“Se eu, que sou eu, não posso tomar o pequeno-almoço na pastelaria, porque é que alguém que não trabalha há de poder?”. Questões como esta foram ouvidas, várias vezes, por Paulo Pedroso, ex-ministro socialista que participou na introdução do programa que hoje é conhecido por Rendimento Social de Inserção (RSI). É num país onde se pensa assim, relativamente a um programa de apoio social à pobreza, que alguns académicos querem lançar a discussão sobre algo muito mais revolucionário: o Rendimento Básico Incondicional (RBI), um conceito controverso que foi rejeitado, recentemente, num referendo na Suíça, mas que é visto por alguns como a única forma de nos prepararmos para um futuro onde pode “não haver trabalho para todos”, como admite o próprio ministro do Trabalho e Segurança Social, José António Vieira da Silva.
O tema foi a debate esta segunda-feira, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E, mais uma vez, as posições dividiram-se entre a defesa acérrima da ideia e a manifestação diplomática de cautelas e (muitas) dúvidas. No ar continuou, contudo, a ideia de que ainda existe muita confusão sobre este conceito, que é antigo e diverso mas que tem ganho notoriedade nos últimos anos devido aos avanços tecnológicos e às elevadas taxas de desemprego estrutural em várias partes do mundo.
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Esta é a primeira dificuldade deste debate: os críticos desta proposta veem a proposta do RBI como um substituto pouco desejável para as políticas sociais contra a pobreza e exclusão social, que demoraram tantas décadas a construir e continuam em evolução; por outro lado, alguns dos seus defensores, como Vito Laterza, professor da Universidade de Oslo, sublinham que “não se trata de dinheiro, não estamos a falar de combate à pobreza, não é uma questão de caridade. Trata-se de libertação, trata-se de assegurar que todas as pessoas, independentemente de onde venham, podem ter uma vida decente”. No fundo, e em parte, um mecanismo de correção natural do capitalismo, onde uns nascem ricos e outros nascem pobres.
Estamos a falar de um rendimento, estável e previsível. Um rendimento que é básico (porque pode ser adicionado a outros rendimentos de trabalho). E um rendimento que é incondicional (porque é atribuído a todos, ricos e pobres, sem qualquer condição de recursos, ou seja, uma prova de que se precisa — com a nota de que no caso de alguém que ganhe mais dinheiro, isso acabará por ser tributado e, portanto, essa pessoa acabará por ser uma contribuinte líquida positiva para o RBI).
Não há muitos conceitos na teoria das políticas públicas que se podem gabar, como pode o RBI, de serem acusados por alguns de ser uma deriva esquerdista (ou “um conto de fadas socialista“) e, ao mesmo tempo, de ser criticado por poder ser uma ferramenta perigosa nas mãos de nacionalistas da extrema-direita como Marine Le Pen. Foi o mesmo Vito Laterza que lembrou que, nas mãos erradas, esta ideia do RBI pode ser uma forma muito eficaz de distribuir rendimentos a determinados grupos, excluindo outros, e alimentar o apoio a regimes populistas.
Ao lado de Vito Laterza estavam figuras como Jurgen de Wispeleaere, da Universidade de Bath, um dos mais proeminentes académicos nesta matéria que acrescentou à discussão uma ideia interessante: se falamos em produtividade, e se pensarmos que a segurança de um rendimento básico garantido pode ser um fator decisivo para alguém tirar uma sabática para os primeiros anos de um filho bebé? Ou para estudar mais e melhorar as suas qualificações? E se aproveitarmos esse rendimento básico para mudar de carreira, e deixarmos de ser um trabalhador insatisfeito e improdutivo, numa determinada área, e passarmos a ser um trabalhador mais produtivo e feliz numa nova profissão?
O que dizem os defensores do RBI?
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“O Rendimento Básico incondicional ajudará a prevenir a pobreza e a assegurar a liberdade a cada indivíduo, a determinar a sua vida, e a fortalecer a participação de todos na sociedade. Ajudará a evitar divisões sociais, debates baseados na inveja e na injúria e as suas consequências, assim como uma burocracia de controlo e inspeção superfluamente dispendiosa, repressiva e excludente. Enquanto pagamento por transferência livre de discriminação e estigmatização, o Rendimento Básico Incondicional previne a pobreza oculta e diferentes tipos de doença.” Estes são os principais argumentos dos defensores do RBI.
Em termos gerais, a ideia do RBI parte da constatação de que o Estado já gasta vários milhares de milhões de euros em prestações sociais, a cada ano. Mas no modelo atual que prevalece nos países desenvolvidos os subsídios são direcionados para cidadãos específicos, conforme a situação em que se encontram e que justifica a transferência desse subsídio. O Rendimento Básico Incondicional, que já tem um movimento em Portugal e é apoiado pelo Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), propõe um mecanismo diferente, sem burocracia e, sobretudo, sem estigmas associados.
Os promotores do movimento defendem que com o RBI é dada a oportunidade a cada um de “escolher livremente um trabalho verdadeiramente gratificante, social e economicamente produtivo ou outras formas não remuneradas de contribuir para a sociedade“. “O RBI também liberta tempo para dar um novo fôlego à atividade associativa, ao envolvimento cívico, aos projetos profissionais e à criação artística, recriando laços sociais, familiares e de confiança nas nossas cidades, bairros e aldeias”, acrescentam.
Parece uma proposta pouco controversa, cheia de virtudes, com que todas as pessoas poderiam concordar, à partida. Mas poucas ideias serão tão fraturantes como o RBI, que foi a principal bandeira do candidato socialista francês Benoît Hamon — que pareceu demasiado encostado à esquerda pelo eleitorado francês e não foi longe nas eleições recentes — e, ao mesmo tempo, que inspira as maiores reservas a figuras da esquerda portuguesa como Francisco Louçã e Manuel Carvalho da Silva.
Manuel Carvalho da Silva, ex-líder da CGTP, foi uma das vozes mais críticas, neste debate, em relação à proposta do RBI. O ex-sindicalista pediu “cuidado com algumas discussões, porque há muito gato [vendido] por lebre e muita teorização sobre conceitos de universalidade e incondicionalidade, sobre ideias que acabam por ser harmonização no retrocesso. A sociedade tem meios, como nunca teve, para não ter de ir por aí”. O sociólogo defendeu que os progressos tecnológicos devem, sim, convidar a uma reflexão mais consequente sobre a redução das horas de trabalho.
Momentos antes, na mesma cadeira de Carvalho da Silva, estava sentado um finlandês, Olli Kangas, um dos responsáveis por um exercício que está a ser visto como um balão de ensaio para o RBI mas que, doutro ponto de vista, não tem qualquer relação com esta ideia:
Desde o início do ano, na Finlândia, duas mil pessoas que estavam a receber subsídio de desemprego passaram a receber, em substituição, uma quantia pré-determinada (560 euros limpos). O incentivo é que, em contraste com a perda do subsídio quando se encontra trabalho, as pessoas continuariam a ganhar aquela mesma quantia fixa garantida, mesmo que achassem um emprego remunerado.
Até que ponto alguém que sabe que não vai perder aquele rendimento mínimo estará mais disponível para procurar ou aceitar um emprego, por exemplo, um part-time (que, quem sabe, se pode transformar num full time mais tarde)? Até que ponto pode ajudar as pessoas a saírem da chamada “armadilha do desemprego”?
Saberemos um pouco mais dentro de cerca de ano e meio. E Olli Kangas já diz que o grupo que lidera está a pensar no próximo passo, no próximo exercício — e espera que o Governo “seja suficientemente inteligente” para que a pesquise continue. A experiência em curso, que decorre ao longo de dois anos (até final de 2018), está descrita em maior pormenor no vídeo oficial (narrado em inglês).
Este é um estudo em ambiente real mas que, ainda assim, não vai ao encontro, de forma plena, daquilo que se pretendia inicialmente. Nem servirá para tirar conclusões abrangentes sobre a teoria do Rendimento Básico Incondicional. Porque, como apontou Luís Teles Morais, diretor do Thomas Jefferson Institute, outro dos oradores, “o programa está a incidir sobre um conjunto de pessoas que estão inseridas numa comunidade a funcionar normalmente”. Qual é o problema disso?
O problema está ligado a uma pergunta que continuará por responder: até que ponto é que a distribuição de um rendimento mínimo garantido, para todos, não impulsionaria os preços, gerando inflação na economia? Por outras palavras, se toda a gente — ricos e pobres — passar a ganhar mais algumas centenas de euros, até que ponto é que não teríamos um salto no preço dos bens e produtos essenciais? Não correríamos o risco de causar um aumento do custo de vida que complicaria a situação dos cidadãos mais fragilizados?
Os dois mil finlandeses que estão a ganhar esta quantia, e cuja situação está a ser monitorizada, vão continuar a pagar o mesmo que toda a gente por um saco de pão ou por um pacote de leite. Mas se toda a gente começasse a receber aquele adicional, o preço do pão e do leite ficaria na mesma? Iria depender, é claro, também, da oferta de pão e leite — com o RBI haveria mais ou menos pessoas a produzir pão e leite?
Há quem o descreva como um “conto de fadas socialista“, mas desengane-se quem pensa que a discussão sobre o RBI coloca em oposição os polos tradicionais do espectro ideológico e político. Em Portugal, um dos críticos mais aguerridos do RBI é Francisco Louçã, um dos fundadores do Bloco de Esquerda. Em múltiplos artigos de opinião, no Público, Louçã questiona os méritos desta proposta, advogando até que pode ser um assalto aos atuais esquemas de proteção dos cidadãos vulneráveis, como os desempregados e os doentes.
Para Louçã, o facto de o RBI prever uma substituição direta de todas as prestações sociais por um único pagamento universal pode ser algo pernicioso e que “serve para habituar as pessoas a receberem salários mais baixos e a garantir às empresas que podem pagar salários mais baixos”. E o que fica claro, também, na questão chave do financiamento, é que o RBI seria pago pelos impostos e contribuições sociais. E aí é que a questão se complica, como defendeu Paulo Pedroso, em conversa com o Observador à margem da conferência desta segunda-feira, em que também foi orador.
“Do meu ponto de vista, o RBI não tem condições de exequibilidade nas próximas gerações. A ideia de que se pode transferir recursos de pessoas adultas e saudáveis sem qualquer contrapartida é uma ideia que pode ser apelativa do ponto de vista intelectual, passível de ser defendida por ultraliberais como Milton Friedman e por socialistas como Benoît Hamon. Mas não tem adesão na sociedade“, afirmou o académico, ex-ministro do Trabalho e da Solidariedade que participou na criação do RSI — que parte de um ponto de partida totalmente diferente, o do combate à pobreza.
“A nossa fonte de diferenciação social atual é através do trabalho, substituí-la por um vazio parece-me muito perigoso”. Paulo Pedroso lembra que, na sua génese, o RBI surgia como resposta às desigualdades, à nascença, do acesso às terras e aos meios de produção, que dificultava a mobilidade social. Mas, nos dias de hoje, um RBI seria “destrutivo para as políticas sociais” porque “remover a condição salarial [das prestações sociais] seria o primeiro passo passo para que ela fosse eliminada de toda a sociedade”. Seria o caminho para o “suicídio”, defende.
A questão principal, para o antigo ministro de António Guterres, é que, “para quem conhece no terreno, na sociedade portuguesa, tem consciência de que o principal ataque que se faz ao RSI é, precisamente, a ideia de que o RSI é, na realidade, um RBI, ou seja, incondicional”. O tal pequeno-almoço na rua que, “eu, que sou eu, não posso tomar” mas que um beneficiário do RSI, por sinal, pode.
Ao Observador, Paulo Pedro lembra que “o RSI [na altura, o rendimento mínimo garantido] foi criado para ligar uma prestação a um contrato de inserção, mas infelizmente o Estado não cumpre a sua parte”. “Infelizmente, em alguns momentos, em várias zonas do país os acordos de inserção não funcionam de forma correta e, assim, temos uma prestação que deveria ter associado um efetivo contrato de inserção mas que se transforma, na realidade e em muitos casos, numa prestação incondicional, sem contrapartidas”, lamenta Paulo Pedroso.
Onde o ex-ministro, agora professor do ISCTE, vê algum potencial para aplicação do ideário do RBI é no combate à pobreza entre as crianças e o jovens, em que se poderia dar o mesmo a todos e, depois, a medida seria “corrigida” em termos sociais através dos impostos. Mas aí, é claro, não estamos a falar de um rendimento incondicional, porque há uma condição que já é exigida às crianças: isto é, frequentarem a escola.
Igualmente cético está Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG, que quer perceber se o RBI, como tem vindo a ser discutido, é visto como “um complemento ao Estado Social ou é um substituto do Estado Social”. “Eu estou confiante de que a maioria das pessoas que defende este sistema o faz com boas intenções, com o intuito claro de melhorar a sociedade. Mas há outras que tentam cavalgar esta ideia como uma tentativa de destruição do Estado social”, alertou o académico.
Ainda assim, para Carlos Farinha Rodrigues, esta discussão pode enquadrar-se num tema bem mais meritório: a desmercadorização do trabalho, ou seja, propostas ligadas a um rendimento participativo, isto é, uma remuneração por um conjunto de trabalhos que são socialmente úteis mas que não são valorizados pelo mercado de forma satisfatória. Um exemplo: cuidar de idosos — algo que o mercado pode não premiar mas que é trabalho socialmente útil e que justifica uma remuneração.
O RBI vai voltar a ser debatido em Portugal em setembro, num congresso internacional da BIEN, a Basic Income Earth Network. A organização está a ser promovida, além de outras pessoas, por dois dos académicos mais ativos na defesa deste debate e que também estiveram presentes na Faculdade de Direito, esta segunda-feira: Roberto Merrill e Sara Bizarro, dois professores da Universidade do Minho que já escreveram para o Observador.
Ainda assim, o que é certo é que “nenhum dos partidos que apoiam o Governo têm o RBI no programa político”, como cuidou de lembrar o ministro do Trabalho e Segurança Social, que encerrou os trabalhos. José António Vieira da Silva defendeu que “a perceção pública destas medidas, de enorme complexidade, coloca a proposta do RBI próxima das utopias”.
Aliás, argumenta o ministro, “há um risco de uma medida deste tipo poder facilmente conduzir a uma sociedade ainda mais distópica, dual, dividida entre os que têm acesso ao bem-estar e os que não têm”. “As respostas têm de ser mais complexas, porque as respostas simples para os problemas tendem a ser, normalmente, perturbadoras“, afirmou o ministro do Trabalho e da Segurança Social.
Vieira da Silva também sublinhou, referindo-se a um conceito subtilmente diferente que é um “Rendimento Básico de Cidadania”, que ele já existe em Portugal. O ministro falava na “universalidade no acesso a fatores essenciais como a saúde, habitação e educação, isso é um verdadeiro rendimento básico de cidadania”. “Há quem defenda que quando se vai ao médico, no serviço público, se deve receber uma conta em casa, não para pagar mas para se saber quanto custou — eu não defendo isso mas acredito que o acesso a estes três pilares da nossa vida coletiva é um fator de mobilidade social muito poderoso“.