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"Aquilo que sempre esteve presente na minha vida foram as histórias. Contar e ouvir histórias. Comecei a pensar em materializar as que tinha", diz-nos Tota Alves
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"Aquilo que sempre esteve presente na minha vida foram as histórias. Contar e ouvir histórias. Comecei a pensar em materializar as que tinha", diz-nos Tota Alves

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Aquilo que sempre esteve presente na minha vida foram as histórias. Contar e ouvir histórias. Comecei a pensar em materializar as que tinha", diz-nos Tota Alves

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tota Alves. “Agrada-me o limbo entre a verdade e a mentira. Há muita verdade na ficção e muita ficção na realidade”

Foi cozinheira, empregada e babysitter antes de se dedicar à escrita e à realização televisiva e de se estrear com duas das séries mais provocadoras da RTP, “O Meu Sangue” e “Dolores Poderosa”.

O estorninho-comum é uma ave de comportamento gregário. Desloca-se em bandos compactos que mudam rapidamente de direção, num espectáculo deslumbrante, exclusivo das estações frias. A argumentista Tota Alves, 30 anos, fala em “infinitos” desenhados nos céus. É ela quem introduz o tema quando num sombrio final de tarde milhares destes pássaros irrompem pelo Campo dos Mártires da Pátria e transformam o jardim do epicentro de Lisboa num magnífico cenário gótico.

Será apenas uma de múltiplas interrupções. Depois de abordada por um grupo de adolescentes que tinha ajudado num trabalho para a escola e que só conhecia das redes sociais, cumprimentados alguns amigos que avistou à distância, e passados os primeiros pingos de chuva, explicará como foi do curso de História em Coimbra para a estreia no mesmo ano de duas das séries mais frescas do laboratório de projectos low-cost RTP Labs: “O Meu Sangue”, dedicada à menstruação, e “Dolores Poderosa”, um falso documentário sobre uma artista que não existe, mas podia.

Num tom doce e assertivo, com indisfarçável sotaque de Rio Tinto, explicará como ainda acredita em mudar o mundo – e vinda de si a afirmação não parece assim tão ingénua. Elege a provocação e o desconforto como armas, mas admite que o seu Santo Graal é o lugar da empatia, de preferência num ecrã perto de si. Quanto à aptidão natural para o desenrasca, transferiu-a também para a televisão, onde não só escreve e realiza, como já fez figuração e até cantou.

[o trailer de “O Meu Sangue”:]

Estudou História. Como é que veio parar ao mundo da televisão?
Acabei o curso de História em Coimbra em 2012, com 22 anos, numa altura em que era muito difícil arranjar um emprego que pagasse as contas. Fui direta para Inglaterra. Queria melhorar o meu inglês e aventurar-me sozinha. O primeiro trabalho que arranjei foi como au pair numa aldeia de 200 pessoas, perto do aeroporto de Stansted. Tinha de tomar conta de uma “criança de 17 anos” que vivia num colégio interno. Limpava, cozinhava, geria o rodopio de funcionários que passavam pela casa: dois ou três jardineiros, os mecânicos que cuidavam da coleção de carros, uma pessoa cuja única função era lavar janelas. Assegurava que a cadela era feliz. Só lá estive três ou quatro meses. Literalmente, fiz uma trouxa e fui para a vila mais próxima, Bishop’s Stortford.

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Outro lugar pequeno. Nunca lhe passou pela cabeça ir para Londres, por exemplo?
Não. Fui para essa vila porque tinha uma casa portuguesa, onde podia encontrar ajuda se precisasse. Tinha noites de karaoke à sexta-feira, que eu adorava, podia beber-se uma super bock e comer um pastel de nata. Ainda trabalhei num pub, numa loja e como babysitter. Depois voltei para o Porto, onde vivi entre 2014 e 2018. Só então vim para Lisboa estudar escrita para cinema e televisão.

[Começam a cair alguns pingos de chuva. Tota sugere aguentarmos, “Se calhar pára. Vamos ver.”]

Isso foi há dois anos e, neste momento, já tem duas séries a passar na RTP Play.
Foi tudo rapidíssimo. No Porto fui cozinheira em três ou quatro bons restaurantes. Faço umas boas bochechas de porco, por exemplo. Não digo os nomes dos restaurantes porque falo muito mal neles na Internet. Fui exploradíssima. Tal como muita gente é. Depois cansei-me de não ter vida própria, de cheirar a comida por todo o lado em troco de uns tostões, de sair muito tarde, com a adrenalina toda, preocupada com o dia seguinte. Passei a fazer catering para eventos, comida para pessoas com dietas especiais, a cozinhar em casas de pessoas “de bem”.

"O lugar do choque é muito mais protagonizado por homens. Para eles é muito mais fácil defenderem-se nessa posição. Não têm tantos olhos a condenar. Isso também se vê no humor. Acho que as mulheres no geral são muito mais julgadas do que os homens."

E a escrita para televisão, como surge?
Aquilo que sempre esteve presente na minha vida foram as histórias. Contar e ouvir histórias. Comecei a pensar em materializar as que tinha. Perguntei a um amigo que estudava cinema como é que se fazia um guião. Depois mostrei-o a uma pessoa de uma produtora de Lisboa, a Videolotion, que tinha conhecido num festival de música. Nesta altura ainda era uma biscateira, mas foi aí que pensei, “e se fosse estudar guionismo?”

[A conversa volta a ser interrompida, agora pelo canto dos pássaros, cada vez mais intenso. Tota identifica-os de imediato: “São estorninhos.” Em contra-pés sucessivos, a lembrar os dos cardumes, o bando de aves vai desenhando nuvens nos céus cinzentos. “É um privilégio aquilo a que estamos a assistir”, comenta.] 

Foi aí que começou a escrever?
Foi aí. A Dolores nasceu numa das aulas do curso técnico que fiz na World Academy, em Carnaxide. Nem se chamava Dolores; acho que era Prazeres.

Passou do prazer para a dor.
Queria uma cantora que chocasse a sociedade. E comecei a escrevê-la. Foi muito rápido. O primeiro episódio saiu com muita naturalidade. Já tudo vivia na minha cabeça.

“O Meu Sangue” e o tabu da menstruação: “É natural e é o único que é censurado”

O que lhe interessa nessa ideia do choque?
Gosto do desconforto. Do aleatório, do inesperado. Também gostava que esta cantora existisse na vida real. Acho que o lugar do choque é muito mais protagonizado por homens. Para eles é muito mais fácil defenderem-se nessa posição. Não têm tantos olhos a condenar. Isso também se vê no humor. Acho que as mulheres no geral são muito mais julgadas do que os homens. Pela imprensa, pela opinião pública.

E porquê este formato de “mockumentary” [documentário ficcional]?
Agrada-me o limbo entre a verdade e a mentira. Acho que há muita verdade na ficção e muita ficção na realidade. No geral, fascina-me a sensação que se pode ter ao ser-se levado por uma boa história, sabendo-se que se está enganado. Aliás, a pretensão era fazer da Dolores um documentário e não um “mockudrama”. O objetivo era ela existir realmente.

"Escrevi, realizei, fiz a arte... Às vezes olho para os meus projetos e penso em que como poderiam ser com mais dinheiro. Mas é sempre esse o problema em Portugal."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Queria criar uma vida para ela?
Queria criar uma vida para ela. Concertos, uma digressão. E fazer um documentário sobre isso. Tanto que ela tem uma conta de Instagram que sou eu que faço e tem a imagem da atriz Xana Novais.

Fui lá parar e confundiu-me.
Era esse o objetivo. Nada daquilo é verdade. Nada existe. Mesmo as músicas sou eu a cantar. A atriz faz “dublagem”.

Faz muitas coisas na série…
Escrevi, realizei, fiz a arte… Às vezes olho para os meus projetos e penso em que como poderiam ser com mais dinheiro. Mas é sempre esse o problema em Portugal.

[Nova interrupção. Agora um cão, que para para cheirar. Com o cair da noite e da chuva miudinha, o jardim, que nestes tempos pandémicos passou a ser mais procurado, vai-se esvaziando.]

A ação da “Dolores” começa nas redes sociais. Discursar sobre as redes sociais era também um objetivo ou, sendo passado nos dias de hoje, não havia volta a dar?
Queria falar sobre a criação de um ídolo. E acho que as redes sociais, hoje, são um pilar fundamental para a construção de uma personalidade. É um lugar super democrático onde toda a gente exerce o seu direito de falar. Ao mesmo tempo também são um grande “Santo Ofício”. Há muita maldade, muito julgamento.

Apesar disso, sente-se confortável ali.
Às vezes, sim, outras vezes, não.

Mas é bastante ativa. No Facebook, no Instagram, no Twitter…
Às vezes, mais do que outras. No Twitter estou só como espectadora. É muito violento e muito rápido. Tem de se estar sempre a produzir.

"Tenho todo o apreço sobre opiniões diferentes das minhas porque me fazem pensar. Vivo a ideia de que as pessoas são mutáveis e o problema das redes sociais é que congelam opiniões."

Impressionou-me a forma incisiva como se pronuncia, muitas vezes sobre temas polémicos e muito diversos, desde os direitos das mulheres à morte de Maradona.
Assumo que de alguma forma poderei ser polémica. E estou muito disposta a conversar sobre aqueles assuntos. Tenho todo o apreço sobre opiniões diferentes das minhas porque me fazem pensar. Vivo a ideia de que as pessoas são mutáveis e o problema das redes sociais é que congelam opiniões.

Os jornais e as revistas já eram assim.
É verdade. Acho é que as redes sociais são um espaço de debate. Os jornais são um espaço de exposição. Hoje com as caixas de comentários está um bocado a mudar. Nas minhas redes há mais um contacto direto com as pessoas.

Mas parece-me que gosta dessa troca de opiniões, de estimular o debate. Ninguém a obriga a estar ali.
Gosto, mas também me dá dores de barriga. Vivo uma relação de amor-ódio com as redes.

Num post seu sobre o Maradona, alguém comentava que gostava muito de si mas que de vez em quando era muito irritante…
Um professor meu!

[“Dolores”:]

E a sua resposta era qualquer coisa como, “dizem-me isso com regularidade. Eu prefiro irritar mas questionar.” Não tem medo de se tornar num grilo-falante?
Sou um grilo-falante! Sou muito chata.

Está confortável com isso?
Começo a estar confortável. Então nas questões feministas, prefiro ser uma chata. E sou. Sou tão chata, sou mesmo muito chata. Sou essa pessoa.

Usando as suas palavras, porque é que é “chata”?
Tenho um escorrega entre o cérebro e a boca. Sou impulsiva. Às vezes arrependo-me. Nesse caso do Maradona, tenho mixed feelings sobre o que escrevi [Entre outras coisas, “vim só aqui lembrar a todas as pessoas e páginas de esquerda que fazem posts sobre ele, que há um vídeo muito recente do vosso ídolo a bater na namorada”]. Não tenho nada contra quem adora futebol e tenha o Maradona como referência. A crítica dirigia-se às pessoas de esquerda que lhe chamavam “camarada”. E não é só o bater na mulher; é a quantidade de filhos que não reconheceu, a quantidade de mulheres que utilizou como objeto… Não é essa a minha revolução.

"Tenho um escorrega entre o cérebro e a boca. Sou impulsiva. Às vezes arrependo-me"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Recebeu muito “hate” [mensagens de ódio]?
Deste não, e adorei o debate que suscitou. Com “O Meu Sangue” recebi. Mensagens a dizer, “és nojenta”. No Twitter, então, houve uma mega polémica. Vivemos uma época em que muita realidade parece ficção e muita ficção parece realidade. A dada altura, alguém diz que obviamente nós mulheres bebemos o nosso sangue menstrual e que é para isso que servem os copos menstruais. E houve muitos homens a acreditar. Envolveu milhares de tweets, foi “trend” [tópico mais mencionado do dia]. A RTP Play aproveitou e fez um tweet a dizer, “está a haver muita desinformação. Quem quiser pode ver esta série ‘sobre pessoas que menstruam’”. E esta expressão, que eu também utilizo, deu origem a outra polémica sobre as pessoas “trans” [transgénero], e aí também acabei por levar com “hate”.

Na sua opinião, o que está na base desse ódio?
As pessoas parecem pensar que a menstruação é um tema que pertence à intimidade das mulheres e que não tem jeito nenhum estar a filmar-se sangue menstrual. O que é um bocado estranho porque está-se sempre a filmar sangue. Imagens de guerra, filmes de heróis. No futebol um jogador vai contra uma trave e vê-se sangue. Acho que o que faz confusão aos homens é ser sangue que sai de uma vagina. Da parte das mulheres houve uma ótima receção.

"Antes diziam-me, 'um dia vais crescer e vais perceber que as coisas não são bem assim'. O que é certo é que eu cresci e estou ainda mais crente na possibilidade de o mundo existir de outra forma."

Em 2015, o Instagram censurou uma fotografia da artista Rupi Kaur, em que se via uma mulher deitada de costas, com uma mancha de sangue nas calças.
Acho que o corpo da mulher ainda está bastante colonizado. Mesmo a questão dos pelos. O nosso corpo tem de assumir uma postura de agrado no espaço público. Isso significa que o nosso sangue não pode ser visto. Qualquer mulher esconde uma mancha de sangue que apareça nas calças, mas se for uma mancha de ketchup na camisa vive bem o resto do dia.

Para si, arte e ativismo são indissociáveis?
Esta série é ativismo. Achei estranho este tema nunca ter sido abordado antes. Mas nem tudo o que faço é nem tem de ser ativismo. Sobretudo, tenho muita vontade de contar histórias de mulheres. Gostava muito de fazer uma série documental sobre pelos, um dia. E também tenho uma ficção na cabeça que gostava de levar para o ecrã. Tenho mais interesse na televisão do que no cinema. Gosto do lugar do mainstream. Gosto de fazer coisas a pensar num público que vai desde a rapariga de 15 anos da EB 2,3 de Sacavém à senhora que está em casa a passar a ferro e a ver uma novela. É esse o lugar em que eu quero pôr o dedo na ferida.

É isso que lhe interessa, pôr o dedo na ferida?
Ainda tenho muito a aprender. Quero pôr o dedo na ferida, mas de uma forma em que as pessoas se relacionem. Encontrar o lugar da empatia. Um lugar comum em que o convite ao pensamento é a parte mais importante.

E o que faz a “biscateira” neste momento?
Faço comunicação política. Mas prefiro não falar nisso, separar as águas. Mais para proteger o partido para quem estou a trabalhar do que a mim. Sendo que não sou militante.

"Gosto de fazer coisas a pensar num público que vai desde a rapariga de 15 anos da EB 2,3 de Sacavém à senhora que está em casa a passar a ferro e a ver uma novela."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como é que isso aconteceu?
Quando vim para Lisboa continuei a fazer biscates, incluindo cozinhar em ações deste partido. E era um grilo-falante, “pica-miolo”. Nas legislativas perguntaram-me se queria juntar-me à comunicação. Desde então que faço as redes sociais. Gosto das coisas direitas. Gosto de pensar estrategicamente e a longo prazo. Sou muito chata. Eles não podem comigo. Mas fiz bem em ser assim. Os resultados têm sido melhores. Muitas vezes as redes e a comunicação das organizações são demasiado imediatistas, não vão ao encontro das pessoas. E depois vêm pessoas com outros tipos de estratégia, como é o caso do André Ventura, e ganham muito terreno. Tem de se conseguir… nem é responder, é dar uma alternativa. A política não é sobre o António Costa ou a Catarina Martins; tem a ver com todos nós.

Sempre foi assim, “pica-miolos”?
Sim. Em minha defesa, acho que consigo arranjar um equilíbrio em que as pessoas muito pacientemente lidam comigo e em que há um carinho mútuo muito grande. Em casa picam-me eles o miolo a mim. Antes diziam-me, “um dia vais crescer e vais perceber que as coisas não são bem assim”. O que é certo é que eu cresci e estou ainda mais crente na possibilidade de o mundo existir de outra forma.

Cresceu em Rio Tinto que pertence a Gondomar. É verdade que, quando era presidente da câmara, Valentim Loureiro deu uma torradeira à sua família?
Ele dava eletrodomésticos às famílias, mas à minha, que me lembre, não. Deu-me, sim, em mão, dois contos para eu andar nos carrosséis da [Festa de] Nossa Senhora do Rosário. Ele andava lá com um molho para dar às crianças. Dois contos é o equivalente a 10 euros. Foi há 20 anos. Éramos três amigas. Ainda deu para umas voltinhas.

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