Enviado especial do Observador, em Tóquio
Na descrição inicial do seu programa de viagens dedicado ao Japão e com passagem por Tóquio, Sue Perkins fala do território nipónico como uma pátria do Zen. Ok, já lá iremos Sue. A súmula apresentada faz sentido. É a súmula de um país que, ao contrário do que fizeram por exemplo os britânicos, preferiu estar 250 anos mais fechado a construir aquilo que hoje reconhecemos como uma cultura, um ADN, uma forma de ser. É a súmula de um país que, sete décadas depois, tenta ainda recuperar dos ataques certeiros ao coração dessa mesma sociedade na Segunda Guerra Mundial. Mas é também, e em súmula, o país que deixa até os mais zens fora de si. Antes do início dos Jogos, há outros jogos que estão apenas no início. E é por isso que se pode ficar nove horas fechado num aeroporto, sete das quais numa maratona para sair da primeira porta logo depois do desembarque e bater um recorde olímpico de menos de duas horas para fazer tudo o resto até chegar aos autocarros da organização.
A palavra “Omotenashi” está sempre presente. Significa hospitalidade. E sendo certo que pelo menos cerca de 10.000 voluntários saíram da organização por vontade própria nas últimas semanas, tendo em conta o aumento do número de novos contágios por Covid-19 em Tóquio (que continuam acima dos 1.000 diários, número que tinha sido atingido apenas no início do ano), há sempre ainda mais do que uma pessoa para tudo. Depois, entra em jogo a parte do voluntarismo. Um excessivo voluntarismo. Tanto voluntarismo que às vezes faz parecer que nem os japoneses sabem ao certo o que querem, como aconteceu há cerca de dois anos, numa história contada pelo The New York Times. Todos os principais elementos ligados à construção juntaram-se uma noite para pensar como fazer um percurso para a maratona e para as provas de marcha em Tóquio fugindo ao calor abrasador. Conseguiram, num investimento ainda assim curto entre tantos milhões investidos. Dois meses depois, a prova foi transferida para Sapporo.
Os responsáveis de Tóquio querem tanto realizar os Jogos que estão dispostos a tudo e é também por isso que a tal “Omotenashi” está diferente, menos extrovertida e sobretudo com maior tendência para cavar uma clivagem entre os locais e os outros (ainda que os atletas passem à parte desta luta invisível). O olá do Japão ao Mundo vai começar esta sexta sobretudo com uma enorme vontade de dizer adeus sem pagar fatura em contexto pandémico. Pelo meio, quanto melhor e mais atrativa for a competição, melhor. E aquilo que pode acontecer numa viagem para o país asiático acaba por ser um espelho desse meio caminho andado sem retorno que caracteriza estes Jogos.
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O verdadeiro sentido prático da rábula “do qual, o papel“
Foi esse contexto pandémico que tornou toda a organização um autêntico quebra-cabeças para todas as partes envolvidas. Ainda assim, e entre papéis, mais papéis e outros papéis para fugir a uma qualquer rábula ‘do qual papel, o papel’, nem todos foram suficientes para evitar, no caso do Observador, uma longa espera de sete horas apenas na primeira zona de desembarque, após as quais tudo se desenrolou mais rápido até do que é normal.
Ponto prévio: nas edições anteriores dos Jogos Olímpicos, o único requisito que existia passava por confirmar o pedido de acreditação. Um pedido que é feito muitos meses antes (neste caso foi a 15 de janeiro o limite, sendo que quem não estava na edição de 2020 não se podia inscrever, mas entre os que estavam existiram algumas desistências) e, na semana que antecedia a cerimónia de abertura, bastava passar pelo Media Centre para recolher a acreditação que só não garantia entrada naquilo que são denominados de eventos high demand, onde Portugal costumar ter quota de entradas por não pertencer à elite da modalidade (finais de natação, jogos da equipa de basquetebol dos EUA, em alguns casos ténis, etc.). Agora, tudo se multiplicou por dez. Também nos papéis, pois claro. Por causa da pandemia, mas não só.
Para se ter a noção dos cuidados que a organização foi tendo para acautelar todos os cenários, o Playbook, uma espécie de guia para atletas, treinadores, oficiais, jornalistas e demais participantes, teve três versões, sendo que a última continha 67 páginas com todos os cuidados, restrições e obrigatoriedades a cumprir, onde entrou uma necessidade de quarentena na parte final com testes diários (a não ser que existisse uma autorização especial do governo do Japão, não dispensando os testes diários – mas que afinal pode cingir-se só a uma questão de perceção do que está em causa, como esperamos poder explicar daqui a uns dias). Depois, os tais formulários a preencher.
Numa primeira fase, a única coisa que era pedida era o nome do CLO, que é basicamente o elemento que estará sempre em contacto com o ICON (Centro de Controlo de Infeções) no caso de organizações que tenham mais do que um representante. Depois, já em maio, a “bolha” fechou com o pedido para que todos aqueles que tivessem marcado um hotel que não estivesse na lista oficial (ou seja, a maioria) mudasse para um alojamento dos Jogos, numa lista de quase mais 20 unidades entretanto reservadas pela organização, que pagaria qualquer despesa de alteração que pudesse surgir com o cancelamento de anteriores reservas. A partir de junho começaram os verdadeiros problemas: o acesso à página do ICON para colocar toda a documentação que estava fechada ou enviada; o envio do ADS (Sistema de Chegadas e Partidas) através de um sistema próprio que tinha o resumo do local de chegada e partida de Tóquio com voos e ligações aéreas; a aprovação do Activity Plan, um ficheiro Excel com duas folhas onde eram especificados os venues dos primeiros 14 dias; a colocação de uma aplicação, o OCHA (Online Check-in and Health report App); e um novo questionário que gerava um QR Code do Written Pledge. De uma forma ou outra, com isto, com o PVC (pré-acreditação) e com dois testes negativos com uma minuta do governo japonês especificando o resultado negativo, estava tudo. Mas afinal, não.
Olha o Zverev, olha o Tsitsipas, olha sete horas de espera para nada (que afinal era por nada)
Vamos ao nosso caso concreto. A viagem de Londres para Tóquio é longa, daquelas que remete qualquer pessoa para um misto de angústia por quem deixa tão longe e ansiedade por quem passará a lidar de perto com outra realidade durante três semanas. E já havia qualquer coisa de Jogos Olímpicos neste avião da British Airways: jornalistas portugueses, espanhóis, ingleses e suecos (pelo menos), atletas da Grã-Bretanha, pelo menos um treinador e um atleta suecos, outro atleta com as cores da Grécia ou da Estónia (e muitos devem ter faltado ou perdido a ligação, porque a nós tinham garantido que depois da troca de viagens de domingo para segunda — por força da greve da Groundforce — estava ocupado o último lugar ). As primeiras duas/três horas são as menos complicadas; depois, chega o sono, o cansaço, a tentativa de adaptação a um fuso horário diferente. E chegam mais formulários, como não poderia deixar de ser. Aqueles tabuleiros que a meio de uma viagem grande vão distribuindo copos de água, consegue imaginar? Tinha folhas, mais folhas e as mesmas questões da ordem.
Papel 1: um Written Pledge atualizado a 15 de julho que começava com a frase “Para o ministro da Saúde, do Trabalho e do Bem estar e para o ministro da Justiça”. Papel 2: uma declaração quase de juramento por causa da quarentena a propósito do teste feito 72 horas antes e da obrigatoriedade de ter todas as aplicações pedidas sob pena de ser punido com seis meses de cadeia ou uma multa de 500.000 yenes [3.845 euros]; Papel 3: uma folha para dizer os países por onde se passou e que tem todos os europeus ao mesmo nível entre as regiões afetadas pela Covid-19. Mais tarde, outros dois formalismos mais habituais: Customs Declaration e Disembarcation Card for foreigner, onde eram pedidos mais detalhes de hotéis, ao registo criminal no Japão. Era impossível alguma coisa falhar depois do desembarque. Sete horas depois, pensávamos como foi possível ficarmos ali.
Na primeira fase de controlo, todos os passageiros recebem uma de duas cores em folhas: amarelo, com OCHA; e verde, com Web QR Code. A maioria, a grande maioria, recebe a amarela; um número ainda significativo fica com a verde mas pouco depois consegue passar por ter a aprovação do QR Code criado pela app do OCHA; uma minoria, mesmo pequena minoria, encosta mesmo de lado e fica numa espécie de divisão para os meninos mal comportados – até tendo respondido, e de forma certa, a todas as perguntas do teste. Não, não era preciso um teste com nota de 100% ou AA. Não, também não era preciso qualquer tipo de distinção. Mas ser chumbado com as questões e as respostas na mão não será a melhor maneira de expressar a “Omotenashi”. E recordar a certa altura que a falta de água (à quarta hora um voluntário trouxe uma salvadora garrafa e um chocolate pequeno daqueles que acompanham o café que andava perdido pela mala de alguém) e de comida para quem estava em jejum há tantas horas também não é uma boa opção. Foi o que aconteceu, seguindo uma lógica: como antes de fazer o teste não se pode beber ou comer sob pena de adulterar resultados, teria de ser assim.
O problema pode explicar-se de forma simples: uns dias antes, seis mais concretamente, o Activity Plan tinha sido validado e enviado para o governo do Japão. No sábado, em vésperas da viagem para Tóquio, dois emails confirmaram que faltava receber um último email para confirmar a aprovação. Tudo certo. No entanto, o fim de semana de greve no aeroporto de Lisboa, obrigou a remarcar todas as viagens incluindo a chegada a Tóquio. Por isso, e para que não existisse confusões, a resposta aos emails de sábado foi com a explicação que tinha sido enviada pela British para o cancelamento do voo original Lisboa-Londres, um novo Activity Plan e um novo ADS (Sistema de Chegadas e Partidas). Com isso, tudo parou. Não houve aprovação do Activity Plan. Não havia código gerado. Pior: não havia a paciência para perceber com calma que de facto estava ali tudo.
Os voos foram chegando uns atrás dos outros, o que só aumentava (e fazia diminuir) a zona onde estavam as tais pessoas com folha verde mas que, como iam chegando, passavam para a frente dos números dos que tinham ali ficado antes. A organização dessa fase obedecia a princípios estanques que depois funcionavam como parede a quem tentava explicar o problema: havia três/quatro pessoas que só tentavam remediar a situação e se não desse passavam o número do PVC (pré-acreditação); havia cinco pessoas que tinham como única missão, com luvas e batas, de olhar para o QR Code e dar folha amarela ou verde; havia duas pessoas, às vezes só uma, que tinham o telefone de todos os milagres onde recebiam informações de um comando central sobre cada uma das pessoas que estavam à espera (e que entretanto se tinham transformado em números de PVC). Cada um fazia aquilo, só aquilo e nada mais do que aquilo. E as horas foram passando, passando (sete vezes, uma por hora).
Chegaram dezenas de voos entretanto e com algumas estrelas à mistura. Uma grande parte da delegação de Itália toda junta entre equipas coletivas e atletas individuais, como o tenista Fabio Fognini a aparecer um pouco depois numa amena cavaqueira com o seu colega alemão Alexander Zverev, e o grego Stefanos Tsitsipas a passar pouco depois, com roupa casual mas sem ser da delegação grega, a fintar alguns elementos de outras seleções que estavam à frente para se juntar aos seus e ficar ali perto do alemão que é apontado, tal como ele, o futuro do ténis mundial. As grandes figuras passaram por ali e, apesar de haver só uma fita a separar-nos, tinha sido criada uma verdadeira barreira transparente com as horas de espera. O que mudou? Os voos pararam, os responsáveis ouviram, a solução apareceu: tal como dizia desde início nas “regras”, quem não tivesse o OCHA operacional porque o Activity Plan não tinha ainda a última aprovação poderia passar apenas com o QR Code do Written Pledge mesmo continuando com a folha verde e não amarela. Entretanto, passaram sete horas. Mas o balanço foi tal que tudo o resto demorou menos de duas.
O teste da saliva, uma mala às voltas sem parar e o suspiro de um Sir
O resto do trajeto é um longo e ziguezagueante caminho com subidas e descidas ao longo do próprio Terminal 5 do aeroporto (uma imagem que vai valer a pena reter no final). Paragem 1: testes negativos (sendo que as tais minutas do governo japonês serviam tanto como um teste negativo que estivesse em inglês), as folhas escritas no avião, o passaporte, o PVC e os números dos lugares ocupados nos aviões até Tóquio. Paragem 2: o passaporte, o PVC, os testes, o Written Pledge. Paragem 3: os testes de saliva, com um recanto onde qualquer pessoa parada no mesmo sítio sem água durante horas a fio tem de inventar o que não tem para encher um pouco da pipeta e uma folha com o número da amostra. Paragem 4, após umas escadas rolantes a subir: dar os dados da quarentena além do passaporte, passar o QR Code do Written Pledge e esperar pelos resultados dos testes, que surgem num número em dois ecrãs enormes colocados naquela zona. Aqui, pela primeira vez, há uma ligeira pausa de um rumo sempre em frente mas que não passa dos 20 minutos, por haver muito menos pessoas a fazerem testes.
Enquanto o resultado não vinha, um responsável da British Airlines apareceu aflito com um papel que tinha três nomes. Quem eram? As três pessoas daquele voo que tinham ficado paradas no primeiro ponto de passagem, por causa da mala que andou horas a fio também no tapete G-H. Agora estavam num outro local, paradas, quase a chamar por nós. Teste negativo, escadas rolantes para baixo, um corredor longo para pensar na vida onde três minutos a andar sabiam pela vida depois de sete horas sentado ou em pé às voltas, nova paragem. E assim se retoma a odisseia dos controlos, neste caso todos eles justificados e numa situação quase “normal”.
Paragem 5: a acreditação. O passe para todos os Jogos é feito logo ali no aeroporto, com uma divisão onde a fila era grande para atletas e treinadores e pequena para jornalistas. Ao nosso lado, alguém que há não muitos anos deveria estar no lado contrário mas que agora veste outra pele, o campeão olímpico Sir Bradley Wiggins. De cabelo curto, tatuagens à mostra, pernas de quem desafiou e ganhou uma vitória no Tour, um tronco forte mas já não tão leve como nesse ano mítico da carreira ciclista em 2012. Quando a acreditação chegou ao nosso pescoço, um sorriso de quem não se conhece mas já é quase companheiro de equipa, um suspiro e a parte final. Paragens 6 e 7 (pelo meio já com a mala do porão resgatada): os restantes documentos que tinham sido preenchidos no avião, o passaporte, a acreditação, os dois testes negativos, o Written Pledge. Nove horas depois, fim da odisseia num espaço diferente chamado aeroporto, autocarro para o Media Transport Mall) e mais uma troca para um táxi que conduzia, de forma individual, todos os que chegavam ao respetivo hotel. As 11h30 tinham passado a 20h30…
O Japão, neste caso em concreto Tóquio, mudou. Voltando ao episódio de Sue Perkins, esta é a cidade onde as jovens japonesas têm locais onde pagam, vestem-se como noivas, são preparadas como tal, tiram imagens como se estivessem num momento depois da cerimónia mas sozinhas e enviam depois para familiares em amigos. E se houver um casamento mesmo? Aí, melhor. Mas até essa sensação é transacionável porque, como explicou essa mesma jovem à comediante inglesa, há cada vez mais freeters (trabalhadores em part time) e ela quer mais da vida. Mas se até isso é possível recriar e revender, a questão da segurança é como um bem inalienável, tanto que as revistas e inspeções são quase um pro forma sem qualquer medo de ataques como nas edições anteriores em Londres e no Rio de Janeiro. Aqui, o inimigo é invisível. E consegue condicionar até a “Omotenashi”.