Há quem diga, com muita razão, que um Grande Prémio de Fórmula 1 se vê melhor na televisão. Estar no próprio circuito, numa bancada, implica ver os carros apenas quando estes passam por aquele determinado sítio; implica não saber o que acontece nas outras curvas; implica não assistir nem à partida nem ao fim da corrida. Mas depois há o outro lado da moeda. O barulho dos motores, a velocidade das mudanças de pneus nas boxes, as conversas dos pilotos com os mecânicos antes do arranque. E depois há aquilo que alguns comuns mortais com um pico de sorte, como os jornalistas, podem ver quando já ninguém está no circuito.
Por exemplo, e logo à partida, como os elementos das equipas fazem exercício físico nos fins de semana de Grande Prémio, em que mal têm tempo para estar noutro sítio que não no hotel ou no circuito. A resposta é simples: fazem exercício físico na própria pista. Ao final da tarde de sábado, depois da qualificação onde Lewis Hamilton registou o melhor tempo na última volta a agarrou a pole-position do Grande Prémio de Portugal, vários membros de várias equipas lançaram-se aos quatro quilómetros do Autódromo Internacional do Algarve para uns minutos de jogging, como Franz Tost, antigo piloto e atual team principal da AlphaTauri ou até de bicicleta, como foi o caso do próprio Charles Leclerc.
Leclerc que, já este domingo, foi o protagonista de um dos momentos mais divertidos nos bastidores do GP português. A escassos minutos do início da corrida, enquanto já se ouviam motores nas boxes e as bancadas do Autódromo já vibravam de emoção e antecipação, o piloto da Ferrari estava junto às instalações da equipa, no backstage da pista, a jogar à bola com um elemento da scuderia. Algumas caixas estavam colocadas no chão, a servir de rede, e os dois entreteram-se durante vários minutos numa espécie de futevólei que foi o momento de descontração do monegasco antes de entrar no carro número 16 da Ferrari.
Uma descontração que, durante todo o fim de semana, não foi propriamente o sinónimo deste Grande Prémio de Portugal. Depois de um sábado de qualificações que ficou marcado pelas críticas à organização e ao facilitismo no que toca às regras de segurança sanitária, este domingo era o dia de todas as decisões — tanto na pista como fora dela. Hamilton ganhou a corrida, tornando-se o piloto com mais vitórias na história da Fórmula 1 e colocando também Portugal na história da modalidade; os adeptos continuaram demasiado próximos, demasiado juntos, demasiado amontoados. No sábado, Paulo Pinheiro, administrador do Autódromo, tinha garantido que o controlo iria ser reforçado e que a vigilância seria redobrada, depois de no dia anterior muitos espectadores terem trocado de bancada porque não era obrigatória a validação do bilhete à entrada de cada setor. É certo que a distribuição dos 27.500 adeptos, este domingo, já foi correta: mas os ajuntamentos mantiveram-se, as pessoas estavam sentadas sem qualquer distância entre si e as imagens que saíram do Grande Prémio chocaram de frente com a pior semana da pandemia em Portugal.
Mas a total ausência de distanciamento físico e social esteve longe de ser o único problema do regresso da Fórmula 1 a Portugal 24 anos depois. O imenso trânsito, tanto para chegar ao Autódromo como para sair, prolongava-se durante vários quilómetros e criava filas intermináveis de carros. Este domingo, mais de meia-hora depois do fim da corrida e quando nos bastidores do circuito já as equipas arrumavam tudo para rumar a Imola na próxima semana, milhares de veículos estavam alinhados na única estrada de saída do Autódromo. Em todas as rotundas, a GNR tentavam agilizar um trânsito que chegava a estar totalmente parado durante 20 minutos e que prolongava até duas horas a saída das imediações do circuito.
Depois, outro flagelo: a inexistência de rede. A vários quilómetros do Autódromo Internacional do Algarve, já não era possível enviar mensagens, fazer chamadas ou aceder à internet. Algo que se tornava muito pior com a aproximação ao circuito, onde as ligações telefónicas eram totalmente impossíveis. Um problema que, em 2020, dificulta praticamente tudo num mundo onde a dependência de um telemóvel é cada vez maior.
Ainda assim, e apesar de todos os obstáculos e solavancos, o Grande Prémio de Portugal não deixou de ser um sucesso. Não só por ter marcado o regresso da Fórmula 1 ao país, não só por ter marcado o recorde de Hamilton mas principalmente por ter apresentado à modalidade um circuito inédito que é um dos mais desafiantes do mundo — nas palavras do próprio piloto inglês da Mercedes. A pista algarvia nunca tinha recebido uma prova de Fórmula 1, e foi por isso mesmo um desafio superior para muitos dos pilotos, mas já era conhecida por alguns dos nomes mais jovens da grelha. Como Charles Leclerc, que em declarações ao Observador antes da corrida recordou que já conhecia o traçado devido às provas de Fórmula 3 em que competiu no Algarve.
“Para mim, não é uma pista completamente nova. Já conheço a pista por isso já sei mais ou menos o que esperar. É uma pista muito impressionante. Com esta situação toda da Covid-19, se podemos encontrar algo de positivo, acho que o único lado positivo é que vamos a pistas inesperadas onde não iríamos numa temporada normal. Acho que Portimão vai ser muito interessante. Vai ser muito interessante correr aqui em carros de Fórmula 1, especialmente nestes carros, que são tão rápidos nas curvas”, disse o monegasco, que terá aproveitado a vantagem de já conhecer o circuito para terminar a corrida no quarto lugar, um resultado manifestamente bom tendo em conta a época sofrível da Ferrari.
Uma vantagem que, claramente, não sorriu a Vettel, o outro piloto da Ferrari. O alemão conseguiu terminar em 10.º lugar, à frente de Raikkonen e na última posição pontuável, mas manteve-se longe das zonas de decisão e dos principais momentos do Grande Prémio. “Já ouvi muita coisa sobre a pista. Sei que já existe há algum tempo mas depois existiu este grande hiato. Parece muito espetacular. Estou muito entusiasmado por estar em pista, porque nunca lá estive. É uma grande oportunidade. Nos nossos carros vai ser espetacular porque são muito rápidos. Vai ser desafiante por causa da elevação”, explicou Vettel, que está a cumprir o último ano com a Ferrari e vai juntar-se à Alfa Romeo na próxima época, sendo substituído pelo espanhol Carlos Sainz, atualmente na McLaren.
Num Grande Prémio que está a ser criticado pelos milhares de espectadores que estiveram presentes, pela ausência de distanciamento nas bancadas, pelas horas de espera no trânsito, Portugal voltou a estar no centro da Fórmula 1. Mais do que isso, o Algarve esteve este fim de semana no centro da Fórmula 1. À saída do circuito, este domingo, as conversas perdidas e paralelas entre as pessoas que se cruzavam tinham sempre a mesma premissa: “Espero que agarrem a corrida para o ano”, “espero que para o ano estejam cá outra vez”, “espero que agora não se tenha de esperar mais 20 anos”. E a confirmar-se, o Grande Prémio de Portugal pode ser um incentivo extraordinário para uma região que vive principalmente do verão e que, assim sendo, teria no outono um dos grandes atrativos turísticos do ano inteiro.
[Ouça aqui as declarações de João Fernandes, presidente do Turismo do Algarve, à Rádio Observador:]
Fórmula 1 no Algarve teve “impacto de 30 milhões de euros diretos em consumo”
O Observador viajou a convite da Mission Winnow, uma iniciativa da Philip Morris International e principal parceiro da Scuderia Ferrari