“Olá, linda.” Era assim que começavam todos os postais do tio Ed. Enquadradas por fotos das paisagens de Chicago, seguiam mensagens sobre a cidade, a saúde, a família e perguntas sobre a escola. Do conteúdo, Ann Napolitano já não se recorda, mas aquela frase inicial nunca a abandonou — até porque tinha visto o tio apenas um par de vezes e, mesmo aos cinco anos, sabia que a expressão era muito mais profunda do que um elogio à sua aparência.
O quarto e mais recente livro da escritora norte-americana (depois de A Good Hard Look, Within Arm’s Reach e Dear Edward) foi buscar o título a essas memórias de infância (Olá, Linda é editado em Portugal pela Topseller, chancela da Penguin Random House) e apresenta uma saga familiar que já conquistou Oprah Winfrey e Barack Obama, tornou-se instantaneamente bestseller do New York Times e, no ranking feito no final da primeira metade de 2023, foi eleito pela Amazon como Melhor Livro do Ano.
No centro da história está William, um jovem que deixa para trás uma tragédia que destrói o seu núcleo familiar. A solidão e a escuridão que sempre o acompanharam parecem desaparecer quando conhece Julia, por quem se apaixona, e as três irmãs. Entre as quatro há um elo inquebrável e a família Padavano dá a William a casa e o acolhimento que ele nunca tinha sentido. Até que o passado demonstra ser mais pesado e decisivo do que alguém podia imaginar e se instala uma desavença para a qual não sabemos se haverá solução.
Durante quase 500 páginas o foco vai saltando de umas personagens para as outras. Torcemos por elas sem nunca termos a certeza que vão ficar bem. O mesmo aconteceu a Ann Napolitano, que garante que só vai descobrindo o rumo dos seus protagonistas à medida que vai escrevendo. Antes disso, passa nove meses apenas a pensar e a pesquisar, sem nunca começar o texto.
O Observador falou com a escritora, a partir da sua casa em Brooklyn (EUA), sobre o processo de luto que estava a passar enquanto escrevia Olá, Linda, os paralelismos com Dear Edward (que é também uma série da Apple TV+), o telefonema que recebeu de Oprah Winfrey enquanto estava a despejar o lixo e os planos para uma adaptação televisiva.
Comecemos pelo nome, Olá, Linda. Era um cumprimento dos seus tios, nos postais?
Deve ter começado quando eu tinha quatro ou cinco anos, foi logo quando comecei a saber ler. A minha mãe tem cinco irmãs e irmãos e vivíamos todos na zona de Nova Jérsia, tirando um que se tinha mudado para Chicago, o meu tio Ed. Eu era muito pequena, ele enviava-me postais com as paisagens de Chicago e começava sempre com “Olá, linda”. Ele não sabia realmente como eu era porque mal o via e ele tinha 20 milhões de sobrinhos, mas sentia que estava a dizer-me que eu era linda interiormente. Como era muito tímida, um ratinho de biblioteca, parecia realmente que, se eu fosse bonita, seria no interior. Portanto, aquela saudação fez-me sempre sentir especial e acolhida. E, como ele vivia em Chicago, que eu mal conhecia porque ficava relativamente longe, parecia um sítio mágico onde este meu tio, também ele mágico, vivia. Colocar ali a ação da história, no bairro de Pilsen, onde ele tinha vivido, era emocionalmente verdadeiro.
Tinha memórias do sítio onde o seu tio vivia mas eram memórias de criança. O livro é bastante descritivo, com locais que existem realmente. Voltou lá antes de começar a escrever?
Em 2019 estava a fazer uma tournée a propósito do meu livro anterior [Dear Edward], fui um dia antes e estive com o meu tio e a minha tia. Levaram-me a todo o lado em Pilsen, mostraram-me a biblioteca, os murais que estão por toda a parte e tornam a localidade tão mágica, e estive com uma data de pessoas que conheciam os meus tios desde sempre. Eu sabia que queria que a ação acontecesse ali, por isso foi uma expedição de pesquisa.
Disse aos seus tios que estava a escrever um livro que se passava ali? Já sabia qual ia ser o título nessa altura?
Não falei sobre o título, ainda não tinha tido a ideia. Isso aconteceu quando estava a escrever há cerca de um ano. Pensei: oh, os postais do meu tio. Senti que seria assim que o Charlie, o pai das raparigas, se dirigiria às filhas e elas teriam o mesmo tipo de sensação que eu tinha. Em relação ao livro, disse aos meus tios que queria centrá-lo ali, mas como sou escritora a reação foi um “sim, sim” e desvalorizaram. Não é real até ser real, sabe? Quanto terminei de escrever e já tinha um exemplar de avanço, enviei-o ao meu tio e ele gostou muito. Deve ser um pouco estranho para ele, mas ao mesmo tempo espero que seja divertido e empolgante.
Há alguma personagem criada à imagem do tio Ed?
O William é inspirado nele. Têm comportamentos semelhantes e um historial familiar parecido. Há algo do meu tio no William e esse também foi um dos motivos para colocar a ação da história ali. O meu tio também deixou a Costa Este e mudou-se para Chicago. Há milhões de fios diferentes que criam um todo mas ele é, definitivamente, um fio condutor muito importante.
Escreveu o livro num período surreal, a pandemia, e quando o seu pai tinha acabado de morrer. Ter uma personagem importante a morrer no livro e escrever as cenas do funeral, por exemplo, foi uma forma de fazer o luto daquilo que a própria Ann estava a passar? Foi por isso que incluiu a morte de uma figura paternal na história [atenção: a resposta contém spoilers]?
Eu não sabia que o Charlie ia morrer. Antes de começar a escrever, passo uns nove meses em que não me permito escrever, apenas pesquiso, anoto coisas e tento pensar na história de uma forma racional, o que não consigo fazer quando estou a escrever. Tinha pensado no Charlie e na relação dele com as miúdas mas não sabia que ele ia morrer até começar a escrever. E depois ele morre. E eu penso: OK, faz sentido, tendo em conta o que se passa dentro de mim. Pareceu realmente uma cura e que eu tinha completado algo porque o meu pai tinha realmente morrido, em abril de 2020. Nessa altura não podíamos reunir-nos e não estivemos com ele quando estava a morrer. E não pudemos estar juntos depois de ele morrer, o que é triste e aconteceu a muita gente naquele período. Ao escrever sobre o velório e o funeral do Charlie, senti que estava a passar por esses processos que não pude fazer na vida real. Não o fiz intencionalmente, mas teve significado para mim. Ao escrever, pensava: ok, percebo o que o meu subconsciente está a fazer por mim.
Durante meses vai anotando coisas, como se fossem peças soltas de um puzzle. Mas quando começa a escrever não tem uma ideia exata do fim ou de como tudo se vai juntar?
Na realidade, não. Defino o máximo na minha cabeça, mas isso corresponde para aí a 30% ou 40% do que acaba por acontecer. O resto vou descobrindo à medida que vou escrevendo. É bom chegar com alguns pensamentos porque quando estou a escrever aquilo a que chamo “frases bonitas”, que é a minha parte preferida, sinto a música da linguagem e não é nada racional. Não consigo pensar no enredo ou nas minhas intenções nesse espaço de tempo, têm de ser coisas separadas. Passar nove meses antes de escrever a ser racional acaba por funcionar melhor para mim.
Quando começa a escrever é muito rápido e a história sai em catadupa ou por vezes esbarra em paredes e tem de voltar para trás?
Demorei dois anos a escrever o livro, o que, para mim, é muito rápido. Há uma frase muito boa do escritor E.L. Doctorow em que ele diz que escrever um livro é como conduzir até casa numa noite de nevoeiro. Não conseguimos ver para lá dos faróis do carro, mas é o suficiente para nos levar até casa. Vemos um bocadinho e depois mais um bocadinho e mais um bocadinho. Até chegarmos à entrada da garagem. Acho que é verdade. No ponto em que estou na história, geralmente sei as próximas uma ou duas coisas que vão acontecer. Depois disso não sei, mas ao escrever essas duas coisas, mais duas coisas aparecem. Há partes mais desafiantes do que outras, em que tenho simplesmente de continuar porque não está muito claro. É um salto de fé, rezo para que funcione. Se não funcionar, é para isso que serve o botão “delete”.
A personagem do Charlie está lá, mas não está realmente lá, é ausente, perdido nos seus demónios apesar de estar presente fisicamente. De repente morre e torna-se esta presença poderosa. Também não sabia que ele ia tornar-se tão importante?
Nesse caso, acho que sabia. O interessante no Charlie é que eu sabia o valor dele desde o início. Conseguia perceber na maneira como interagia com as filhas que ele via realmente quem era cada uma, via a beleza individual delas. Quando as cumprimenta com um “olá, linda”, está a trazer essa beleza para a superfície e isso permite que elas saibam quem são. Quando ele já não está presente e cada uma tem pela frente uma escolha muito difícil, conseguem decidir graças ao que o pai fez por elas. Portanto, eu sempre soube que ele seria incrivelmente poderoso, mas o que também é interessante é o facto de, ainda vivo, ser uma desilusão para as pessoas à volta dele. Não ganha dinheiro suficiente, não contribui, está bêbado a maior parte do tempo, é uma enorme frustração para a mulher. E é verdade. Mas o amor que ele dava é o tipo de amor que nos molda e nos salva. E isso é tão verdade quanto o desapontamento que causava. Foi interessante para mim ver como cada uma destas coisas pesava. Acho-o maravilhoso, mas é também uma pessoa muito difícil para se viver. E há muitas pessoas assim.
Nos seus dois livros mais recentes, Dear Edward e Olá, Linda, tem no centro dois rapazes, duas histórias de luto e dor. O que é que os une?
O Edward é o único sobrevivente da queda de um avião. Ele tenta sair deste desastre que é a sua vida e o acidente. É sobre perceber se consegue viver depois de ter perdido tanto. Em Olá, Linda, o William sai de uma colisão emocional. A infância dele está repleta de destroços emocionais e ele não tem o amor que todas as crianças merecem. Portanto, não tem uma estrutura interna que o ajude a transformar-se num adulto. Ambos estão a sair de algo trágico e devastador. Enquanto escritora, não sei se vão ficar bem ou não. O que me leva a escrever estes livros é descobrir se conseguem fazê-lo.
Serem ambos homens foi uma escolha deliberada?
Não sei se consigo responder a isso. Em Dear Edward fiquei obcecada com a história real da queda do avião que ia da África do Sul para Londres e da criança que sobreviveu. Ele era pequeno quando aconteceu o acidente na Líbia, em 2010. Nesse caso, não podia imaginar o protagonista de outra forma. O William foi inspirado no meu tio que é, obviamente, um homem. Portanto, foram essas pequenas coisas que ditaram que assim fosse. Não foi deliberado e parte de mim dizia-me que devia estar a escrever [com uma protagonista mulher] mas, ao mesmo tempo, há [no livro] tantas mulheres e são tão lindas. As quatro irmãs são tão importantes quanto o William. Portanto, deixo-me conduzir por quem faz mais sentido.
À medida que estamos a ler, não temos a mínima ideia para onde se encaminham as personagens. Num thriller, o objetivo principal pode ser descobrir quem é o assassino, é uma pergunta simples. Aqui não é assim. Qual é a pergunta aqui?
Penso que as pessoas vão continuando a ler pelos mesmos motivos que me levaram através do livro: conseguirá o William transformar-se num adulto completo capaz de amar e capaz de acreditar que merece ser amado? Conseguirão as irmãs Padavano encontrar o caminho de volta depois das fissuras que aconteceram? Eu não sabia a resposta para nenhuma destas perguntas, tinha de escrever para descobrir. Sabia o que esperava que acontecesse mas, ao escrever, o que é importante é ter a certeza de que faz sentido. Cada momento tem de ser verdadeiro, mesmo sendo inventado, tem de fazer sentido que o William pense aquilo naquele momento, que ele aja assim. A Julia reagiria de tal forma, tem de ser real.
Há muitas personagens e são muito importantes. Como é que mudava o chip de umas para as outras?
O meu trabalho é isso quando estou empolgada. É como se escrevesse com um diapasão musical, estou sempre a perguntar: será esta frase verdadeira? Procuro a resposta emotiva e a reação de cada personagem em determinada situação. Se sentir que é aquela verdade, então é só isso que quero. Quando chego ao final do livro, quer seja um final feliz ou triste, pelo menos é verdadeiro, tudo se encaixa. Algo terrível para mim seria colocar a Julia a fazer algo que eu não acredito que ela faria. É uma jornada intensa e penso que os leitores estão, de certa forma, a sentir o mesmo, que estão dentro da história.
Tem um irmão, uma irmã e uma meia-irmã, mas não foram eles que inspiraram as irmãs Padavano. De onde veio essa inspiração?
A mãe da minha melhor amiga de infância, a Leah, tem cinco irmãs. Eu costumava dormir em casa da Leah e as tias dela entravam e saíam lá de casa a qualquer hora. Tinham todas metro e oitenta e uma versão ligeiramente diferente da mesma cara. Quando estavam juntas pareciam mais elas próprias do que quando estavam separadas e eu observava-as como se fossem uma série de televisão, achava-as fascinantes. Demorei anos a perceber quem era quem por serem tão parecidas. Quis escrever sobre essa irmandade, essa ligação mágica. Todos temos a família que escolhemos, os amigos que se tornam família, há várias formas, mas ter uma relação tão intrínseca com as pessoas com quem crescemos, tão enraizada como as tias da minha amiga, isso acho raro. Quis encontrar uma forma de passar isso para palavras.
Já tinha feito um luto quando estava a escrever. Sentiu que teve de fazer outro quando entregou o manuscrito?
Quando acabo de escrever um livro, segue-se a janela de tempo mais deprimente que tenho. Nos últimos seis meses em que estou a escrever, aquele universo é completamente real para mim. Tem três dimensões, eu conheço aquelas pessoas, amo aquelas pessoas. Sinto que estou a viver naquele mundo. Quando entrego a história ao editor, ela simplesmente desaparece. Vão ser editados parágrafos, gralhas, mas ainda não está nas mãos dos leitores e também já não está no meu computador. É como se tivesse simplesmente perdido a história. Já não é minha, eu estou presa fora dela e até ter outra ideia para um livro novo, basicamente sinto-me muito triste.
Já teve outra ideia para um livro novo?
Sim, parece que demoro dois meses entre entregar um manuscrito e ter uma ideia nova. Parece que o meu cérebro funciona assim, porque tem sido bastante consistente. Felizmente, após dois meses, começo a imaginar e a organizar um mundo novo na minha cabeça e sinto-me bem outra vez.
Em junho, Olá, Linda tinha sido eleito pela Amazon o Melhor Livro de 2023 até àquele momento, também fez parte das leituras de verão de Barack Obama e foi o 100.º livro do Book Club Pick de Oprah Winfrey. Recebeu uma chamada da própria Oprah?
Achei que era um bot. Nos EUA recebemos chamadas com gravações do género: “Olá, eu sou o Bill Clinton e gostaria que votasse em X.” É personalizado, mas é um computador. Ela disse “sou a Oprah Winfrey” e mais qualquer coisa e eu pensei que só podia ser um robot, mas o que raio estaria a promover? Parecia muito a voz dela. Então perguntei: “Oprah Winfrey? A Oprah Winfrey?” Estava a levar o lixo e atendi o telefone porque o indicativo era de Chicago, que é onde o meu tio vive. Tinha acabado de lhe mandar um exemplar de avanço e pensei que ele já o teria lido e estaria a ligar por isso. Se não fosse por isso, não teria atendido o telefone porque não conhecia aquele número. Quando percebi que era ela e estava a dizer coisas incríveis sobre o livro foi como uma experiência fora do corpo, uma adrenalina surreal. Foi a coisa mais empolgante que me aconteceu na vida, nunca teria sonhado com aquilo.
Qual é a história por detrás da capa do livro?
Quando estava a terminar de escrever, o meu editor disse-me que talvez fosse giro se a capa fosse como uma das pinturas da Cecilia [uma das irmãs da história], que pinta murais por todo o lado em Pilsen, basicamente com caras femininas. Pensei que a ideia era ótima e a única coisa que pedi foi que a mulher estivesse a olhar em frente, diretamente para nós. Não queria que parecesse bonita, mal-humorada ou sexy, só queria que estivesse a olhar em frente. Mandaram-me umas seis propostas e esta capa era logo a primeira. Adorei-a, é de uma artista incrível chamada Jessica Miller. Fez esta pintura especificamente para o livro, por isso sinto-me muito sortuda. Parece uma amálgama das irmãs e sinto que é um dos quadros da Cecilia.
Dear Edward foi transformado em série da Apple TV+. Olá, Linda tem o selo de aprovação de Oprah Winfrey, de Barack Obama e de uma data de críticos literários. Já há alguma adaptação televisiva a caminho?
Acho que algo vai acontecer. Houve estas greves em Hollywood que duraram meses e que impediram qualquer avanço, mas estávamos a ir numa determinada direção antes da greve. É um processo tão longo, tanta coisa pode correr mal, que acho que é sempre um milagre quando vejo algo chegar ao ecrã.