Moradas trocadas. Réus desaparecidos. Testemunhas insuficientes. Um desastre. Os problemas detetados no Citius a 1 de setembro, no primeiro dia da entrada em vigor do novo mapa judiciário, levaram a ministra da Justiça a anunciar um Plano B. Quarenta mil processos já podem ser consultados por magistrados, funcionários judiciais e advogados, mas o sistema está longe da perfeição. A equipa que o gere avisou que em quatro anos vai haver um colapso e vai tudo abaixo. E para colocar de pé a Plataforma Informática, anunciada por Paula Teixeira Cruz em início de mandato, são precisas cerca de duas legislaturas, ou seja, quase oito anos. Quando é que os tribunais deixam o Citius e ficam no sítio?
As bases do sistema informático onde são colocados os processos cíveis, de família e menores e algumas gravações e notificações dos processos-crime não nasceu por concurso público. Partiu da iniciativa de um grupo de oficiais de justiça curiosos, que por acaso sabiam programar. Na altura, nos finais dos anos 1990, o parto do sistema deu-se numa sala alugada pelo Ministério da Justiça em Coimbra. Foi ali que a equipa o batizou de “Citius/Habilis” e que o desenvolveu em Vbase 6, uma linguagem de programação entretanto caída em desuso. A ideia era a de ter um sistema onde fosse possível colocar os processos digitalizados, permitindo uma consulta mais simples e prática.
O Governo de José Sócrates, que sempre defendeu o uso das novas tecnologias, aprovou uma lei que generalizava o uso do sistema. Corria o ano de 2009 quando todas as comarcas passaram a usar o Citius. Um sistema que já na altura dava problemas. “Chegava a ficar uma semana inteira sem funcionar”, conta ao Obervador uma fonte do Ministério da Justiça. De tal forma que muitos funcionários começaram a chamar-lhe “o bruxedo”.
Em novembro de 2012, quando o Instituto de Gestão Financeira e de Infra-estruturas da Justiça (IGFIJ) se fundiu com o Instituto das Tecnologias de Informação da Justiça (ITIJ), a equipa que fez nascer o Citius demitiu-se em bloco. Não concordavam com a nova direção. “Eles foram pressionados para justificar as ajudas de custo. Um oficial de justiça que ganha cerca de 1.200 euros, naquele serviço chegava a ganhar cinco mil euros com ajudas de custo”, disse a mesma fonte. Da equipa de doze oficiais que geriam o sistema, dois ficaram. Mas não conheciam assim tão bem como tudo funcionava. Os outros levaram o segredo da máquina com eles.
No dia em que a nova equipa do IGFIJ chegou à sala, em Coimbra, para entrar no sistema, pôs as mãos à cabeça. Havia máquinas. Ou, melhor, computadores. Mas não havia manuais de instrução. Tiveram que estudar tudo para perceber como mexer no sistema. O berço do Citius acabaria entregue ao seu dono. A equipa decidira criar um servidor central, algures em Lisboa. Em vez de existirem 340 bases de dados, uma para cada tribunal, passaram a haver 23, uma para cada comarca. Em janeiro de 2013, todo o sistema de justiça passava por cabos de fibra óptica dedicada. Todos? Não. A Procuradoria Geral da República, por uma questão de separação de poderes, decidiu ter o seu próprio sistema. Aquele que ainda recentemente foi atacado por hackers.
Técnicos tinham pedido dez dias de testes. Tiveram três
A ministra da Justiça, Paula Teixeira Cruz, chamou-lhe Plano B. E espera que em outubro o caos instalado nos tribunais esteja resolvido. O Plano B chama-se, na verdade, V3. E é uma aplicação instalada no Citius para receber os processos do V2, a versão que era utilizada antes da entrada em vigor do novo mapa judiciário. Durante o mês de agosto fizeram-se testes de migração para que tudo estivesse em ordem a 1 de setembro. E chegou a estar. Das 00h00 de 27 de agosto até às 9h00 de 1 de setembro, os 2,7 milhões de processos entraram todos no sistema. (Fala-se em 3,5 milhões, mas esse número inclui processos terminados, prontos a serem levados para o arquivo). A chuva de erros e de problemas começou depois.
O sistema teve que ser inutilizado para os técnicos poderem intervir. Já tinham alertado a ministra de que o ideal era terem dez dias antes da entrada em vigor do mapa. Até ali, os testes tinham sido feitos em pequenas amostras de cada comarca e o sistema tinha aguentado. Mas a justiça não para. E a pressão sobre a ministra era grande. “Não aguentou o peso de tantos processos”, disse a fonte. As previsões do Governo para a resolução do problema começaram por ser de algumas horas, para passarem a ser 24 e depois de 48 horas. Até que se partiu para o Plano B.
As queixas caíram dos mais diversos setores: funcionários judiciais, advogados, magistrados. Alguns processos tinham perdido réus, os de família e menores davam erros, as testemunhas tinham moradas erradas, ou moradas onde já não viviam e que chegaram a ser substituídas no próprio Citius. “O que aconteceu é que os chamados metadados não chegaram ao outro lado porque a plataforma inicial tinha metadados diferentes”, disse a fonte.
Foi o que aconteceu com os processos com menores, em que o campo no número de identificação fiscal que agora é obrigatório, era preenchido com números aleatórios antigamente. “Quase nenhuma criança tinha número de identificação fiscal e os funcionários, para conseguirem passar para o passo seguinte no sistema, inseriam números aleatórios. Na passagem para o novo sistema, tudo isto esbarrou e deu erro”.
No Plano B, que a ministra anunciou esta semana na audição parlamentar de que foi alvo, e na qual os deputados da oposição voltaram a pedir que se demitisse, foi ainda consagrada a possibilidade de os magistrados de cada comarca descarregarem processos de um sistema para o outro. Desde 1 de setembro, a V3 já recebeu 40 mil processos (segundo atualização a que o Observador teve acesso na noite de quarta-feira) e só 12 mil processos eram daqueles que tinham que ser mudados de sistema. Todos os outros são novos. O volume processual é tão grande que a equipa do Instituo de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) já preveniu a ministra: o sistema é fraco e não vai suportar o volume processual. Tem morte à vista dentro de quatro anos, quando colapsar.
A Plataforma que não sai do papel
O despacho da ministra da Justiça é de 2011 e até diz que a situação é “premente”. A ideia de criar um sistema de informação da gestão processual em todas as jurisdições, de alta segurança e com graus diferenciados de acesso”, que integrem todos os serviços do Ministério da Justiça, no entanto, ainda não saiu do papel. É que o novo mapa judiciário teria que entrar em vigor em setembro de 2014 e não havia tempo. Fonte do Governo explica que houve logo impugnação do concurso para o caderno de encargos, que este terá de ser novamente lançado. “Um concurso internacional demora 18 meses. E o Citius não deverá aguentar mais de quatro anos”. Foi, aliás, isto que o Instituto já tinha dito à ministra.
Atualmente há uma equipa de 50 pessoas a aproveitar as noites para pôr as mãos (e os olhos) no Citius. Vinte são colaboradores externos, recrutados para reforçar a equipa. Quem trabalha com eles diz que estão a fazer tudo. É ali que comem e dormem. Depois, quando chega a manhã, vão tomar banho a um ginásio no Parque das Nações, em Lisboa, nas imediações do Campus de Justiça.