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Anadolu via Getty Images

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Trump, Kamala e o debate visto do sofá: à televisão o que é da política

Já tínhamos Óscares e Globos, Grammys, Emmys, futebol ou Fórmula 1. Este é só mais um espectáculo televisivo além-mar para vermos fora de horas: com atores, guião, improvisos e discursos de vitória.

Será que, enquanto sociedade, nos interessamos cada vez mais por informação, política, assuntos internacionais? E que, portanto, agora os queremos acompanhar como, dantes, só fazíamos com grandes eventos do desporto ou do espectáculo (pão e circo, diriam alguns)? Ou foram a informação, a política, as coisas ditas sérias que desceram ao nível do espectáculo?

Vamos dizer, para não deprimir, que há um pouco de verdade em ambas as ideias. Na madrugada desta quarta-feira, a primeira sensação perante o panorama montado para acompanhar o debate entre os dois candidatos presidenciais norte-americanos, a pouco menos de dois meses das eleições, era, inevitavelmente, esta: parecia noite de Óscares. Ou dia de clássico. Um combate de boxe em que cada gesto dos pugilistas seria, cuidadosamente, dissecado pelos painéis de comentadores em estúdio.

Os três canais portugueses de notícias transmitiram, em direto, a mesma emissão da ABC, com o sinal a chegar, claramente, primeiro à CNN Portugal, depois à RTP3 e, finalmente, à SIC Notícias, que ainda sofria adicionalmente de frequentes quebras na transmissão. Mas, azar dos azares, foi a única estação com o bom senso de não falar por cima dos protagonistas, de não os tentar traduzir em tempo real e acabar, a contrario, a produzir aquele efeito de caos, muito típico das noites de Óscares, em que não se percebe nem o que os protagonistas estão a dizer no idioma original, nem o que os tradutores tentam amanhar por cima.

Na RTP3, traduzem mais depressa do que na CNN e, aparentemente melhor, serão especialistas nisto, quase não param para respirar, mas tiveram o cuidado de arranjar duas vozes: uma masculina para quando fala Donald Trump… e outra masculina para quando fala Kamala Harris. Na CNN, são os próprios jornalistas quem traduz, voz feminina para Kamala, voz masculina para Trump. A voz feminina tem de ir, mais do que uma vez, em socorro da masculina. Quem nunca passou pelo mesmo, que atire a primeira pedra.

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Trump é, efetivamente, mais espontâneo do que Kamala Harris. Mas aqui, talvez como tantas outras vezes, o trabalho duro tenha batido o talento natural

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De resto, temos os intervalos, preenchidos com a bateria de comentadores nos estúdios das respetivas estações a avaliar as prestações de um e outro candidato. Até dão notas, tomando o gosto ao que têm feito nas eleições nacionais, à atenção das equipas de campanha democrata e republicana para debates futuros (alerta ironia). Não verificámos se a CMTV ou a Now estariam ou não a transmitir; receámos ver o Fernando Mendes e o Diamantino Miranda a acompanhar o debate e a esbracejar. “Mas imigração o quê? Qual imigração? O gajo estava fora de jogo!”

O entretenimento é uma máquina que se alimenta dela mesma; se parar, cai. Extingue-se. É preciso estar sempre a soprar a chama. Porque, se todos parássemos para pensar na desproporção deste acompanhamento em direto e em simultâneo em todos os canais, madrugada fora, como se um cidadão de, digamos, Alverca, não pudesse esperar pelos resumos, comentários e análises no dia seguinte, já ponderadas em cima da imprensa americana, como se, para mais, não vivêssemos num mundo onde as vastas audiências televisivas no horário das duas às quatro da manhã, de um dia de semana, que quisessem mesmo muito, muito, ver o debate ao mesmo tempo que, digamos, um eleitor do Nevada, o poderiam fazer, sem dificuldade, via internet, se parássemos para pensar nisso tudo, talvez explodisse a cabeça dos comentadores. Em directo.

Até porque, lamentavelmente, acaba de chegar à nossa redação uma notícia de última hora: quem vai decidir estas eleições não é o eleitor noctívago de Alverca – nem sequer os eleitores americanos. Será apenas o tal eleitor do Nevada. O do Nevada e os dos outros seis “swing states” que, ora votam azul, ora votam vermelho, e que são os únicos que, realmente, vão dizer se preferem Trump ou Kamala, independentemente de quão óbvia a escolha nos possa ou não parecer. Nada mais importa.

Na política-espectáculo norte-americana, animada por comícios com ares de circo e tempos de antena que se confundem com trailers de filmes-catástrofe, não deixa de ser curioso que o momento-chave, o encontro potencialmente decisivo entre as partes, seja tão deliberadamente sóbrio, escuro, despido.

Do estrito ponto de vista do espectáculo televisivo, o show foi relativamente pobre – mas essa foi a melhor notícia da noite para a informação e o esclarecimento do público. O comportamento em debates anteriores, particularmente de metade dos contendores deste, e as apertadas regras acordadas na difícil negociação entre campanhas, assim o ditaram: um debate sem público e com os microfones desligados durante as intervenções do oponente. Em Filadélfia, a cidade mãe da Constituição e capital daquele que se diz poderá ser o mais decisivo dos estados para o resultado final, a ABC optou por um estúdio pequeno, escuro, sóbrio ao ponto do velório.

Os candidatos apresentaram-se de pé, como habitualmente nas campanhas americanas, embora resguardados por púlpitos saídos de uma igreja batista. No painel de comandos da nave, iluminados de baixo para cima como se tem visto, nos últimos anos, nalgumas campanhas internacionais e o Chega já ensaiou por cá, David Muir e Linsey Davis conduziram o debate com a expressão implacável de dois fiscais da ASAE visitando uma feira de enchidos. Não consentiram um metro de terreno à “factualidade alternativa” de Trump. Na política-espectáculo norte-americana, animada por comícios com ares de circo e tempos de antena que se confundem com trailers de filmes-catástrofe, não deixa de ser curioso que o momento-chave, o encontro potencialmente decisivo entre as partes, seja tão deliberadamente sóbrio, escuro, despido.

No mais, sobrou o jogo, o combate, com a underdog — como em tantos outros filmes do género — a começar por baixo e a acabar, claramente, por cima. Kamala Harris, que tinha contra ela a muito menor experiência televisiva, particularmente em debates, e até a diferença na estatura física, que tantas vezes conta para o modo inconsciente como formamos convicções (Nixon ou John McCain que o digam), começou de garganta seca e excessivamente ensaiada nas respostas, mas virou o jogo no tema do aborto e nunca mais deixou o oponente sair das cordas.

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Kamala Harris não desperdiçou uma oportunidade de atacar, não deixou um ponto importante por dizer

Bloomberg via Getty Images

Em contraste, Trump, que tentou menorizar a adversária nunca olhando diretamente para ela ou sequer dizendo o seu nome (“she”, “ela”, foi o termo usado durante toda a noite, exceto quando lhe saiu um “you”, direto, já meio de cabeça perdida, lá para o final do debate), começou com a pose de estadista responsável, menos incendiário, que tem experimentado nestas eleições para não espantar a caça; no entanto, perderia, a pouco e pouco, o controlo.

Ponto por ponto, tema a tema, fosse questionado acerca do aborto, da economia, do ataque ao Capitólio, das alterações climáticas, da guerra na Ucrânia ou na Palestina, o republicano repetiu-se nas espirais que, esta madrugada e manhã, já todos têm dissecado: ele fez tudo o que de melhor alguma vez aconteceu à América (a melhor economia da história, a melhor resposta à Covid da história, os melhores acordos da história, as melhores Forças Armadas da história), ao passo que “ela”, por contraste subtil, foi a pior vice do pior Presidente da história. Vem aí a terceira guerra mundial por culpa dos ladrões e dos assassinos que ela deixou entrar, aos milhões, pela fronteira, e que estão – o já consagrado momento alto da noite – a comer os cães e os gatos dos habitantes de Springfield, Ohio.

Trump é, efetivamente, mais espontâneo do que Kamala Harris. Mas aqui, talvez como tantas outras vezes, o trabalho duro tenha batido o talento natural. Enquanto Donald se perdia na repetição cacofónica dos seus mantras, a adversária não desperdiçou uma oportunidade de atacar, não deixou um ponto importante por dizer. Foi-se galvanizando ao ponto de já ninguém se lembrar da garganta seca no início e acabar a discursar como se o adversário já nem estivesse ali, só as câmaras, no clímax de um filme de tribunal.

Agora, a questão é outra. Quantas estrelas lhe dará o eleitor do Nevada?

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