Com a chega de O Cânone às livrarias portuguesas, uma escolha de 50 autores fundamentais na literatura portuguesa, com coordenação de António Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, duas perguntas surgem com frequência. A primeira é “porquê estes autores”, e essa explicação estará nas páginas do próprio livro, no ensaio que acompanha cada uma da das seleções. A outra pergunta surge em formato duplo: o que é e para que serve um cânone?
O cânone é, ao mesmo tempo, mais antigo e mais recente do que qualquer cronologia pode precisar. Das abonações dos dicionários aos escolásticos argumentos de autoridade, a ideia de cânone está presente em toda a parte: há um conjunto de textos, autores ou ideias que devemos conhecer para estarmos bem informados, ou para provarmos as maravilhas do estilo literário, ou para comungarmos da boa doutrina literária ou filosófica.
Ao mesmo tempo, vemos que uma ideia tão disseminada não tem a sistematização que seria de esperar. Os estudos sobre “o cânone” são, em geral, recentes e não muito comuns. Todos conhecemos O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, mas só com dificuldade encontramos obras com as mesmas pretensões. O cânone é muito mais usado do que discutido, não só naquilo que o constitui – os autores ou os livros que fazem parte do cânone — mas também nas suas funções.
É obviamente, difícil encontrar os requisitos para definir aquilo que faz parte do cânone. Há uma certa circularidade que se expressa bem na ideia que a Igreja faz de tradição. Para que um autor seja considerado “da tradição”, é necessária a correção da doutrina; ao mesmo tempo, para validar a doutrina é fundamental o testemunho da tradição.
Também no cânone literário há alguma desta subsidiariedade mútua. O que é que leva um autor a fazer parte do mais rico ou mais representativo de uma literatura? A sua originalidade, a “qualidade” (seja esta o que for), a riqueza de vocabulário, a argúcia na compreensão do mundo, e uma série de argumentos qualitativos cujo valor é dado pelo próprio cânone.
A estes critérios de difícil precisão, acrescentam-se mais algumas dificuldades. Há uma originalidade que, regra geral, é suficiente para tornar um autor ou um livro canónicos; o facto de o Beowulf ser praticamente o único testemunho completo da literatura anglo-saxã dá-lhe um estatuto solidíssimo no cânone da literatura; por outro lado, a Primavera de Meninos, primeiro conto escrito em português, dificilmente faz parte das listas de obras canónicas, mesmo quando tratamos da nossa língua. O cânone tem pretensões a uma certa representatividade histórica, linguística e imaginativa, funcionando ao mesmo tempo como uma espécie de catálogo das glórias e cronologia dos marcos fundamentais, a que depois não se preocupa em responder. Em certo sentido, é como se o cânone se fosse legitimando por aquilo que as pessoas leem e por aquilo que consideram que é o cânone, quando o seu objetivo passa precisamente por educar sobre aquilo que é o cânone.
De Camões às Três Marias: estes são os nomes que fazem parte do cânone da literatura portuguesa
A este problema é preciso acrescentar o grande drama pós-moderno. É evidente que há no cânone um sentido de hierarquia e um juízo sobre o material escrito ao longo dos tempos que condiciona o gosto. Isto, num tempo que já conheceu o estruturalismo e o seu combate contra os mecanismos de uniformização do pensamento, tem já um programa ideológico quase proscrito. Subentendida no cânone está a ideia clássica de que a tradição é formadora, de que há mais riqueza fora de nós do que naquilo que podemos alcançar apenas por nós. No embate entre Rousseau e a educação clássica, o cânone é obviamente pré-moderno.
E, apesar disso, a ideia de cânone surge com muito mais vigor na chamada Modernidade do que nos tempos Antigos. É certo que há a querela sobre os Antigos e Modernos, que é de alguma maneira uma querela sobre o cânone; porém, a tentativa de encontrar o cânone é muito mais recente do que se podia esperar. Aquilo que, nos tempos antigos, mais se aproxima do cânone são as obras enciclopédicas. O Cancioneiro de Resende, por exemplo, está livre do esforço de hierarquização; mesmo o conjunto das Anedoctas Portuguesas, o conjunto de histórias sobre a sociedade quinhentista encontrado há pouco menos de meio século na Biblioteca do Congresso, procura os ditos mais espirituosos, os acontecimentos mais bizarros e tudo aquilo que pode ser digno de registo, não pelos autores, mas pela substância daquilo que é dito ou escrito.
Erasmo, por exemplo, dedicou grande parte da sua vida (e aliás, foi sobretudo isso que lhe deu reconhecimento) à recolha de aforismos e ensinamentos Antigos que denotam uma vontade de encontrar uma sabedoria a que poderíamos chamar canónica, mas que é minada pela ideia enciclopédica. Enquanto o cânone é exclusivo, a relação do mundo Antigo com a tradição literária parece menos selecta. A autoria, preocupação essencialmente moderna, é um elemento quase marginal destas recolhas a que podemos chamar antepassadas dos cânones.
Mesmo quando, no século XVIII, se começa a sistematizar o esforço pelo reconhecimento dos autores (que culminará no culto oitocentista e romântico do génio), ainda não nos parece tão presente a ideia de cânone. A Biblioteca Lusitana, de Barbosa Machado, embora dedicada aos autores é essencialmente enciclopédica; e mesmo o Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, posterior, tem alguns juízos sobre a qualidade dos autores, mas não deixa de abarcar todos os que pode.
Curiosamente, é a partir das guias de estilo e dos dicionários, mais do que a partir das apreciações literárias, que o cânone começa a ganhar definição. Quando Francisco José Freire, Bluteau ou Morais precisam de abonações, recorrem a certos autores mais “legítimos” em matéria linguística ou em correção gramatical. Note-se, no entanto, que nenhum gramático faz a defesa destes autores; o seu lugar respeitável é dado como uma evidência, isto é, como se houvesse um cânone já reconhecido, não escrito, a que os gramáticos poderiam recorrer.
O cânone tem uma certa genealogia que o vai tornando, lentamente, mais explícito e mais próximo da ideia que temos hoje de cânone. De uma coleção de ditos ou histórias dignas de renome, passa a uma coleção de autores, cuja importância é reconhecida, primeiro gramaticalmente, depois literariamente, deixando agora de lado o sentido confuso da palavra.
É curioso notar, no entanto, que entre as coleções de ditos espirituosos e as abonações gramaticais, entre as obras de maior exotismo e os mais preciosos documentos históricos, a lista não é muito variável. João de Barros poderia ser um clássico historiográfico e pouco dizer à pureza da língua, como Camões, Diogo do Couto ou Fernão Mendes Pinto. No entanto, vemos que qualquer autor canónico é tão depressa fonte de abonação linguista como testemunha histórica ou etnográfica dos melhores académicos. Há um sentido “total” naquilo a que habitualmente chamamos canónico que poderia avançar para uma definição: canónico é aquilo cuja validade ultrapassa o propósito com que foi escrito. O Primeiro Cerco de Diu de Francisco de Andrade poderia ser assim tão canónico como Os Lusíadas, ou os Sermões de Bartolomeu de Quental tão canónicos quanto os de António Vieira.
Esta definição peca, no entanto, por ser feita à posteriori. Isto é, não há nada num texto que o torne mais propício a ser usado como fonte indireta que não seja a vontade do investigador. Esta, no entanto, já está naturalmente tomada pelo estatuto canónico dos autores. Claro que é mais fácil para o genealogista reparar nos “Almeidas por quem o Tejo chora”, dos Lusíadas, do que uma referência genealógica num obscuro folheto seiscentista sobre o roubo de Santa Engrácia: o conhecimento do cânone torna natural o seu aproveitamento, de tal maneira que este se torna a si próprio um mecanismo de reafirmação do seu estatuto.
É interessante, então, procurar a origem deste estatuto. E se há alguns esforços válidos, como o Romanceiro de Almeida Garrett ou até uma História da Literatura Portuguesa continuada por Camilo Castelo Branco, a verdade é que a primeira grande História da Literatura Portuguesa a definir um cânone a que hoje pouco fugimos é a de Teófilo Braga.
É claro que todas as gerações têm os seus autores mais canónicos — o Padre João de Lucena, visto no século XIX como um dos maiores exemplos de purismo linguístico e hoje quase esquecido, é apenas um exemplo; no entanto, o cânone da literatura Portuguesa, perpetuado pelas Histórias da Literatura com maior divulgação, como as de Fidelino Figueiredo ou António José Saraiva e Óscar Lopes, não foge muito àquele que Teófilo Braga, depois da explosão literário provocada pelo aparecimento de manuscritos e fólios vindos das bibliotecas das Ordens extintas, foi definindo.
É preciso notar, também, que parte importante da perceção do cânone vem também da disponibilidade das obras no mercado. Neste sentido, tão importante quanto a História da Literatura de Teófilo Braga foi a coleção de clássicos da literatura portuguesa dirigida por Luciano Cordeiro ou a coleção de clássicos Sá da Costa. Quantas bibliotecas particulares não cingem o seu departamento de clássicos àqueles que a livraria Sá da Costa editou? E no entanto, há pouca razão para que a Marquesa de Alorna seja mais canónica do que o Padre José Agostinho de Macedo, ou que Diogo Bernardes seja mais clássico que o seu irmão Frei Agostinho da Cruz.
As coleções editoriais potenciam aliás um fenómeno curioso de estabilização do cânone. O Prato de Arroz-doce, de Teixeira de Vasconcelos, ou o In Illo Tempore, de Trindade Coelho, têm lugar em quase todas as coleções de clássicos portugueses, sem que saibamos muito bem o que é que os tona mais canónicos do que, imaginemos, Frei António das Chagas ou Frei Pantaleão de Aveiro. A partir das coleções de clássicos, sejam estas referidas, sejam as do planeta de Agostini escolhida por Vasco Graça-Moura, podemos recitar quase de cor um cânone-lugar-comum: começamos por Fernão Lopes se não quisermos ir ao Cancioneiro da Ajuda, na Idade Média ainda referimos o Palmeirim de Francisco de Morais e as obras dos Príncipes de Aviz, seguimos por Zurara, Rui de Pina, João de Barros e Diogo do Couto para os Historiadores, Gil Vicente, Camões, Sá de Miranda, Diogo Bernardes e Bernardim Ribeiro para os poetas, vamos ao tempo dos Franciscos com Rodrigues Lobo e Manuel de Melo, Padre António Vieira depois do Frei Luís de Sousa e de Manuel Bernardes, António José da Silva e Cavaleiro de Oliveira, Bocage, José Agostinho, Marquesa de Alorna e entramos no século XIX onde o cânone engrossa em proporções larguíssimas.
E se nos séculos XIX e XX lavrar o cânone ainda é um exercício divertido porque navegamos num terreno vivo, em que muitos atores secundários têm defesas apaixonados, quando andamos para trás o exercício fundamental é de reciclagem dos mesmos, dos único disponíveis para quem os quiser ler.
Este cânone, lançado agora por Miguel Tamen, António Feijó e João R. Figueiredo, embora trate um pouco da literatura portuguesa pré-século XX é essencialmente uma tentativa de ordenar o século XX. Neste sentido, mais do que uma revisão do cânone, esta lista procura definir o estatuto canónico daquilo que ainda não foi objeto desse trabalho. Numa perspetiva mais ampla, seria difícil reclamar para Gomes Leal ou para Irene Lisboa um estatuto mais canónico do que o de o de João de Barros ou de Dom Francisco Manuel de Melo; no entanto, percebe-se que a preocupação passe sobretudo por sujeitar a uma ordem uma literatura, a contemporânea, que poucas vezes tem sido apresentada fora da divisão por correntes, sem o esforço de medir comparativamente a importância de uns e outros autores.
O cânone, com todas as suas maravilhas, com o seu esforço de sistematização, é também responsável pelo escondimento daquilo que decidiu esquecer. É bom que haja quem nos lembre que há Sá de Miranda e Francisco Manuel de Melo; no entanto, é também essa lembrança que esquece aqueles que, por azar da fortuna, foram abandonados no Cancioneiro de Resende e não voltaram às rotativas modernas impulsionados pelo cânone. O cânone é uma guia fundamental da literatura; mas para existir é preciso que seja continuamente desafiado, não só por aqueles que escrevem, mas também por aqueles que estudam a História, à espera de um esquecido a quem o pó não fundiu o brilho.