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Marcelo andou o dia todo a conduzir o próprio carro, sozinho, deixando a viatura de Estado para os seguranças. Foi assim que chegou, esta quinta-feira, à porta do Liceu Pedro Nunes, onde nos anos 60 chegou a exibir a sua mota Pachancho, “a mais baratinha“. Uma geringonça, que o pai lhe ofereceu por ter o 19 de média que lhe tinha prometido. Marcelo chegou à Estrela já depois de falar ao telefone com o primeiro-ministro, que, mesmo em Bruxelas, lhe ligou a felicitá-lo por completar um ano em Belém. Em Lisboa, o Presidente começava uma quinta-feira igual a tantas outras. Deu uma aula, vendeu revistas Cais, passou por três exposições e ainda condecorou duas antigas primeiras-damas. É também o primeiro ano sem Cavaco Silva, que não se livrou de referências implícitas.
No liceu, onde foi aluno 7 anos, Marcelo voltou a ser professor por umas horas. Respondeu a tudo, ou quase tudo, porque se recusou a fazer uma auto-avaliação do primeiro ano mandato. De 0 a 20, pediu uma aluna. Mas, Presidente fugiu à pergunta, mesmo lembrando os tempos em que dava notas a políticos na rádio: “A auto-avaliação é sempre suspeita. Uma pessoa nunca se pode separar de si mesma“.
Os alunos do liceu quiseram também saber o que Marcelo iria fazer quando saísse da Presidência. “Faltam quatro anos“, disse aos alunos; “Faltam nove“, insistiria mais tarde uma amiga com quem se cruzou pela hora de almoço. Aos estudantes, o Presidente acabou por responder que, quando saísse de Belém, iria “dar aulas”, “fazer palestras”, mas não resistiu a deixar indiretas ao antecessor: “Não vou escrever sobre os primeiros-ministros com quem trabalhei, nem vou escrever um livro de memórias. O que se passou, passou“. Pouco depois — em mais um almoço “frugal” numa esplanada em Belém — voltava à carga, lembrando o episódio em que Cavaco Silva foi captado pelas câmaras televisivas a comer “bolo-rei” de boca aberta: “Isto faz-me lembrar um político qualquer que foi apanhado a comer com a boca cheia.” Ao final do dia, acabaria por se encontrar com o próprio Cavaco Silva.
Um já está. Mas afinal, faltam quatro ou nove?
No auditório do liceu, Marcelo ia dando conselhos aos alunos que o questionavam. “Segura [no microfone] como se estivesses a comer um gelado, pá”. “Ó tu aí, que tens cara de intelectual, faz lá a pergunta.” E respondia até para além do que lhe era perguntado. A questão foi: “Sempre quis ser presidente?”. Marcelo começou por dizer que não e que o amigo Eduardo Barroso é “o responsável pelo mito urbano” de que ele queria ser “Presidente desde pequenino”. Até porque, na altura, “queria ser professor catedrático.”
Três livros e três momentos
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Os alunos fizeram perguntas mais diretas a Marcelo Rebelo de Sousa, como os livros que mais o marcaram. O Presidente, que tantas obras recomendou ao domingo na televisão, apontou três obras:
- “A Condição Humana“, de André Malraux;
- “Ulysses”, de James Joyce;
- “Guerra e Paz”, de Lev Tolstói.
Já os jornalistas também perguntaram a Marcelo quais os três momentos mais marcantes no primeiro ano de mandato:
- A eleição do António Guterres;
- O 10 de junho celebrado com os portugueses em Paris;
- A vitória de Portugal no Europeu de Futebol.
Ao longo da vida, contava Marcelo — interrompido a espaços pela campainha da escola (“que me fez sofrer, chegava sempre atrasado…”) — foi um “político ocasional”. Foi deputado constituinte porque “calhou”. Esteve no Governo porque “calhou”. E foi líder da oposição porque, imagine-se, “calhou.” Mesmo que ninguém lhe tenha perguntado sobre a continuidade em Belém, o Presidente chamava uma vez mais o neto Francisco, o seu preferido, à conversa: “O meu neto Francisco disse: ó avô, candidata-te, experimenta, não tens nada a perder. Pode ser que corra bem. Só ponho uma condição: que seja só cinco anos, porque senão não podemos passar tempo com o avô.”
Outro aluno, pouco depois, perguntava a Marcelo, se havia algo na escola que fosse especial para por ali terem passado três Presidentes: Américo Tomás, Jorge Sampaio e o atual chefe de Estado. O Presidente deu uma resposta mais à medida do que queria dizer e insistia: “Ser professor é toda a vida, Presidente da República são só cinco anos”. Deixou, no entanto, em aberto a possibilidade de ficar dois mandatos, mesmo que a pergunta tenha sido apenas: “Arrepende-se de se ter candidato a Presidente?” Marcelo deu voltas à resposta e lá disse o que queria: “No verão de 2020 vou pesar a situação que existe em Portugal e, se sentir de novo o dever de consciência, sou candidato outra vez.”
Costa só vê dias de Sol
O dia estava quase de verão e, talvez por isso, Marcelo tenha optado por uma metáfora meteorológica, quando decidiu falar aos alunos — que, mais uma vez, não o tinham questionado — sobre o otimismo de António Costa. “Eu não sou tão otimista como o primeiro-ministro. O primeiro-ministro, ainda não nasceu o dia e diz que vai ser um dia lindo, de sol. Eu digo que poderá ser sol ou chuva, mas que acredito que pode ser sol”, explicou o Presidente.
Pela manhã, Marcelo já tinha falado com António Costa, que não se poupou em elogios em declarações públicas e até nas redes sociais.
Felicito o Sr. Presidente da República pelo 1º ano de mandato e pela sua contribuição para o clima de paz social e maior confiança no país. pic.twitter.com/zNf3pw0z8I
— António Costa (@antoniocostapm) March 9, 2017
António Costa foi entusiasta e falou numa cooperação institucional “exemplar”. Pouco depois, ainda no Liceu Pedro Nunes, Marcelo Rebelo de Sousa falava da relação com Costa com alguma frieza: “O primeiro-ministro disse que foi um relacionamento exemplar do primeiro-ministro em relação Presidente da República, que se compreende, aliás, porque o primeiro-ministro só fala por ele e fala pelo Governo.” E acrescentou de forma seca e desinteressada: Da parte do Presidente, o que houve foi um cumprimento da Constituição.” Durante cerca de sete minutos (em som, em baixo) despachou os assuntos de atualidade, antes de seguir para Belém, como mandava a agenda, vender revistas “Cais”.
“Esta tem o João Baião! Compre!”
Marcelo Rebelo de Sousa sentou-se na esplanada do restaurante Sabores de Belém com dois vendedores da revista “Cais”, António Pias e José Barros, fardados a rigor com coletes amarelos. O Presidente só não vestiu um igual porque se esqueceu dele no Palácio de Belém.
Parte da ação foi sentado, onde aproveitou para um almoço rápido, e para tentar ir vendendo algumas revistas. “Esta aqui tem o João Baião [que é a figura de capa da revista]. Compre. São dois euros”. Acabou até por adquirir algumas e oferecê-las a estudantes que se iam chegando para mais uma selfie. Na edição de maio, ia contando o Presidente, é ele próprio que vai ser o diretor da revista e já definiu o tema: a juventude. O Presidente avança ainda que a edição terá uma “reportagem fotográfica”.
Pelo meio, uma imigrante síria, que já se tinha queixado ao Presidente que não conseguia trazer o marido para Portugal, voltou a pedir a Marcelo que a ajudasse (já o tinha feito antes, ali por Belém). O chefe de Estado dava-lhe novamente um conselho: “Diga-lhe para ir para a Grécia ou para a Turquia, que depois é mais fácil. É difícil vir diretamente para Portugal.” Também houve tempo para a conversa com dois gémeos de 10 anos, o Hugo e o Tiago, que explicaram ao presidente que eram ambos do Benfica. “Viram o jogo ontem? Correu mal…”, ia dizendo o Presidente, que ainda falou na “reviravolta do Barcelona”. Os gémeos iam contando que praticavam taekwondo, o que foi um pretexto para Marcelo confessar que já fez atividades como “aikido, yoga e meditação transcendental”. Sim, leu bem, “meditação transcendental.”
Seguiu-se uma arruada presidencial, em que Marcelo conseguiu vender mais algumas revistas. Balanço: cerca de 30 revistas vendidas. Portanto, 60 euros. António Pias vende a revista há dois anos, desde que ficou “desempregado” e foi “acolhido, bem acolhido, pela Cais”. Atualmente são as vendas que lhe permitem a subsistência: “Vivo da revista, dá para viver”. Os dois vendedores e Marcelo usaram a mesma expressão para definir a venda: “Correu bem.”
A venda terminou já para lá das duas e meia e Marcelo pegou mais uma vez no próprio carro com destino a parte incerta. A tal agenda oculta. Ou privada. Ou nem oculta, nem privada, porque aparece sempre uma televisão.
Três museus e uma condecoração relâmpago
Marcelo conseguiu ir ao Convento da Trindade ver uma exposição “Cidade Gráfica. Letreiros e reclames de Lisboa no século XX” sem que nenhum jornalista o detetasse. Isso acabaria por acontecer no Museu do Chiado, quando o jornalista da SIC, José Manuel Mestre, interpelou o Presidente em direto e fez-lhe uma entrevista exclusiva durante cerca de um quarto de hora. O evento era privado, mas tornou-se mais um “Marcelo show” em direto. Falou de arte, de política, da arte da política. Voltou a dizer que Costa é “irritantemente otimista” e prometeu que nunca vai mudar a “maneira de ser”. Falou, basicamente, de tudo, até do medicamento Omeprazol, que confessou que anda a tomar menos. Admitiu que ia continuar a agenda privada e que, dali, ainda iria ver uma exposição de Graça Morais à Fundação Champalimaud.
O dia acabaria em Belém, com a presença de dois dos seus antecessores que foram assistir à cerimónia de condecoração das suas mulheres e ex-primeiras damas. Função que Marcelo não reconhece e sobre a qual, durante a campanha eleitoral, chegou a dizer taxativamente: “A Constituição não prevê tal cargo.” E não prevê. Ainda assim, o Presidente prestou a homenagem numa cerimónia breve, onde falou pouco mais que um minuto. “Uma palavra apenas porque há gestos que não carecem de longo fundamento de tão óbvia ser a sua justificação. Um ano depois de iniciar o mandato presidencial, posso testemunhar o papel nacional e internacional assumido por vossas excelências ao longo de uma década. Cá dentro junto de um sem número de obras sociais, educativas, culturais, com o sentido de serviço e eficiência, lá fora, tornando mais presente o nome de Portugal em iniciativas oficiais e contactos pessoais, com afinco e total entrega”, justificou Marcelo.
O Presidente acrescentou que é de “estrita justiça seguir o exemplo de Jorge Sampaio quando agraciou Manuela Eanes e Maria Barroso” e reiterou que é um “agradecimento por quanto dedicaram das suas vidas a Portugal e que Portugal nunca esquecerá.” Seguiram-se os cumprimentos. O dia de Marcelo foi intenso, mas acabou quando ainda havia sol. O tal que o primeiro-ministro acredita que brilha sempre.