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Um isqueiro, uma Polaroid e um prémio Novo Banco Revelação depois, este é Miguel Marquês em Serralves

Primeiro, ofereceu máquinas descartáveis a "gente à margem". Depois, seguiu os passos do moldavo Valentin, que regressou a casa. O resultado está em "Walking Thru The Sleepy City". Falámos com ele.

Quis ser arquiteto e partiu para Copenhaga com esse fito, mas um semestre depois descobriu que a fotografia era afinal aquilo que queria fazer na vida. Regressou a Portugal e, com o curso terminado, a prática do dia a dia levou-o a novas viagens, onde o Prémio Novo Banco Revelação acabou por encaixar num universo ainda à procura de se definir. Miguel Marquês expõe Walking Thru The Sleepy City no Museu de Serralves, naquele que é o retomar da pareceria entre o Novo Banco e a Fundação de Serralves interrompida há quatro anos, e assume um caminho em nome próprio que só o futuro poderá saber se será longo. Para já, existe a vontade de procurar a fotografia em expedições mundo fora, como no princípio. E por princípio, estabelecer relações, contactos, diálogos (mesmo que em surdina) com outros seres ou mundos, realidades, paisagens, cidades, espaços, lugares.

No seu percurso chegou a oferecer máquinas descartáveis a pessoas que conhecia na rua (sem-abrigo, desempregados, “gente à margem”, como lhes chama) para que estas fotografassem o que quisessem, depois, com uma Polaroid, passou a convidá-las para o fotografarem e se deixarem por ele fotografar. Conheceu Valentin, um moldavo descontente a viver em Lisboa, e conseguiu arranjar dinheiro para que regressasse a casa. Esperou pelas fotografias que ele tiraria na viagem mas elas não chegaram. Partiu então em busca do novo amigo. Não o encontrou. Descobriu o seu próprio olhar, em vez disso, e revelou-se enquanto fotógrafo.

Em conversa com o Observador, Miguel Marquês conta como foi atrás de uma narrativa e descobriu imagens que são também estados de espírito.

Como é que surgiu o projeto?
Entre 2021 e 2022 comecei a interessar-me e a tentar trabalhar com e sobre sem-abrigo, sobre pessoas que estão à margem da sociedade. Comecei por dar algumas máquinas fotográficas descartáveis a uma pessoa que tinha conhecido na Baixa, em Lisboa. Era um senhor chamado Rui com quem fiz amizade. Eu dava-lhe umas máquinas e ele fotografava.

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Fotografava o quê, o dia a dia dele? Fotografava Lisboa?
Sim, fotografava Lisboa e o seu dia a dia.

Não lhe dava indicações sobre o que ele devia fotografar?
Não, dizia-lhe só para fotografar o que quisesse.

E escolheu-o ao acaso ou porque achou que era com ele que queria trabalhar?
Foi numa altura em que ele veio ter comigo para me pedir um cigarro ou um isqueiro e ficámos à conversa. Ele interessava-se muito por música e por imagem também. Como estabelecemos uma relação boa e nas minhas horas de almoço encontrava-o muitas vezes, tinha-se criado uma relação de alguma intimidade.

Tinha confiança nele, de alguma forma sabia que se lhe pedisse uma coisa ele ia cumprir?
Sim e como o via muitas vezes, não era alguém que fosse desaparecer de um momento para o outro.

Ele começou a perceber qual era o seu projeto e quis fazê-lo consigo?
Sim, mas quando ele começou a fotografar senti que isso não era benéfico para ele, era mais benéfico para mim e esse não era o objetivo. A ideia era que fosse algo de bom e desafiante para os dois, não era o caso. Passado uns meses, comprei uma máquina Polaroid e aí tudo se tornou mais horizontal entre mim e os outros. Estabeleci contacto com pessoas que me fotografam de igual para igual.

Usou as polaroids também para que as pessoas escrevessem nelas o que quisessem. Foi um método de trabalho que usou durante muito tempo, tem muitas polaroids?
Não tenho muitas, são cerca de 15. Não é um processo que queira forçar a acontecer. Gosto mais da ideia das pessoas virem ter comigo e partirmos daí, do que ser eu a forçar interações com as pessoas.

A Polaroid serviu então só para uma aproximação?
Sim. Essa aproximação permite então o retrato que me fazem a mim e o retrato que lhes faço a elas e que vou guardando no meu diário gráfico. É nesse contexto que conheço o Valentin, que acaba por ser o mote para este projeto.

"Há ainda alguma coisa nestas fotografias que indica uma procura e um devaneio. Há sempre pormenores que indicam alguma coisa, mas que não revelam totalmente o que são, ou que não conseguimos ver além deles. Como um pé que se anuncia por detrás de uma vedação e que nos deixa algum mistério sobre a sua identidade."

Conhece-o com uma Polaroid ou com uma máquina fotográfica descartável?
Para dizer a verdade até foi de outra maneira. Geralmente, gosto que as pessoas venham ter comigo, mas neste caso estava a ir para casa num final de noite e precisava de um isqueiro para acender um cigarro e fui-lhe pedir a ele o isqueiro. A Polaroid só surge dias depois, não foi imediata. Nessa conversa, percebi que ele estava muito descontente por continuar em Lisboa e eu, por impulso, ofereci-me para o ajudar a voltar para a Moldávia natal.

Ele fazia o quê cá?
Trabalhava na construção civil. Naquela altura, em abril de 2023, as obras tinham acabado e o patrão tinha-se ido embora. Ele tinha ficado sem trabalho e sem meio de subsistência. Estava com vontade de regressar à Moldávia e eu disse-lhe desde logo que iria fazer isso acontecer e que seria possível ele regressar.

Ele tinha alguma profissão mais estável na Moldávia?
Trabalhava como motorista, ou como maquinista, tudo o que tinha a ver com transportes e agricultura.

Combinou com ele que, durante a viagem de regresso, ele tiraria fotografias e lhas enviaria, certo?
Exato. Dei-lhe três máquinas descartáveis para ele fotografar a viagem e para que, quando chegasse à Moldávia, me as enviasse por correio.

O que pretendia era que ele fotografasse a viagem?
Sim, a viagem. Era o percurso. Trata-se de uma viagem que ocorre todas as semanas de Lisboa até Chisinau [capital moldava]. Tinha curiosidade em saber como é que essa viagem se desenrolava.

E o que pretendia fazer com as fotografias, já tinha ideia de fazer qualquer coisa com elas profissionalmente?
Não, não fazia ideia. À época ele perguntava-me muito de que forma é que podia retribuir o que eu estava a fazer por ele, uma vez que o ajudei a arranjar o dinheiro para a viagem. Achei que mandar-me imagens seria uma ótima forma de me retribuir. Não tinha qualquer propósito em relação às fotografias.

As máquinas não chegaram e resolveu ir à procura do Valentin.
Três ou quatro meses depois resolvi ir porque fiquei mesmo curioso com a viagem e com a ideia de ir à descoberta de um país sobre o qual sabia muito pouco. Também queria tentar perceber como é que as coisas tinham corrido com ele. E com o propósito fotográfico de contar alguma coisa, uma vez que achava a história interessante.

Antes de ir quis saber mais sobre a Moldávia?
Pouco, só os traços gerais da cidade para onde ia, como era, que dimensões tinha.

O que é que o levou a fotografar uma cidade tão rara de forma a que, mesmo quem a conhece, dificilmente a consiga identificar?
Não queria que este projeto fosse um documento sobre aquela cidade.

Evitou por isso todos os monumentos e edifícios soviéticos que caracterizam Chisinau e preferiu fotografar uma quase não-Chisinau, um não-lugar?
Sim. Tanto podia ser Chisinau como outra cidade qualquer, preferi fotografar coisas que podemos identificar também em muitos outros espaços urbanos. Era isso que me interessava mais.

Interessava-lhe o vaguear, o vazio, a solidão, o encontro consigo próprio também?
Também, sim. Até porque, apesar de ter sido num curto período de 30 dias, nunca tinha trabalhado numa viagem em que passei tanto tempo sozinho à deriva pela cidade. Em certa medida, foi uma descoberta sobre mim, e de afirmação minha enquanto fotógrafo e enquanto alguém que quer dizer algo sobre o que faz.

Uma espécie de viagem interior?
Sim. À medida que o tempo foi passando nesta viagem, também me fui sentindo mais familiarizado com aquele território e com as pessoas que me rodeavam. No início, deslocava-me sempre de autocarro do centro até às zonas mais periféricas da cidade e andava até ao local onde estava alojado, que foi sempre o mesmo. No final da viagem, o meu raio de ação era muito mais curto, fazia voltas muito mais pequenas. Já não sentia necessidade de me deslocar tanto para perceber o que queria e o que não queria fotografar. E é interessante perceber como, às vezes, o nosso corpo nos guia quase inconscientemente para os sítios onde queremos ir, sem querermos ir propositadamente. Muitas vezes fazia percursos diferentes, mas acaba em sítios por onde já tinha passado e que de alguma forma me atraíam.

Não chegou a encontrar o Valentin?
Não. Ele tinha-me dito que ficaria na casa de um amigo que era dentista e eu tinha feito o mapeamento de todos os consultórios de dentistas de Chisinau. Fui batendo às portas, mas eram muitos e a tarefa tornou-se muito desgastante e infindável.

Questiona-se sobre o que lhe aconteceu?
Quando parti no autocarro para Chisinau fui o único a sair de Lisboa. Évora, Beja, Portimão, Sevilha foram as cidades onde entraram mais pessoas, outras também saíam em Espanha ou em França para trabalhar. Poderá ter acontecido isso, por exemplo. O Valentin pode ter conhecido alguém, também moldavo ou romeno, que lhe tenha falado de outro trabalho. De resto, quando cheguei à fronteira entre a Roménia e a Moldávia e a polícia fez o controlo dos passaportes, quatro ou cinco pessoas que tinham o passaporte caducado tiveram que pagar a sua entrada no país às autoridades moldavas. Poderá também ter-lhe acontecido o mesmo e ele não ter dinheiro para entrar.

E quando lhe surge a ideia de desenvolver este projeto do não-lugar, ou da margem, ou do não-espaço, dando voz ao seu percurso pessoal enquanto fotógrafo, porque é que mantém a narrativa que o levou até lá, a história do Valentin?
Acho que há ainda alguma coisa nestas fotografias que indica uma procura e um devaneio. Há sempre pormenores que indicam alguma coisa, mas que não revelam totalmente o que são, ou que não conseguimos ver além deles. Como um pé que se anuncia por detrás de uma vedação e que nos deixa algum mistério sobre a sua identidade. A exposição termina com uma pintura que é um vórtice que serve quase como um loop para voltarmos para trás e irmos para a frente outra vez e andarmos sempre nesta tentativa de desvendar algo.

De encontrar e não encontrar, dar a ver mas não revelar tudo…
Sim…

"É totalmente diferente pegar na minha máquina digital e sair para a rua e fotografar e pegar em filme e ir para a rua fotografar. Tenho muito mais opções para fazer coisas com uma máquina digital, na verdade. Tenho um cartão de memória e cinco mil imagens para tirar. O que acontece é que se gastam muito facilmente essas cinco mil imagens para depois não termos nenhuma que se aproveite."

Walking Thru the Sleepy City é um título que foi mesmo buscar aos Rolling Stones?
Fui sim. A certa altura, a letra diz que é sempre melhor não andar sozinho e eu também senti isso quando andava com os cães que me iam guiando pela cidade.

Chisinau é uma cidade dura para se estar sozinho, ou pelo menos leva-nos para sítios onde não gostamos de estar muito tempo sem ninguém. Precisamos de uma companhia e ali não há…
É mesmo isso.

Falemos do seu percurso pessoal: nasceu em 1996 em Braga…
Mas vivi até aos 15 anos no Ribatejo, em Salvaterra de Magos. Depois mudei-me para Lisboa e quando acabei o ensino secundário, sem saber muito bem o que queria seguir, fui para Copenhaga com o objetivo de estudar arquitetura, mas fiz apenas um semestre e regressei a Lisboa. No entanto, quando estava em Copenhaga, como também não conhecia muitas pessoas, comecei a andar muito pela cidade e a fotografar a cidade.

Foi aí que encontrou a fotografia, ou foi aí que a sua relação com a fotografia mudou?
Foi nessa altura que percebi que era isto que gostava de fazer e que me sentia bem a fazer. Deixou de fazer sentido estar a tirar um curso que não me satisfazia. Tentei encontrar opções em Copenhaga para cursos de fotografia, mas eram todos em dinamarquês e resolvi voltar para Lisboa para ingressar numa licenciatura em fotografia.

Fez a licenciatura na Universidade Lusófona?
Sim. Entretanto continuei o percurso fazendo o mestrado também na Lusófona, e que estou agora a terminar.

Antes de descobrir a fotografia em Copenhaga que caminhos conhecia da fotografia, o que lhe interessava?
Pouco. Tinha apenas alguma relação com a imagem porque tirei um curso profissional de audiovisuais e nesse curso ia dando, em modos gerais, vídeo, som, fotografia. A escola tinha um pequeno laboratório e foi aí que tive o primeiro contacto com o processo de revelação do filme e com a fotografia em película, mas tudo de uma forma mais técnica e não tão aprofundada no que respeita às referências artísticas e à história da fotografia. O que aprendi aí foram ensinamentos pragmáticos a começar pela forma como se pode mexer numa câmara.

Já nasceu praticamente na era digital, não foi estranho para si optar pela fotografia analógica? Muita gente da sua idade nem se lembra que o filme existe…
É verdade.

Como é que conseguiu descobrir a fotografia no seu sentido mais ancestral e não se ficou apenas pela fotografia de hoje banalizada pelos telemóveis que tudo fixam sem qualquer critério ou intenção?
Penso que foi precisamente por isso. Escolhi o filme porque sinto que com ele o tempo é diferente. A noção de tempo que perdemos a fazer as imagens e depois o tempo que temos que despender para as conseguirmos ver. Além de uma preocupação acrescida pela forma como as devemos pensar também. É totalmente diferente pegar na minha máquina digital e sair para a rua e fotografar e pegar em filme e ir para a rua fotografar. Tenho muito mais opções para fazer coisas com uma máquina digital, na verdade. Tenho um cartão de memória e cinco mil imagens para tirar. O que acontece é que se gastam muito facilmente essas cinco mil imagens para depois não termos nenhuma que se aproveite.

É outro raciocínio, outra forma de pensar?
Sim, e nem sequer trabalho de uma forma muito metódica e parada a fotografar, não uso aquele estilo de tripé a pensar milhares de vezes no enquadramento… No entanto, a decisão de tirar a fotografia é muito mais ponderada no analógico e muito mais olhada, mesmo que seja inconscientemente. É de facto mais pensada. Até porque o filme é caro e…

É finito, enquanto o cartão de memória parece não ter fim.
O que até é bom para pensarmos sequências de imagens que vamos fazendo. Tendo 12 fotografias para fazer num rolo, se calhar vou pensar melhor na sequência que quero fazer.

Há uma tomada de posição, há uma decisão, enquanto que no digital provavelmente a decisão só surge depois, não?
Exato.

O que sentiu quando recebeu o telefonema a dizer que tinha ganho o prémio Novo Banco Revelação?
Fiquei admirado e bastante feliz, naturalmente. Entre essa notícia e agora a inauguração da exposição passou um mês. Aconteceu tudo muito depressa. Foi um processo desafiante para mim que nunca tinha feito uma exposição individual e algo assustador também quando vi pela primeira vez as salas onde ia expor. Do universo de 90 fotografias que tinha à partida, selecionámos 28.

E agora, o que é que vai fazer?
No final do ano ou no início do próximo irei ter uma outra exposição individual na galeria No Gallery e, entretanto, em setembro, a convite de uma investigadora de arquitetura também da Universidade Lusófona, Maria Rita Pais, que, [ao lado do arquiteto Luís Santiago Baptista, tem o projeto Na Linha da Frente. A arquitectura do bunker nas linhas de defesa da Europa Central, vencedor do Prémio Fernando Távora 2023], irei fotografar os bunkers da Lituânia, Bósnia e Croácia. E ainda ando a pensar numa viagem que gostaria de fazer no próximo ano, uma viagem de comboio muito longa, que parte de Lisboa ou do Porto, que não é direta, claro, mas que vai até ao Vietname, que gostava de fazer durante um mês e meio ou dois.

 
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