O deserto de Atacama, no Chile, é o lugar mais seco do mundo. Nas suas montanhas, algumas a mais de três mil metros de altitude, as condições não são as mais acolhedoras. Isso mesmo sentiu Alexandre Cabral, cientista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, quando num impulso tentou correr à volta do círculo de 120 metros onde está a ser construído o Telescópio Extremamente Grande (ELT, na sigla em inglês), que até ao final da década será um dos maiores a contemplar os céus e onde será instalado um instrumento construído com o apoio da equipa portuguesa que lidera.
“Um dos grandes objetivos é tentar encontrar um exoplaneta idêntico à Terra e perceber se existem na sua atmosfera elementos como o oxigénio e o dióxido de carbono, indicadores que podem apontar para a presença de vida”, diz ao Observador Alexandre Cabral, também membro do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). Mas não é só isso que o ELT se propõe a fazer, vai também procurar medir as propriedades das primeiras estrelas e galáxias, bem como a aceleração da expansão do universo, e desvendar os mistérios da matéria e energia escura, dos quais pouco se sabe.
Para isso, a dimensão do telescópio, cuja luz será captada por um espelho principal com quase 40 metros, quando por esta altura os maiores não passam dos dez metros, é mais do que um recorde a bater. “Quanto maior o telescópio, maior o balde que recolhe a luz. Vamos conseguir ver objetos mais distantes, mais ténues e fracos. Por outro lado, quanto maior for o telescópio, maior a resolução e mais nítidas as imagens”, explica Nuno Santos, um dos elementos da equipa portuguesa e professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
A contribuição portuguesa para o ELT passa por ajudar na construção do Andes, que é um dos espectógrafos que vai decompor a luz captada pelo telescópio. Em troca, o consórcio de que a equipa que Alexandre Cabral e Nuno Santos fazem parte vai ter 100 noites para usar o telescópio como quiser. “O Andes estará pronto até 2028 e vamos selecionar quais os melhores alvos a observar. Até lá, ainda há muitas descobertas a fazer“, diz, expectante, o professor da Universidade do Porto.
O espelho principal do ELT tem 39 metros e vai recolher 100 milhões de vezes mais luz do que o olho humano
O sonho de criar um telescópio com o maior espelho de sempre remonta ao início do século. A construção, encabeçada pelo Observatório Europeu do Sul (ESO, do inglês European South Observatory), arrancou em 2014, na montanha Cerro Armazone do Chile, que oferece 320 noites de céus limpos por ano. Avança a “bom ritmo” e já vai a mais de metade, segundo a organização, que sublinha que o ELT se vai tornar o “maior olho no céu”.
Para Alexandre Cabral, que esteve no local pela primeira vez quando apenas alguns pinos delimitavam a área do telescópio, toda a zona está irreconhecível. “É qualquer coisa gigantesca. Nos telescópios em que nós trabalhamos, que já são grandes, estamos a falar de espelhos com 8 metros, aqui são 39 metros”, destaca.
Espelhos que são “verdadeiras obras de arte”, nas palavras de Elise Vernet. A especialista do ESO está a supervisionar o desenvolvimento dos cinco gigantescos espelhos do telescópio, que estão quase prontos e em breve serão transportados para o Chile. “O principal (…) é composto por 798 segmentos hexagonais, alinhados de modo a comportar-se um espelho monolítico perfeito”, disse em agosto à BBC.
Graças a este espelho (designado simplesmente por M1), o ELT vai recolher 20 vezes mais luz do que o Very Large Telescope (VLT), um dos mais importantes telescópios do ESO, também situado no Chile. Pondo em perspetiva, vai recolher 8 milhões de vezes mais luz do que o telescópio usado por Galileu ou 100 milhões de vezes mais luz do que o olho humano. Terá, de longe, a maior abertura ótica de sempre.
Building a telescope mirror over 39 meters large & made of 798 high-tech pieces is challenging.
But holding it all together? That's no small feat either!
Discover the colossal structure that will keep the 200 tonne mirror safe & stable inside the #ELT dome ???? pic.twitter.com/CeVLpt1Jkj
— ESO (@ESO) August 29, 2024
A dimensão não é um pormenor e é fundamental para distinguir o que podem ser sinais do universo do que os cientistas descrevem como ruído. “É quase como tentar distinguir quatro ou cinco grãos de areia que são diferentes no meio de uma praia“, nota Alexandre Cabral.
O equipamento com mão portuguesa que vai garantir aos cientistas 100 noites com o telescópio
O consórcio de que a equipa portuguesa faz parte, que é composto por 13 países, está a construir o espectrógrafo Andes. Será instalado no ELT e vai permitir desvendar a informação escondida na luz que o telescópio recebe e que percorre em muitos casos milhões de quilómetros de distância até chegar a nós.
O instrumento vai decompor a luz nas suas várias cores (ou comprimentos de onda), num processo semelhante à separação de cores de um arco-íris. Serve de testemunho da presença de diferentes elementos químicos, que estão associados a cada cor. Por exemplo, ao analisar a luz de uma estrela que atravessou a atmosfera de um planeta será possível saber que elementos estão à sua superfície. “Se for detetado oxigénio, dióxido de carbono e ozono é algo que nos permite dizer que a presença de vida é mais provável”, diz Alexandre Cabral.
Antes de se poder analisar a luz é preciso prepará-la. É aqui que entra em ação a equipa de Alexandre Cabral, que está a desenvolver o sistema front-end do Andes, que ajuda a corrigir algumas perturbações. Atua ao encaminhar os feixes de luz para uma fibra ótica com menos de um milímetro de diâmetro, uma tarefa desafiante. “É preciso garantir que a luz que foi captada por um telescópio de quase 40 metros entra de forma eficiente numa fibra que tem décimos de milímetros.”
Apesar do ELT ainda estar em construção, já é possível ter ideia do local onde o Andes será instalado. Desde a entrada do edifício até a essa zona estamos a falar de uma distâncias de meia hora a pé, sem elevadores. “Uma pessoa esquecer-se de qualquer coisa implica perder uma hora”, brinca Alexandre Cabral. Mas acrescenta: “Neste tipo de instrumentos, e quando se faz este tipo de instalações, o tempo é precioso.”
[O vídeo do ESO mostra a evolução da construção do ELT ao longo do ano passado]
O tempo é também escasso, já que o consórcio terá apenas 100 noites garantidas no ELT em troca da construção do Andes. “Parecem muitas noites para quem fica acordado a observar, mas na verdade são muito poucas noites para obter dados“, diz Nuno Santos, o investigador principal da equipa de Sistemas Planetários do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. Ainda assim, explica, a equipa pode candidatar-se com projetos científicos e, se for aceite, pedir mais tempo de utilização.
Do estudo de exoplanetas como a Terra à procura da primeira geração de estrelas do universo
Graças ao gigantesco espelho principal do ELT, o Andes será capaz de explorar com maior alcance planetas fora do Sistema Solar. Depois de várias décadas a procurar exoplanetas — até ao momento foram descobertos mais de cinco mil —, o foco será analisar as suas atmosferas, com o objetivo último de vir a descobrir sinais de vida. “São muito débeis e aqui o ELT vai ter um papel importante, ao permitir detetar as espécies químicas que na Terra estão ligadas à vida (água, oxigénio, dióxido de carbono)”, diz Nuno Santos.
O Observatório Europeu do Sul espera também que o Andes seja o primeiro instrumento a detetar as impressões digitais da primeira geração de estrelas que iluminaram o universo primordial. Nota ainda que será usado para medir diretamente a aceleração da expansão do universo, acrescentando que “terá um grande impacto no nosso entendimento do universo“.
Entre todas estas potencialidades, a que mais entusiasma Nuno Santos é a de apontar o telescópio para uma estrela que seja orbitada por um planeta semelhante ao nosso. “A primeira coisa que faria seria tirar um espectro — a assinatura da luz — do planeta e analisá-la para tentar saber se conseguimos encontrar algo novo na sua atmosfera, algo que nos indique o potencial para a existência de vida”, diz.
Há muitos candidatos e até ao final da construção o consórcio terá de definir muito bem os seus alvos. Alexandre Cabral aponta o exemplo da estrela Proxima Centauri. É a estrela mais próxima da Terra, apesar de estar a uma distância de quatro anos luz — quase 40 biliões de quilómetros de distância — e é orbitada pelo Proxima Centauri b.
Pelo meio, a equipa deixa espaço para muitas surpresas. “Há sempre coisas que nós não esperávamos ser capazes de detetar e que de repente é mais fácil do que se pensava, outras que nem esperávamos encontrar”, sublinha Nuno Santos. “Sempre que temos um novo telescópio estamos a abrir uma nova janela para o universo.”