O vídeo tornou-se viral. No momento em que Júnior Santos marcou o terceiro golo do Botafogo contra o Atl. Mineiro, garantindo a conquista da Taça Libertadores já nos descontos, Artur Jorge lançou-se a correr para dentro do relvado, foi abalroado por um dos próprios jogadores, caiu, levantou-se e voltou a cair, em segundos de autêntica euforia. Pelo meio, nunca perdeu o sorriso.
Já este domingo, depois de ter levado o Botafogo à conquista inédita da Libertadores, Artur Jorge confirmou o primeiro lugar do Brasileirão e recuperou um troféu que o clube brasileiro não alcançava há 29 anos, alcançando uma inédita dobradinha que torna 2024 no ano mais importante da história do Fogão. Em cerca de nove meses, entre deixar o Sp. Braga e cruzar o Oceano Atlântico, o treinador português já é um nome histórico no Rio de Janeiro.
Para trás ficou a carreira de jogador passada quase por inteiro no Sp. Braga, o início do percurso como treinador no Famalicão, no Tirsense e no Limianos antes de entrar na formação minhota e escalar até à equipa principal e também uma família que conta com três filhos e três netos. Para a frente, como já se viu, fica o Artur de Braga que soube tornar-se o Artur do Rio.
De jogador a treinador com a mesma paixão pelo clube de sempre
A história de Artur Jorge, na verdade, começa com outro Artur Jorge — o pai, que tem exatamente o mesmo nome que o filho decidiu colocar ao próprio filho e que esse mesmo filho já colocou ao primeiro descendente. Ou seja, o Artur Jorge mais velho já tem um filho, um neto e um bisneto com o mesmo nome. E todos partilham uma paixão particular pelo desporto que coloca 22 pessoas a correr atrás de uma única bola.
Artur Jorge pai, atualmente com mais de 80 anos, é o sócio 413 do Sp. Braga. A mulher, mãe de Artur Jorge filho, é a sócia 414 dos minhotos. A paixão familiar depressa levou a que o pequeno Artur, ainda com 14 anos, entrasse nas camadas jovens do clube para perseguir o sonho de ser jogador de futebol já depois de ter dado os primeiros pontapés na bola no Ginásio da Sé. Passou pelos escalões de formação e foi cimentando o talento para ser defesa-central, beneficiando de uma estatura que foi sempre ligeiramente acima da média para a idade.
Estreou-se na equipa principal em novembro de 1992, pela mão de Vítor Manuel e como suplente utilizado numa vitória no Estádio do Restelo, contra o Belenenses, a contar para o Campeonato. Era o início de uma história bonita: representou o Sp. Braga nos 12 anos seguintes, até 2004, foi capitão e chegou a disputar a final da Taça de Portugal, no Jamor, onde perdeu para o FC Porto de António Oliveira.
Fez a última temporada da carreira no recém-promovido Penafiel, cumprindo apenas 90 minutos no espaço de uma época, e despediu-se dos relvados em 2005 e aos 33 anos. Não hesitou na hora de escolher o passo seguinte. Começou a formação de treinador e em 2009 já estava a assumir o primeiro desafio no Famalicão, guiando a equipa até ao terceiro lugar do playoff de promoção ao então Campeonato de Portugal, falhando por pouco a subida.
Voltou a casa em 2010, para orientar os juniores do Sp. Braga, e em 2012 assumiu a equipa B dos minhotos na estreia na Segunda Liga. Acabou por pedir a demissão ao fim de nove jogos, entre cinco empates e quatro derrotas, e em julho de 2013 rumou ao Tirsense. Passou ainda pelo Limianos antes de aceitar um novo regresso à Pedreira, para assumir o leme dos iniciados e depois dos juniores, e em julho de 2020 estreou-se no comando da equipa principal como interino, depois da demissão de Custódio, sendo promovido a treinador dos Sub-23 após garantir o terceiro lugar do Campeonato com uma vitória perante o já campeão FC Porto na última jornada.
A solução estava em casa: Artur Jorge é o escolhido para suceder a Carvalhal no comando do Sp. Braga
Subiu novamente à equipa B no verão de 2021, mas já não demoraria a ocupar de forma definitiva a verdadeira cadeira de sonho. Em maio de 2022, foi a solução interna que António Salvador encontrou para substituir Carlos Carvalhal, despedido 48 horas antes, e garantiu o quarto lugar da Primeira Liga e o respetivo apuramento direto para a fase de grupos da Liga Europa. Esse mês de estreia, porém, foi somente um aquecimento para o que acabaria por construir no Minho.
Em 2022/23, Artur Jorge foi o responsável pela melhor temporada de sempre do Sp. Braga na Primeira Liga: 78 pontos, 25 vitórias e 75 golos, o terceiro lugar à frente do Sporting e a primeira qualificação para o playoff de acesso à Liga dos Campeões em 11 anos. Pelo meio, chegou ainda à final da Taça de Portugal, onde voltou a perder com o FC Porto no Jamor — com a particularidade de Sérgio Conceição, então treinador dos dragões, ter sido titular na outra final que também perdeu, como capitão.
A lógica manteve-se na temporada seguinte. O Sp. Braga conseguiu mesmo voltar à fase de grupos da Liga dos Campeões, afastando TSC e Panathinaikos nas pré-eliminatórias, e nem o facto de ter caído para a Liga Europa num grupo que tinha Real Madrid e Nápoles ensombrou um ano que seria histórico para Artur Jorge. No passado mês de janeiro, os minhotos venceram o Sporting na meia-final da Taça da Liga e o Estoril na final, conquistando o troféu e oferecendo ao treinador o primeiro título da carreira.
“Treinámos, insistimos e preparámos este momento. O grupo tem sido extraordinário. Tivemos uma fase muito difícil em janeiro, mas temos um percurso que não se avalia em duas semanas. É fruto da capacidade do grupo, não só da qualidade, mas das pessoas que tenho. Conseguimos estar mais perto do sucesso pelo que somos como jogadores e treinadores, mas o fator determinante é o que somos enquanto homens”, disse, na altura, Artur Jorge. Cerca de dois meses depois, estaria a despedir-se do Sp. Braga.
Cruzar um oceano para mudar um clube histórico
Tudo começou num restaurante de Matosinhos. No final de março, Artur Jorge encontrou-se com John Textor e ouviu a proposta do empresário norte-americano, que tinha adquirido cerca de 90% do Botafogo dois anos antes. Textor queria levar o clube brasileiro de volta ao topo, queria oferecer estabilidade a um emblema que tinha tido quatro treinadores em oito meses e queria substituir Tiago Nunes, que já tinha sido despedido há um mês e ainda não tinha sido rendido de forma definitiva.
O treinador português, que tinha contrato até 2025, ficou tentado. Pela primeira vez na carreira, aos 52 anos, tinha a possibilidade de emigrar e internacionalizar-se, dar um novo salto e procurar novos objetivos. Para isso, porém, tinha de deixar a família em Portugal — os três filhos e os três netos, sendo que o filho mais velho, o tal que também é Artur Jorge, joga no Farense.
A conversa com a mulher, porém, tornou-se decisiva. “O Artur tem uma capacidade grande de se adaptar, onde quer que esteja. Muito maior do que a minha, confesso. Ele tem esse lado prático que eu também gostaria de ter. Sou muito coração, ele é muito racional. E acho que isso acaba por facilitar a vida, sem grandes saudosismos. O Artur de Braga é exatamente o mesmo Artur do Rio”, explicou Maria Marques, que abandonou a carreira profissional para se juntar ao marido no Brasil, numa entrevista recente ao G1.
A pouco mais de dois meses do final da temporada na Europa, Artur Jorge decidiu deixar o Sp. Braga e rumar ao Botafogo, por onde tinham passado recentemente tanto Luís Castro como Bruno Lage — o primeiro com bastante mais sucesso do que o segundo. As negociações com os minhotos não foram fáceis, já que António Salvador procurou segurar o treinador e chegou a criticá-lo publicamente pela “postura” que teve durante o processo, acusando-o até de assinar contrato à revelia dos portugueses.
Artur Jorge negou, garantindo que até só assinou contrato quando chegou ao Rio de Janeiro, e explicou que estava à espera de ser despedido no final da temporada. “Depois da proposta do Botafogo eu pedi ao Sp. Braga para aceitar o acordo. Colocar em causa o projeto? Deixei o Sp. Braga a dois pontos do terceiro lugar e ainda íamos receber o FC Porto. Nem eu nem a grande maioria dos adeptos queria que este capítulo terminasse desta forma. Continuo a ter o máximo respeito pelo Sp. Braga, será sempre o meu clube, tal como terei sempre muito respeito pelos adeptos”, disse o treinador, logo em abril, em entrevista ao jornal A Bola.
Dois milhões de euros depois e com contrato assinado por dois anos, Artur Jorge assumiu a equipa de Tiquinho Soares e Alex Telles e só teve a uma preocupação inicial: garantir que não seria mais um treinador para despedir. “Confesso que a primeira imagem que tinha sobre o futebol brasileiro, enquanto espectador, não era a melhor. Justamente pela quantidade massiva de trocas de treinadores. Muitos em cima de um ou dois resultados. Isso não mostra estabilidade do projeto, é uma tremenda prova de falta de confiança. Mas vim muito seguro do projeto que abracei. Sempre que conversei com o John Textor foi no sentido de olhar para tudo como um projeto, com princípio, meio e fim”, atirou.
Artur Jorge chegou a um clube que nunca tinha conquistado a Taça Libertadores e não era campeão há 29 anos, um clube ferido pela mágoa da temporada passada e dos 13 pontos de vantagem que chegou a ter para o Palmeiras e acabou por desperdiçar. Dias depois da glória continental, da conquista inesperada e improvável do maior troféu de clubes da América do Sul, levou o Botafogo ao primeiro lugar do Brasileirão e alcançou uma dobradinha inédita e histórica. Tudo enquanto continuou a ser o Artur de Braga que foi para o Rio.