Será uma boa história para contar aos netos. Não há muita gente que possa dizer que logo no terceiro dia de trabalho, como ministro das Finanças, foi à Assembleia da República defender um orçamento público que tenta dar resposta a uma calamidade económica causada por uma pandemia global. Mas é isso que vai acontecer com João Leão, sucessor de Mário Centeno no Ministério das Finanças, já nesta próxima semana. É um ministro “atirado aos leões” na área económica mas que, para já, ainda deverá ser relativamente poupado no palco onde tem menos experiência, o debate político e o confronto parlamentar.
O primeiro “trabalho” de João Leão enquanto ministro das Finanças será, precisamente, defender o orçamento suplementar cuja elaboração liderou enquanto secretário de Estado – cargo que já tinha ocupado na legislatura anterior. A João Leão não falta experiência na interação com os diferentes ministérios mas, embora todos lhe reconheçam a capacidade técnica, o low profile que sempre manteve faz que com que alguns coloquem em questão, agora, se terá o arcaboiço que Mário Centeno demonstrou ter (embora alguns, à partida, tivessem dúvidas) para enquadrar na cabeça de um perito em Economia aquilo que é o “combate politiqueiro, por vezes agressivo e exasperante”, diz João Duque, professor catedrático e ex-presidente do ISEG.
Mas veremos, acrescenta João Duque: “Os políticos são como os melões, só se sabe realmente como são quando se abrem“, neste caso, quando são colocados nos principais lugares de poder. Todavia, João Leão até tem, à partida, maior ligação ao trabalho governativo – e, até, partidário – do que tinha Mário Centeno, cujo percurso anterior estava mais ligado ao Banco de Portugal. Se Centeno acabou por revelar algum gosto por esse combate político, será sobretudo uma questão de personalidade – “o escrutínio é tramado“, diz João Duque – e, também, de apoios. Para já, o debate parlamentar até foi antecipado em dois dias, para dia 17, para António Costa poder estar presente e não deixar o novo ministro das Finanças desamparado no seu “primeiro trabalho”.
António Costa Pinto, politólogo, também acredita, neste contexto, que no curto prazo “não é de antecipar que, do ponto de vista do combate político, João Leão seja atirado… aos leões”. “O que está em causa a curto prazo com este orçamento é um apoio urgente à economia, que irá passar por um enorme aumento da despesa pública. Por isso não é de prever que o novo ministro das Finanças seja muito questionado. Mas irá sê-lo, sem dúvida, um pouco mais tarde”, designadamente quando se começar a desenhar o próximo orçamento do Estado e o famigerado plano de recuperação a médio-longo prazo da economia portuguesa – “e, aí, a variável mais importante é uma que ele, o ministro, não controla: o apoio que virá da Europa“.
“Continuidade”? Bom para já, mas uma fragilidade no futuro
O Governo, na pessoa de António Costa, esforçou-se por bater várias vezes na tecla da “continuidade”, o que é compreensível nesta fase mas que poderá, a prazo, tornar-se a principal fragilidade pela qual a oposição poderá atacar: João Leão foi, a par de Mário Centeno, o principal artífice das decisões de cativações orçamentais e cortes no investimento público que marcaram a primeira legislatura – sem que se possa dizer, exatamente, que parte da responsabilidade por essa política é de João Leão.
Tenha essa responsabilidade sido muita ou pouca, será algo que ficou “colado” a João Leão (Mário Centeno chegou a chamar-lhe “o artífice das cativações” numa iniciativa do PS) e que deverá vir à baila já depois do verão, quando surgir o segundo grande “trabalho” do novo ministro das Finanças: capitanear a negociação do próximo orçamento do Estado (para 2021) e, em simultâneo, intervir no plano plurianual de recuperação da economia portuguesa.
O próprio (novo) ministro das Finanças indicou isso mesmo nas primeiras palavras depois de ser apresentado por António Costa: a primeira prioridade é “concentrar os nossos esforços no apoio ao emprego e às empresas e ajudar as famílias e os seus rendimentos”; a segunda prioridade é contribuir para que este Governo “volte a recuperar a economia” – João Leão enfatizou o volte, deixando implícito que este governo já o fez uma vez – “e conseguir o equilíbrio virtuoso entre o crescimento da economia e do emprego e, por outro lado, as contas certas”. “Só assim conseguiremos manter a estabilidade económica e social para os portugueses e este é um compromisso que assumo que vamos manter”, atirou, deixando transparecer algum nervosismo, no final da sua primeira declaração.
Mas João Leão tem, perante si, “um trabalho difícil”, diz o ex-ministro das Finanças Luís Campos e Cunha, porque “a seguir a um superavit vai ter, provavelmente, um défice recorde, provocado tanto pelo lado da despesa e da receita”. E está associado a isso o maior e mais crucial “trabalho” de João Leão. “É importante para o país que passado este momento de crise humana e social ele consiga evitar somar a esta crise económica uma crise de dívida pública e uma crise bancária“, diz Campos e Cunha.
Uma coisa é certa: pegar agora na pasta das Finanças, mesmo já tendo servido cinco anos como secretário de Estado do Orçamento, é mesmo ser atirado aos leões porque, devido à crise económica internacional, “ninguém sabe o que é que vai ser o país daqui a três meses“. É por isso que, como contrapõe João Duque, os trabalhos que se apresentam a João Leão se podem resumir de forma muito sintética: “É um petisco“.
De superávit para défice recorde. “Um petisco” económico
Mas será um “petisco” para alguém que, como descreve Jorge Braga de Macedo, sempre foi um “vidrado pela área da Economia”. O ex-ministro das Finanças e professor universitário conhece melhor o irmão, Emanuel Leão, que foi seu aluno, mas tem memória de que, tanto um como outro, eram perfeitamente obcecados pelas ciências económicas. Porém, Braga de Macedo tem uma visão um pouco diferente: existe muita incerteza, sim, como em todo o lado, mas muitas das tarefas ou estão totalmente definidas ou totalmente indefinidas.
É normal ser assim quando há uma passagem de pasta (das Finanças): foi assim, recorda Braga de Macedo quando Miguel Beleza substituiu Miguel Cadilhe e, também, quando Eduardo Catroga substituiu… o próprio Braga de Macedo, também nos governos de Cavaco Silva. É certo, diz o ex-ministro, que “não se sabe o que vai acontecer com a balbúrdia monumental a que temos assistido no que diz respeito à negociação sobre os programas europeus”, mas muito daquilo que João Leão vai executar já está, de certo modo, “pré-determinado”.
Braga de Macedo deixa uma nota: perante a tal “balbúrdia” na Europa, “se era importante ter alguém no Eurogrupo era agora“. Mas com a saída de Centeno (do Governo e, claro, do Eurogrupo), isso deixa de ser uma hipótese num “jogo” que ainda vai no início e no qual ter um português num lugar de destaque poderia ser importante. Não sendo isso possível, caberá a João Leão segurar o barco, tentando surpreender – como fez Centeno – quem acha que o seu perfil pouco mediático é indicativo de menor “habilidade” ou “paciência” para o combate político.
“A máquina orçamental, falar com os vários ministérios, equilibrar as despesas e as receitas… o homem já sabe fazer isso. A questão é que neste momento o ambiente quer doméstico quer internacional está completamente diferente. Portanto, o que se pede não é que ele saiba fazer um orçamento, porque isso ele sabe, é ver como vai chegar ao cargo político [de maior destaque] e mostrar a habilidade que Centeno acabou por demonstrar“, remata Jorge Braga de Macedo.
Também Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros, comenta com o Observador que “a grande curiosidade é ver a prestação parlamentar” de João Leão, que “num mundo perfeito não deveria ser o mais importante mas, na realidade, tem muita importância”. É certo que “até agora temos estado todos mais ou menos unidos, em modo de guerra, mas rapidamente o combate político vai subir de tom”, antecipa, concordando Filipe Garcia que há uma coisa de que João Leão “não se livra – é sabido que foi uma das pessoas que construíram o esquema das cativações”.
Numa fase em que “estão todos a pedir dinheiro”, como diz João Duque, Leão “vai ter de saber dizer não a muita gente” – esse é um dos principais “trabalhos” que o novo ministro das Finanças. A sugestão de João Duque é emular um pouco o perfil de Alfredo Nobre da Costa: dizer pouco, saber dizer não, não entrar na “politiquice” e fazer aquilo que “não passa nas televisões”, que é gerir o orçamento e tomar medidas para ajudar a que o país se reconstrua depois desta “calamidade”.
Mas além de “trabalhos”, João Leão pode ter um desafio, se o quiser e puder abraçar: “Ser um reformista, que é aquilo que Mário Centeno não foi“, diz João Duque. “Veja-se o caso da reforma da supervisão financeira, que acabou por ficar na gaveta. Centeno não promoveu qualquer reestruturação do Ministério das Finanças. Não reestruturou impostos, não introduziu nada de novo”, diz o ex-presidente do ISEG. “Será que Leão terá força para isso? Veremos“, diz João Duque.