorte que os anarquistas e os guardias de asalto, tendo pago bem caro as suas tentativas de conquista. A sanha foi de tal ordem que, por sugestão do socialista Luis Araquistáin Quevedo, chegaram a regar à mangueira as ruínas da Academia com milhares de litros de gasolina para queimar vivos os últimos resistentes, três horas antes das tropas do major Ben Mizzian terem entrado na cidade.

Perante a angustiante situação do assédio, é digno de nota o facto de os desertores, ao longo de todo o cerco, terem sido apenas 35, tendo-se registado 3 em Julho, 23 no mês de Agosto, sendo 11 na primeira semana, 11 na segunda e apenas 1 na terceira e, finalmente 9 em Setembro, incluindo o único oficial, o tenente de Infantaria Fernando Barrientos, o último combatente a fazê-lo. Em The Siege of the Alcazar, o americano Cecil Eby diz que que Barrientos foi fuzilado pelos sitiantes depois de um trânsfuga posterior o ter identificado como tendo disparado uma metralhadora contra os frentepopulistas. Quer Jorge Ruiz de Santayana en La pequeña historia del Alcázar quer Ángel Palomino en Defensa del Alcázar (Memoria de la historia) afirmam que a sua execução se deve a ter-se recusado a lutar contra os seus ex-camaradas, manifestando que a sua deserção se ficara a dever apenas à extrema angústia que lhe provocava a situação da sua mulher, que esperava um filho a qualquer momento. Uma vez que ele foi o último desertor do Alcácer, a versão de Eby é, no todo ou em parte, fantasiosa.

No rescaldo da libertação, a justiça da Frente Popular condenou o coronel Moscardó à morte, por rebelião, desumanidade e instintos perversos; anedoticamente, não se esqueceram de lhe aplicar também uma multa de 1 milhão de pesetas por haver arruinado um edifício, património do Estado espanhol! Quando questionado se sentia sinceramente que tudo estava Sin novedad en el Alcázar, a celebérrima frase que dirigira ao coronel Varela, no dia seguinte ao da libertação, Moscardó afirmou: «Assim o creio e assim o cri então. O Alcácer e eu não fizemos mais que cumprir o nosso dever. Para a fortaleza e para o soldado, a artilharia, que mal deixou pedra sobre pedra, era de somenos; as insónias, a fome, a sujidade, as minas e o filho cujo sacrifício foi inevitável… O Alcácer foi para mim e para todos os que se colocaram voluntariamente sob o meu comando, a ocasião única de dar a vida pela nossa honra e pela de Espanha. Uma vez no Alcácer só isso importava e aquele que voltasse atrás teria que considerar-se cobarde e traidor. Sim, ao terminar o assédio, a honra estava intacta, e não restam dúvidas de que podia dizer- se com toda a propriedade “Sin novedad en el Alcázar”.»

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