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ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

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Um dia na rodagem de "Snu": "Portugal teria sido diferente sem aquele acidente de avião"

A intimidade da relação de Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro vai ser contada numa longa-metragem realizada por Patrícia Sequeira. O Observador acompanhou uma (longa) tarde de gravações.

Palácio Nacional da Ajuda. Quase três da tarde. São às dezenas os figurantes, alguns já grisalhos e repetentes nestas andanças, outros que carregam a adolescência e a novidade nos rostos, a acotovelar-se no estreito corredor que vai até à Sala D. João VI. Engalanados, eles vestidos com smoking (preto, pois claro) e sufocante papillon (é bem notória a estranheza do acessório e vão aliviando o pescoço enquanto aguardam), elas despregando longuíssimos vestidos resplandecentes e exibindo penteados que uma lata (ou mais, bem mais) de laca fez desafiar a gravidade, vão conversando em burburinho sobre tudo e quase nada, vão-se conhecendo na ansiedade e controlando-a assim.

Não vão representar, não há qualquer diálogo ensaiado que precisem decorar, nenhuma câmara sobre eles pousará mais do que breves segundos, apenas vão dançar, a par, ladeando os atores principais, mas a ansiedade é crescente, temendo esquecer os aparentemente triviais passos que ensaiaram durante horas e horas – e é por isso que os repetem e repetem.

Para os figurantes, as gravações da longa-metragem no Palácio Nacional da Ajuda começaram bem cedo e prolongaram-se até final da tarde. Foi preciso encontrar forma de ocupar as horas

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

“Juventude? Vamos então…” É agora, os figurantes pisam finamente o salão, majestoso apesar de preenchido por uma parafernália interminável de câmaras, operadores das câmaras, os assistentes dos operadores e outros assistentes mais, sempre apressados e de headsets nas cabeças, cabos e mais cabos desenrolados num lugar que sendo amplo se tornou exíguo. Os assistentes vão perfilando os figurantes, “tu aqui”, “vai para lá”, “e vocês os dois mais para aqui”, em volta de Inês Castel-Branco e Pedro Almendra, os atores principais da longa-metragem, que se encontram ao centro. O burburinho adensa-se e é ensurdecedor.

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— “Oh juventude! Juventude! Um bocadinho de silêncio, faxavor…” — grita um assistente.

Não resultou. Insiste: “Oh juventude! Se estou a falar vocês não falam. Será que pode ser?! Obrigado… Vamos ensaiar e depois gravar.” E o silêncio faz-se por fim. E ensaia-se o twist, agitam-se os corpos, mas agitam-se sem qualquer música que convide a agitar, a dançar. Há um palco em fundo e sobre ele uma banda. As cantoras, ao melhor estilo de um cabaret, até vão articulando nos lábios uma cantoria imperceptível, e percebe-se nos músicos os golpes de pulsos, à bateria, piano ou na guitarra. Mas só mesmo isso: articular e golpe. Sem som. No início. Depois lá ecoa o playback. Os figurantes em volta dos atores entregam-se à dança como se daquela dança dependesse o fim conflito israelo-palestiniano. Os restantes, dançando mas fora de cena, só se “arrastam”, desiludidos pela ausência de visibilidade.

"Há um último tempo de antena, em que há gestos que o Francisco [Sá Carneiro] faz, hesitações que tem, algumas entoações de algumas palavras específicas, que eu fiz exatamente como ele fez. Estudei os gestos, as pausas, as inflexões, estudei tudo. Acho que integrei tanto dele no personagem que acabei por me deslaçar de quem era o Francisco. Ele já passou a fazer parte de mim."
Pedro Almendra, ator

O ensaio vai já longo. Logo que há uma pausa, Inês rompe por entre os figurantes, cruza a sala e procura o coreógrafo. “Não me lembro bem, como é que é aquele?”, pergunta, explicando-lhe o coreógrafo depois o movimento a fazer com o corpo e, sobretudo, com os pés. Terminado o ensaio, começa finalmente a gravação. “Ação!” E a palavra repete-se por quase uma hora. “Ação! Ação! Ação!” Entre uma repetição e outra, alguns figurantes procuram garrafas de água nos corredores. Inês o telemóvel. O trabalho é cansativo. A repetição do trabalho é cansativa.

“Cansados? Bastante cansados. Mortos mesmo! Tem sido duro. É que estamos a fazer um filme em pleno Inverno, com chuva torrencial e muitos exteriores”, explica Inês Castel-Branco, interrompida depois por Pedro Almendra, que graceja: “E roupinha muito fininha…” Inês prossegue: “Ele adoeceu, coitado. Já quase toda a equipa ficou doente. Temos passado muito frio. Mas tirando as doenças está a correr tudo tão bem. Saímos do trabalho felizes e voltamos ao trabalho felizes”, garante a atriz, agora que o filme “Snu” vai no penúltimo dia de rodagem.

Pedro explica-nos a rotina do último mês e meio. “Isto são oito horas sempre a bulir. Mas felizmente a equipa não nos deixa à espera muito tempo, são muito ágeis na preparação de décors e de sets e de tudo. Acho que estamos praticamente o tempo todo em cena, a fazer e a repetir, fazer e repetir.” “Mas no outro dia tivemos que esperar que a noite chegasse e ficámos super aborrecidos. Essas horas ocupam-se a jogar uma aplicação tipo Scrabble, no telemóvel, que é para exercitar a cabecinha”, explica Inês Castel-Branco.

"Na pesquisa comecei a questionar porque é que ela resolveu ficar entre nós", explicou Inês Castel Branco, que descobriu em Snu uma mulher "altruísta e nada fria"

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

A realizadora Patrícia Sequeira está a rodar em Lisboa uma longa-metragem, “Snu”, que procura sobretudo “resgatar” a história de amor entre Snu Abecassis e o antigo primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro. Inês Castel-Branco interpreta a fundadora da editora Publicações Dom Quixote, uma mulher que desafiou a sociedade portuguesa ao assumir, na década de setenta, uma união de facto com Francisco Sá Carneiro — que no filme é interpretado por Pedro Almendra.

A pesquisa de Inês foi exaustiva. E começou em setembro. “Preparação? Primeiro li os livros todos escritos sobre ela, quer o da mãe, a Jytte Bonnier, quer o escrito pela Cândida Pinto. Depois li sobre a relação deles, alguns livros ficcionados e outros biográficos. Mas naquilo que eu lia, as descrições da Snu – que estava cada vez mais presente na minha cabeça — eram as descrições dos portugueses sobre ela, a descrição de uma nórdica em Portugal.”

Então, Inês Castel-Branco resolveu viajar até à cidade onde Snu Abecassis cresceu. “Achei que precisava de ir lá para perceber o que é que é esta ‘coisa’ dos nórdicos, que em Portugal apelidam de frieza – mas que não é frieza; apenas é diferente. Fui até Estocolmo. Ela é dinamarquesa mas foi viver para Estocolmo com sete anos. E foi engraçado porque percebi muitas coisas em relação a ela. Imagina: todas as pesquisas falavam deste hábito que ela tinha de comprar flores todos os dias. E chegas a Estocolmo e há floristas em todas as esquinas. Então, começas a perceber porque é que ela era assim. E sobretudo a questionar porque é que ela resolveu ficar entre nós.”

Inês recusa a frieza em Snu. “A segunda fase da pesquisa foi conversar com quem a conheceu e conviveu com ela em Portugal. Conversei com a Virginia Caldeira, a secretária dela, com a Conceição Monteiro, secretária do Sá Carneiro, com a Maria João Sande Lemos, que era muito amiga dela. Com a família não consegui falar — e não insisti porque achei que era uma invasão muito grande. Mas ela era tudo menos fria. Era conhecida por ser mega altruísta, fazia jantares em casa dela para os trabalhadores da Publicações Dom Quixote, sempre que viajava oferecia às amigas roupa igual àquela que comprava para si.”

Mais difícil foi, mesmo com a pesquisa feita, chegar a Snu, à voz, aos gestos. Pouco mais Inês tinha do que fotos. “O meu objetivo foi sempre fazer uma ‘Snu’ o mais parecida possível com a Snu — sendo que não há qualquer registo dela, nem em áudio nem em vídeo. O único vídeo que há é um arquivo da RTP, muito curto e sem som. Não sei sequer como é que ela falava português — umas pessoas dizem que era com sotaque nórdico, outras com inglês. Então, encontrei eu um sotaque.”

14 fotos

O trabalho de pesquisa de Pedro Almendra era, deste ponto de vista, mais fácil, pois tantos são os registos em vídeo do antigo primeiro-ministro que morreu, ele e Snu Abecassis, a 4 de dezembro de 1980, quando o avião Cessna em que viajavam se despenhou em Camarate, pouco depois de levantar voo em Lisboa. “Fácil? Não sei… Sei que houve um momento da minha pesquisa em que achei que devia parar de continuar a pesquisar. Há muita coisa. E estava a chegar a um ponto em que me estava a envolver tanto, que tentava chegar à própria maneira do Francisco de articular palavras. Não ia ser possível. Era um trabalho de investigação que duraria para aí um ano se continuasse. E abandonei essa pesquisa exaustiva. Acho que me consegui libertar de muitas coisas.”

Em parte. E explica, Pedro: “Há coisas específicas que nós fazemos no filme e que têm que ser imitadas, claro. Há um último tempo de antena, em que há gestos que o Francisco faz, hesitações que tem, algumas entoações de algumas palavras específicas, que eu fiz exatamente como ele fez. Estudei os gestos, as pausas, as inflexões, estudei tudo. Acho que integrei tanto dele na personagem que acabei por me deslaçar de quem era o Francisco. Ele já passou a fazer parte de mim. E levo muito dele. Às vezes é horrível, porque os meus amigos dizem-me que estou a falar como o Francisco. Mas até dizem isso mais à Inês, por causa do sotaque da Snu.” Inês interrompe: “Às vezes falo assim [utiliza o sotaque nórdico] fora das gravações. E toda a gente me diz: ‘Estás a falar à sueca…” Mas nem eu me apercebo. Nós estamos mesmo a viver isto intensamente há um mês e meio.”

Patrícia Sequeira, a realizadora, está a viver a história há bem mais. E depois da longa-metragem “Jogo de Damas”, há dois anos, volta a ter uma proeminente personagem feminina em “Snu”. “É mesmo um acaso. Fui convidada, não posso dizer que era aquela história que tinha na gaveta há muitos anos para contar. Não, até tinha outros guiões. Mas isto foi um convite e claro que o abracei. Se no ‘Jogo de Damas’ eu às tantas percebi que era um filme sobre alguém que podendo ser feliz escolheu outro caminho, com medo, aqui é exatamente o oposto: a Snu é alguém que tem urgência em ser feliz, que luta para ser feliz, e assume um amor contra tudo e contra todos. Ela era extremamente moderna, não se iria sujeitar a ser a amante“, garante Patrícia.

"Não procurei o Sá Carneiro no Pedro [Almendra], apenas a ‘sensação’ de Sá Carneiro. A Snu já foi preciso 'fabricar'. Há só aquela ideia vaga de que é uma nórdica, muito elegante e fria. Naquilo que é essencial no ser humano ela não era fria. Era realmente preocupada com as pessoas. Aquilo de nórdico que ela nos trouxe foi a objetividade, a assertividade, a frontalidade. Se calhar Portugal precisava disso.”
Patrícia Sequeira, realizadora

A reserva que havia na vida privada de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis podia ser obstáculo na hora de filmar a intimidade do casal. Mas não foi. “Acho que tudo é permitido, toda a liberdade criativa é permitida, toda a interpretação é permitida, mas só quando eu sei muito bem no que é que estou a desviar-me. Então, documentei-me. Houve o apoio da Helena Matos, que foi a consultora histórica da longa-metragem. E depois, a partir daí, tudo o que fiz fugindo daquilo que era a realidade é consciente. A intimidade, por exemplo, é mostrada numa conversa que ninguém pode ter ouvido. Essa é a intimidade aqui. E é na intimidade que o filme é mais livre. Mas o ser humano, na essência, é todo um bocadinho parecido, não é?”, questiona a realizadora.

Depois de "Jogo de Damas", a realizadora Patrícia Sequeira aventura-se na segunda longa-metragem. "Saio do filme com a convicção de que Portugal teria sido diferente sem aquele acidente"

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Patrícia Sequeira, tal como Inês, quis desmistificar na longa-metragem alguma da frieza associada a Snu Abecassis. “No caso do Pedro Almendra era complicado não se colar a personagem a Sá Carneiro. O desafio era, ao contrário da Inês com a Snu, representar alguém muito conhecido. Desde logo fui buscar as parecenças físicas que têm. Mas não procurei o Sá Carneiro no Pedro, apenas a ‘sensação’ de Sá Carneiro. A Snu já foi preciso ‘fabricar’. Há só aquela ideia vaga de que é uma nórdica, muito elegante e fria. O que disse à Inês é que a Snu não podia ser assim tão fria. Tentámos percebê-la e interpretá-la. Naquilo que é essencial no ser humano ela não era fria. Era realmente preocupada com as pessoas. Aquilo de nórdico que ela nos trouxe foi a objetividade, a assertividade, a frontalidade. Se calhar o Portugal da época precisava disso. Não era frieza.”

Concluída a rodagem, o filme com um orçamento de pouco mais de um milhão de euros, estreia-se a 27 de setembro no cinema. Os atores partem com certezas que no começo não tinham. “Acho que é uma época tão bonita, esteticamente, a nível político, social. Agora é tão diferente. Mostra-se tudo e mais alguma coisa da vida privada. E a política já não é de todo o que era naquela época, já não é efervescente. É só a luta de poderes e a corrupção. É pertinente ter este filme agora também por causa disso”, lembra Inês Castel-Branco.

Pedro guarda o homem. Os homens. “Fiquei a admirar o Francisco Sá Carneiro. Muito mesmo. Mesmo até politicamente – e mesmo não sendo eu de direita. Porque ele tinha um pensamento, na altura, muito concreto, muito voltado para o futuro. Ficámos a admirá-los. São personagens encantadores. Mas ficámos igualmente a admirar outras personagens da história, como o marido da Snu, o Vasco Abecassis, que eu não conhecia e que reagiu muito bem a isto tudo. Acho incrível como é que alguém reage como aquele homem reagiu, protege aquela família, e a seguir ao acidente ainda cuida do filho do Francisco Sá Carneiro.”

“Eu já os admirava de alguma maneira quando comecei o processo. Neste momento não só admiro como já me sinto um bocadinho ‘amiga’ de ambos. E saio do filme com a convicção de que Portugal teria sido diferente sem aquele acidente de avião. Eles tinham um projeto e uma missão. E seria interessante, pelo menos, ver como é que ia correr”, conclui a realizadora Patrícia Sequeira.

Os atores terminam a entrevista, Pedro Almendra bastante fustigado pela gripe e pouco depois abandonam o Palácio Nacional da Ajuda, que o dia seguinte seria o último de rodagem. A banda que não o foi e os figurantes continuam na Sala D. João VI a gravar a mesma dança. Uma e outra vez.

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