Ao primeiro sinal, as placas tectónicas do PSD colidiram. A Operação Tutti-Frutti atingiu em cheio o universo social-democrata e precipitou uma troca de acusações entre a atual equipa de Luís Montenegro e o que resta da resistência rioísta, célula que opera, sobretudo, no Parlamento. A forma como a direção do partido geriu as primeiras reações ao caso fez com que os antigos apoiantes de Rui Rio antecipassem uma eventual limpeza de balneário e tentassem condicionar de imediato a presidência social-democrata. Tudo somado, antecipam-se novas guerras internas no futuro.
Um dos principais visados desta operação, que se arrasta desde 2016, sem que haja, entre atuais e anteriores detentores de cargos políticos, qualquer arguido, é Carlos Eduardo Reis, deputado do PSD, antigo general de Rui Rio, diretor de campanha de Jorge Moreira da Silva (adversário de Montenegro nas últimas diretas), um dos homens mais influentes do aparelho social-democrata e insuspeito de nutrir qualquer simpatia pelo atual núcleo duro presidente do PSD – sentimento que é mútuo, aliás.
Por tudo isto, sacrificar um cordeiro como Carlos Eduardo Reis seria vantajoso a nível interno (neutralizava-se um adversário) e externo (ganhava-se pontos na opinião pública). Ora, a reação oficial do partido fez-se a três tempos: primeiro, Montenegro escreveu no Twitter que é “impossível pactuar com a corrupção da democracia” e que importa “saber a verdade e tirar consequências”; Hugo Soares, seu braço direito e secretário-geral do PSD, pressionou a Justiça a ser “célere”, mas deixou claro que o partido “será intransigente com qualquer falha ética ou qualquer falha de legalidade”.
Por fim, em pleno debate com António Costa, Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do partido, desafiou António Costa a ter a “mesma clareza política” que o presidente do PSD tinha tido em relação à investigação e que repudiasse qualquer ação que violasse a ética republicana. Entre os rioístas, o plano da direção do PSD, que não deu um único sinal de solidariedade, provou-se cristalino: isolar Carlos Eduardo Reis, eventualmente fazer dele um exemplo e, à boleia disso, exigir a António Costa as cabeças de Fernando Medina e de Duarte Cordeiro.
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A reunião da bancada parlamentar social-democrata foi o primeiro embate entre estas duas correntes. O Observador sabe que cerca de 20 deputados – todos próximos de Carlos Eduardo Reis e/ou escolhidos por Rui Rio – apontaram diretamente o dedo a Joaquim Miranda Sarmento, questionando a falta de apoio político manifestada pelo presidente do grupo parlamentar social-democrata. De resto, foi Carlos Eduardo Reis a liderar a investida contra Miranda Sarmento. À frente dos demais deputados, o social-democrata criticou o seu líder parlamentar: “Não estarei disponível para ser o idiota útil e muito menos sangrado na comunicação social porque dá jeito tirar dois ministros do Governo para haver eleições antecipadas”, avisou.
Tal como explicava aqui o Observador, Carlos Eduardo Reis foi largamente aplaudido e apoiado com intervenções no mesmo sentido, prova de que o seu grupo está coeso. Paulo Rios de Oliveira, André Coelho Lima, Nuno Carvalho, Joana Barata Lopes, Lina Lopes, João Montenegro, um após o outro, defenderam o colega de bancada e fizeram mais: recordaram que Luís Montenegro tem os seus próprios telhados de vidro, sugerindo que o feitiço se pode virar contra o feiticeiro.
Este grupo não só lembrou que o partido defendeu Montenegro na Operação Vórtex e no episódio sobre a sua casa de Espinho, como também que a direção contemporizou com Joaquim Pinto Moreira – o ex-vice da bancada, muito próximo de Montenegro, só deixou o Parlamento quando foi constituído arguido na mesma Operação Vórtex –, que Miguel Pinto Luz, atual vice do partido, também foi referenciado na reportagem da TVI/CNN sobre a Operação Tutti-Frutti e que ninguém foi, sequer, constituído arguido – houve deputados que se referiram ao caso como “nojo” e recusaram entrar em “julgamentos de tabacaria”.
Nas entrelinhas, a ala rioísta quis fazer três coisas: exigir solidariedade da atual direção; ligar os destinos de Luís Montenegro e da sua direção aos destinos desta Operação Tutti-Frutti; e blindar Carlos Eduardo Reis, por quem passará, muito provavelmente, a construção de qualquer alternativa ao atual presidente do PSD. Pelo caminho, fragilizaram ainda mais Joaquim Miranda Sarmento, que apesar de ter vindo do mesmo universo – o rioísmo – tarda em convencer os seus críticos internos dos seus méritos de liderança.
Vitimização infantil, lamenta-se
No quartel-general do PSD, esta estratégia dos opositores de Montenegro é encarada com um misto de incompreensão e de repúdio. Em primeiro lugar, porque existe a convicção de que Carlos Eduardo Reis não foi atirado para a linha de comboio – tal como não foram Luís Newton, presidente da junta de Freguesia da Estrela e da concelhia do PSD/Lisboa, e Sérgio Azevedo, ex-deputado e figura central desta operação. Aliás, publicamente, Hugo Soares defendeu que era “absolutamente necessário” que os factos que são imputados fossem “confirmados” e que esta investigação chegasse ao “fim”.
Ou seja, não houve qualquer intenção de fragilizar politicamente os envolvidos. Até por isso, a contrarreação da ala rioísta é vista como desproporcionada e como uma tentativa de vitimização infantil, com o único objetivo de proteger Carlos Eduardo Reis e condicionar a atual direção. Pior: existe a suspeita de que esta agitação toda só se dá porque os próprios envolvidos estarão à espera de revelações ainda mais delicadas a partir das investigações jornalísticas e judiciais.
Sem que exista ainda qualquer acusação ou sequer arguidos, e atendendo ao que agora surge retratado pela TVI/CNN, em escutas e mensagens escritas, e ao que foi sendo revelado ao longo dos anos por várias investigações, a questão coloca-se, para já, no plano da responsabilização política — coisa que, até agora, não existiu. Dos três principais visados do universo laranja – Carlos Eduardo Reis, Luís Newton e Sérgio Azevedo – apenas o primeiro era manifestamente próximo de Rui Rio. E é também por isso que se vai lembrando entre os que agora apoiam Montenegro que o valor do tal “banho de ética” prometido por Rio e seus partidários era mesmo um verbo de encher – antes e agora.
Montenegro espera para ver
Apesar de tudo, a ordem na São Caetano é para meter gelo nos pulsos. É verdade que a investigação da TVI/CNN veio dar uma dimensão considerável a suspeitas que foram alimentando reportagens ao longo de anos nos demais órgãos de comunicação social. É também verdade que, com apenas aquilo que já é conhecido, há matéria muito sensível em jogo e que estão concentrados todos os ingredientes que corroem a imagem pública de um partido: negociatas políticas, alegado tráfico de influências, suspeitas dos crimes de corrupção e prevaricação, conluios entre PS e PSD.
Ainda assim, a decisão, para já, é esperar pelos futuros desenvolvimentos. Até porque ninguém ignora o contexto pouco claro desta Operação Tutti-Frutti. Quando falou publicamente sobre o caso, o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, não deixou de recordar que este processo dura “há cinco ou seis anos” e que “deve ter uma conclusão para se saber verdadeiramente quais são as imputações e os responsáveis daquelas condutas”. No PSD, existe a convicção de que o Ministério Público sai muito mal nesta fotografia, uma vez que muitos dos envolvidos não foram sequer ouvidos pelas autoridades, não há constituição de arguidos e não foi deduzida qualquer acusação.
Portanto, há quem encare com ceticismo (para dizer o mínimo) o trabalho do Ministério Público e da Polícia Judiciária. Ainda assim, o mesmo Hugo Soares fez questão de avisar, nessas tais declarações aos jornalistas, que a direção do PSD terá também em conta as conclusões da investigação jornalística para tomar decisões – ou seja, o tempo da política não coincidirá, necessariamente, com o tempo da justiça. Tudo será devidamente pesado no devido tempo.
Seja como for, há uma palavra mágica que pode desbloquear o processo de tomada de decisão: arguido. Se algum dos protagonistas for constituído arguido neste processo, a expectativa que existe é de que os próprios assumam as consequências naturais – Carlos Eduardo Reis suspenderia o mandato de deputado e Luís Newton faria o mesmo na Junta de Freguesia da Estrela e, eventualmente, na concelhia do PSD/Lisboa. Esta regra não se aplica a Sérgio Azevedo porque já não exerce qualquer cargo político-partidário.
Os outros casos recentes
O precedente, aliás, foi aberto com Joaquim Pinto Moreira. O homem de confiança de Montenegro começou por deixar o cargo de vice-presidente da bancada num primeiro momento e suspendeu o mandato de deputado assim que foi constituído arguido, sempre em articulação com Luís Montenegro. No limite, é isso que se espera que Carlos Eduardo Reis e Luís Newton façam se e quando tal vier a acontecer – eles e outros elementos do partido que se vejam em circunstâncias em semelhantes.
Existe ainda um outro exemplo recente: Rodrigo Gonçalves, uma figura igualmente influente do universo social-democrata de Lisboa, deixou a direção alargada do partido depois de ter sido alvo de buscas por parte da Polícia Judiciária – sem que naquela altura fosse formalmente arguido no processo que investiga também Isaltino Morais. Não havendo uma bitola absolutamente clara, facto que chega a ser lamentado no interior do PSD, a orientação da presidência social-democrata tem sido, pelo menos, esta: quando a continuidade em determinado cargo se torna publica e politicamente insustentável, é hora de sair.
Acontece que há uma diferença substancial nestes casos e no atual: Pinto Moreira e Rodrigo Gonçalves estavam alinhados com Montenegro; agora, é muito diferente. Como os mandatos são únicos e pessoais, tanto Carlos Eduardo Reis (adversário antigo da linha que atualmente dirige o PSD) como Luís Newton (que, apesar de ter sido mandatário de Montenegro, corre sempre em pista própria no aparelho social-democrata) só podem sair pelo próprio pé, mesmo que a direção social-democrata decida retirar-lhes a confiança política.
No limite, ambos poderiam continuar a exercer funções, comprando uma guerra aberta contra Montenegro e fragilizando politicamente o líder do partido, que passaria a imagem de não conseguir impor a sua autoridade. Ninguém no PSD espera que o braço de ferro chegue até esse ponto e que, a acontecer qualquer desenvolvimento relevante, todos saibam estar à altura das suas responsabilidades.