A camisa está aberta. Na mão, uma picareta. Tem um ar transtornado, quase de desespero. Está sentado numa pedra, mas a respiração é ofegante — como se quisesse abrir mais a camisa já aberta. Olhe em que direção olhar, o cenário é idêntico e de uma só cor: preto. Está tudo queimado e cada árvore resume-se, agora, a um tronco negro caído para um dos lados. O homem é, porventura, o único ponto de cor naquela imensidão de hectares completamente negra. “O senhor dá-me boleia?”, pediu. Esse “senhor” a quem fazia o pedido era António, engenheiro florestal. Andava por ali, no mato. O cenário criado pelo fogo não era, para ele, novidade. O único elemento novo era aquele homem. Foi o seu ar desorientado que fez o engenheiro parar o jipe 4×4 que conduzia e perguntar-lhe se estava tudo bem, se precisava de ajuda. Assegurou-lhe a boleia: “Dou. Então não dou?”.
Entrou no jipe. Estava manchado de preto — a cor do rasto deixado pelas chamas. “Então, veio ver esta desgraça? Tem para aqui algum bocadinho, também?”, perguntou Arnaut. “Olhe, ilusões”, disparou o homem. Não chegou a saber-lhe o nome, mas ficou a conhecer-lhe a história. O homem a quem dava boleia tinha emigrado para França. Ganhou dinheiro e comprou 50 hectares de terra. A propriedade ardeu toda e o investimento que fez estava, ali, reduzido a cinzas.
Arnaut parecia tomar as dores do homem a quem deu boleia. Também ele e a sua família tem um prejuízo que “nem” consegue imaginar. Não faz contas. “Se as fizesse, matava-me. Estamos aqui a falar — eu às vezes ainda faço as contas em contos — em centenas de milhares de contos!”, conta o engenheiro ao Observador. Arnaut não consegue disfarçar a angústia. “E eu não vivo aqui!”, diz. Alvares era a terra dos seus avós. “Imagine quando as pessoas estão a falar da sua terra. Imagine o que é pessoas reformadas: o desgraçado que migrou daqui para Lisboa com 20 anos e tudo o que amealhou foi para construir uma casa. Agora chega aqui e vê a casa toda a arder”, desabafa.
Não é preciso imaginar. No café no centro de Alvares, quatro homens de cabelo grisalho — uns têm um copo de vinho na mão, outros uma bengala, outros um boné — conversam entre golos. O ar despreocupado depressa é assolado por uma nuvem de revolta, quase de fúria, assim que o tema dos incêndios é posto em cima da mesa. “Oiça, está tudo abandonado. Há pessoas cujos terrenos já arderam quatro e cinco vezes. Estão fartas de lutar!”, diz um deles, levantando-se de imediato. “O que eu tinha ardeu tudo”, diz outro — este com um sorriso tímido, mas a encolher os ombros.
A população de Alvares conhece bem o fogo. Nos últimos 40 anos, os incêndios conseguiram queimar área de floresta suficiente para perfazer duas vezes a área total da freguesia situada no concelho de Góis. Mas há um conjunto de medidas que podem fazer com que nos próximos 40 anos a área ardida diminua para metade, que a proporção de incêndios extremos (como o de 2017) seja menor e que o número de povoações que atualmente correm riscos altos ou muito altos de incêndio seja reduzido em um terço. Os resultados baseiam-se num modelo de gestão florestal proposto pela equipa coordenada pelo Centro de Estudos Florestais (CEF), do Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa.
O projeto surgiu de um acaso e do interesse comum de três entidades distintas, que juntaram necessidade, conhecimento científico e dinheiro. Depois dos incêndios de 2017 — que queimou cerca de 60% da freguesia de Alvares ao mesmo tempo que ardia Pedrógão Grande, os acionistas do Observador decidiram apoiar a recuperação de uma zona afetada pelo fogo. O primeiro (e único) contacto foi para José Miguel Cardoso Pereira, coordenador do grupo ForEco – Ecologia Florestal do ISA. Na mesma semana, um grupo de produtores florestais contactou o mesmo investigador à procura de ajuda para tornar a região menos vulnerável aos incêndios. Estavam reunidas as condições para criar um modelo de reflorestação que fosse exequível, rentável e onde houvesse diminuição do risco de incêndio.
E o modelo é muito claro: é preciso reduzir a quantidade de árvores na região e o tamanho da floresta, porque só assim se reduz aquilo de que se alimenta o fogo. “Alvares é um bom exemplo de um sítio envelhecido, despovoado e com um problema de uso do solo: tem floresta a mais, tem poucos espaços abertos. Mesmo depois do fogo, é um sítio fechado, com poucas descontinuidades na paisagem”, disse ao Observador Akli Benali, investigador do ISA envolvido no projeto.
Com cerca de 10 mil hectares, a freguesia de Alvares tem 90% da sua área ocupada com floresta para aproveitamento da madeira — maioritariamente eucalipto, mas também pinheiro. Os resultados do projeto do CEF, apresentados este sábado em Alvares, pressupõem um envolvimento dos produtores florestais da região, mas os benefícios vão estender-se a toda a população e até às freguesias vizinhas — não só se tornará mais difícil um grande incêndio vir a formar-se dentro de Alvares, como a probabilidade de ele seguir como grande incêndio para as áreas contíguas será diminuída.
As vantagens parecem claras, mas a primeira dificuldade é envolver os proprietários dos terrenos que têm floresta. Alguns não sabem que os têm. Outros já os deram aos filhos. “Eu não tenho nada. Tinha um bocadito. Já dei aos filhos, não tenho nada, nada, nada. O pouco que tenho, dei”, explica um dos homens sentado à mesa do café. “Este senhor é que tem umas”, diz, apontando para um dos companheiros. “Ainda tens um bocadinho bom, tu”, insiste. O homem de boné na cabeça e bengala na mão nega. “Então não tens, lá para cima?”, volta a insistir, levando o alegado proprietário a rir-se.
José Cardoso Pereira: “O responsável pela extensão dos fogos é a falta de gestão”
“Aqui não é terra de latifundiários”. Há três mil proprietários, alguns com terrenos do tamanho de uma piscina olímpica
A freguesia tem cerca de três mil proprietários, com uma área média de meio hectare cada. Meio hectare é pouco — não chega sequer ao tamanho de um campo de futebol — e é difícil que os rendimentos de produção de um terreno deste tamanho compensem os custos de cortes dos matos, por exemplo. A gestão dos terrenos torna-se ainda mais difícil se pensarmos que esse meio hectare resulta da soma das áreas dos vários terrenos que o proprietário tem espalhados pelo território. Como se não bastasse, a média dá uma ideia pouco clara do que é o território: há alguns proprietários que têm propriedades com 50 ou 100 hectares, enquanto outros têm apenas mil metros quadrados (que é mais pequeno que a área ocupada por uma piscina olímpica). “Aqui não é terra de latifundiários”, resume um dos homens de cabelo grisalho, sentado à mesa do café, no centro de Alvares.
Uma zona tão fragmentada por pequenos proprietários particulares dificulta uma ação global sobre a floresta da freguesia, que permita obter os resultados apresentados pelo projeto. Daí o interesse em formar uma Zona de Intervenção Florestal — neste caso, a ZIF da Ribeira do Sinhel —, para atuar sobre o território como um todo, independentemente dos limites da propriedade de cada um. A ideia seria que, associando vários proprietários e intervindo no conjunto de terrenos — para fazer cortes, adubações e limpezas —, como se de um único terreno se tratasse, fosse possível reduzir os custos dos serviços contratados. Esta ideia é suportada pelos resultados do projeto. Mais, os inquéritos feitos aos proprietários mostram que 40% dos 221 inquiridos pelo projeto estariam disponíveis para delegar a gestão dos seus terrenos à ZIF. Esta gestão passa pela diminuição dos combustíveis, ou seja, cortar os matos a cada cinco anos, cortar as árvores que não têm valor económico (ou que estão em excesso), para deixar só aquelas que podem fazer uma boa produção de madeira, e abrir faixas sem vegetação (com cerca de 125 a 200 metros de largura) que facilitem o combate aos incêndios.
Mas há quem fique na dúvida. “São muito agarrados àquilo que herdaram dos pais, dos avós. Vivem dos aspetos materiais com muita profundidade”, explica Jorge Alves. Passa algum tempo no café de Alvares e vai ouvindo os clientes a falarem sobre a ZIF. O estabelecimento é do amigo e, por isso, vai lá ajudá-lo a servir às mesas. “As pessoas estão preocupadas se perdem aquilo que têm”, conta ao Observador. Jorge não está. Tem várias propriedades separadas: “Tudo junto é capaz de ser para aí um hectare e meio”. Está disposto a abdicar do que for preciso: “Não tenho produção nenhuma. Limito-me a limpar. Não tiro rendimento nenhum daquilo que faço. Tudo o que planto é perdido com o fogo. É mandar fora o dinheiro que invisto”.
É certo que os incêndios não dependem só da lenha que exista para arder, dependem também de uma ignição (o início do fogo) e de oxigénio. Mas o oxigénio e os ventos não se controlam. E as ignições, mesmo com as campanhas de sensibilização para não fazer queimadas ou fogueiras, podem sempre acontecer por causas criminosas, negligentes ou naturais. Portanto, é na diminuição de material combustível que se pode apostar e foi aqui que a equipa do ISA focou o trabalho de investigação para diminuir a probabilidade de grandes incêndios na freguesia de Alvares.
Neste momento, 40% da área da freguesia já tem uma gestão cuidada da floresta, com cortes dos matos e outras ações silvícolas — incluindo 15% que estão sob a gestão das duas empresas de celulose que exploram eucalipto na região. Aumentar essa área para 50 ou 60% traria benefícios na diminuição do risco de grandes incêndios e na diminuição da área ardida. Se a isso se juntasse a criação de uma rede de faixas (rede primária), que servisse de obstáculo ao fogo, o risco de incêndio diminuiria ainda mais. Isto parece lógico. Mas será que os custos compensam os benefícios?
Um resineiro que não planta pinheiros porque os fogos não os deixam crescer
Amilcar Aleixo está crente nesses benefícios. Tem uma fábrica de resina e várias propriedades “espalhadas” na freguesia de Alvares. Mas já desistiu de plantar nelas pinheiros — a matéria-prima do negócio que o seu avô ergueu em 1921. “Um pinheiro aqui, para resinar, demora 40 a 45 anos. Os incêndios não demoram sequer 20 anos. Vêm antes disso e não deixam crescer os pinheiros”, explica ao Observador. Então, Amilcar vê-se de pés e mãos atados. Acaba por importar resina do Brasil, Espanha, China e, já aconteceu, do Madagáscar. Nos terrenos onde podia plantar pinheiros, opta por plantar eucaliptos, porque crescem mais rápido. Em 12 anos, já pode cortar e ter rendimento. “A probabilidade de arderem antes de crescerem é menor”, explica. Daí que veja na criação de uma ZIF uma oportunidade de utilizar os seus terrenos para, finalmente, plantar pinheiros. “Vamos tentar. Eu, sozinho, não consigo nada. Talvez a gente numa equipa, numa ZIF, consiga. Vamos esperar que isto rentabilize o nosso investimento”, diz.
Um proprietário que corte os matos, corte as árvores que não interessam e avalie a saúde das árvores que conserva no seu território vai aumentar o rendimento florestal, garante Akli Benali. “Em alguns casos para o dobro [segundo o modelo usado no estudo], passando de uma situação que é, muitas vezes, de prejuízo para uma situação de lucro.” Por um lado, uma mata cuidada produz mais e melhor madeira, logo o rendimento é maior. Por outro, se se reduz o risco de incêndio, aumenta a probabilidade de se vender a madeira e a um preço mais alto (porque não está queimada). E estes são só os benefícios diretos.
Os benefícios indiretos para os proprietários, mas também para quem não tem terrenos (e para a sociedade em geral) são: a redução do risco de grandes incêndios junto das populações da freguesia e das freguesias vizinhas, diminuição dos custos com o combate a incêndios e um custo menor de recuperação das infraestruturas afetadas pelos fogos, como edifícios, estradas, saneamento básico ou linhas elétricas e de telefone. “Intervir na floresta é uma boa aplicação para os dinheiros públicos”, conclui José Lima e Santos, investigador do ISA e membro do projeto. “Aquilo que se ganha como sociedade, quer em termos de madeira poupada, quer em termos de riscos para outras atividades, é compensador face aquilo que são os custos.”
Mas as propostas da equipa de investigação não se ficam só por reduzir a quantidade de material combustível dentro dos terrenos que produzem madeira para vender, implicam também que se abram faixas sem qualquer vegetação. Estas faixas só fazem sentido em localizações muito específicas, como nas cumeadas, onde a mudança dos ventos pode fazer com que o fogo mude de comportamento. E isso pode implicar que alguns proprietários tenham de abdicar de parte ou da totalidade da produção do seu terreno.
É certo que, no conjunto da freguesia, todos beneficiam, mas o proprietário perde o rendimento potencial daquele terreno, enquanto os vizinhos saem beneficiados com o aumento da produtividade (pela diminuição do risco de incêndio). No âmbito do projeto, um inquérito a 221 proprietários — que são proprietários de 35% da área florestal da freguesia —, avaliou a disponibilidade de entregarem o terreno a troco de uma compensação financeira. Amilcar é um deles. O dono da fábrica de resina defendeu que é necessário pensar-se na defesa da floresta “como uma autoestrada, uma linha de alta tensão”. Isto é, explica: “Passou na minha propriedade, azar o meu. Têm de indemnizar como faz uma Junta Autónoma das Estradas ou a REN.”
Os modelos criados pelo projeto para avaliarem a relação custo-benefício também permitiram perceber que a melhor opção é criar apenas um terço da rede primária (faixas) proposta. A criação da totalidade da rede iria ter benefícios claros na redução do risco de incêndio, mas os custos para a construção e manutenção das faixas, e para a compensação dos proprietários que perdiam o rendimento dos terrenos, não era compensada pelos benefícios. Os custos de compensação aos proprietários para fazer um terço da rede primária poderia chegar aos 160 mil euros, mas se fosse a rede completa poderia ultrapassar os 360 mil euros, segundo os cálculos da equipa Economia, Sociologia e Gestão, coordenada por José Lima e Santos, investigador no ISA. “Se metermos um terço da rede primária, ficamos com um bom compromisso entre diminuição do risco de incêndio e custos superiores. É onde se tirará maiores benefícios”, diz Akli Benali. “Não se justifica pôr a rede primária toda. Não podemos ser idealistas, temos de ser eficientes.”
O projeto de Alvares foi, para a equipa do ISA, um desafio, pela introdução de novas metodologias, mas foi ao mesmo tempo um bom caso de estudo para poderem aplicar a metodologia noutros locais. As conclusões retiradas só podem ser aplicadas a este território, mas os conhecimentos adquiridos podem ser replicados noutros projetos. A equipa encontra-se já a preparar um projeto maior, para implementação de florestas mais resistentes ao fogo na região do Pinhal Interior.
Corrigido: mapa com os quatro níveis de intervenção (15 de outubro, às 17 horas)