Bem-humorada e jovial, a designer Alda Rosa, de 87 anos, vai repetindo a incredulidade face a mais esta “surpresa” – a palavra é dela – que a vida ainda lhe reservou: uma breve antologia de mais de 50 anos de trabalho na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, patente até 22 de julho.
Apoiada pelo curador da exposição, Paulo Henriques, recorda as histórias até agora quase anónimas por trás de algumas das mais emblemáticas peças do design português, como a série “Livro B”, e de tantas outras aventuras, como as que viveu em Londres, no arranque da década de 1960, a colaboração com o cineasta Paulo Rocha no filme fundador do Cinema Novo Português, “Os Verdes Anos”, o contacto com os católicos progressistas e a organização das primeiras mostras de Design Português, já na década de 1970.
O design, defende, é comunicação; não culto da personalidade. Na origem desta força e independência raras, sobretudo para a época, diz, está o facto de ter crescido asmática e sem nunca ter a certeza se teria um dia seguinte para viver.
Olhando à volta nesta sala, sente que está aqui bem representada?
Sem dúvida. Mas, sabe, eu estou sempre a mudar. Se olhar para as coisas que tenho ali, se calhar não parecem ter sido feitas pela mesma pessoa. Quando me pediam um trabalho, eu procurava o que era o específico daquilo. Por isso é que são todos diferentes. Na maior parte dos casos, os autores começam a ter o seu…
O seu cunho?
Exatamente: isto foi feito por fulano. E eu detestava isso. Queria que as coisas fossem aquilo que lá estava, não a minha personalidade.
E agora, passados todos estes anos, qual é a sensação de contemplar esta viagem pelo tempo e pela sua vida?
Não sei se vou acreditar nisto, que isto funciona, que eu estou aqui e vocês estão aí.
Não esperava que isto acontecesse?
Nunca.
Porquê?
Porque fui fazendo as coisas que era preciso que fossem feitas. Se eu fosse uma pessoa muito interessada na minha maneira de ser e em parecer, tinha apostado em dar uma unidade ao meu trabalho.
Como é que desenvolveu essa conceção de design gráfico?
O que o design deve ser é um modo de comunicar. Quando a gente está a comunicar coisas diferentes, a linguagem não é a mesma. Há coisa que são amáveis, outras são destrutivas, e há coisas que são só para apresentar: “olhe, estou aqui”.
Como é que foi parar ao design?
Fiz muita coisas na vida. A primeira vez que fui a Londres foi por volta de 1960 com o meu amigo [mais tarde cenógrafo e figurinista do Ballet Gulbenkian] Artur Casais. Ele ia para lá e eu pedi à minha mãe para ir com ele. A minha mãe gostava muito do Artur e disse, “então, vai”.
Uma rapariga em 1960 ir sozinha para Londres com um amigo. Era comum?
Não era, não. Lembro-me que no comboio apanhámos um fulano que estava a fugir à tropa e tivemos de lhe dar um certo apoio. A vida não era fácil. Já tinha andado de avião, para Viena, porque houve lá um encontro de católicos progressistas e eu naquela altura andava a ver o que era o catolicismo. Conheci a Lourdes Pintasilgo, que era a representante portuguesa e uma mulher extraordinária. Tinha desenhado umas coisas para eles quando já estava nas Belas Artes.
Qual era a sua ideia quando foi para a Faculdade de Belas Artes?
Na altura só havia pintura, escultura e arquitetura. Da primeira vez que tentei entrar, chumbei. Os rapazes entravam todos, mesmo que em matéria artística fossem um nojo. Agora, as mulheres eles escolhiam. E a gente tinha noção de que aquilo não era muito correcto. Eu chumbei porque não era comestível. Vocês não têm noção, vivem noutro mundo. Da segunda vez que concorri, entrei, mas tive a sorte de já lá estar o [pintor] Manuel Lapa, que era um homem com uma cabecinha muito aberta e que me ajudou muito. Ainda conheci o filho dele, que também tinha “não ido” para a tropa.
Voltando a Londres, fica lá quanto tempo?
Eu ia 15 dias ou coisa parecida, mas senti, “não, isto está a dizer-me coisas”.
Para uma miúda que vive em Lisboa, em pleno Estado Novo, e chega a Londres, qual é a sensação?
Era bom estar lá, sobretudo porque podia andar na rua sem que ninguém andasse atrás de mim. Foi uma surpresa grande. Deu-me muita coragem. Lembro-me de uma vez em Lisboa, quase a anoitecer, estar a ir a pé da [Rua] Rodrigo da Fonseca, onde vivia, até ao Saldanha, e ser uma aflição. Os carros paravam, vinham atrás de mim, era uma coisa obscena. Era difícil ser mulher em Portugal e muito difícil viver em Lisboa à minha maneira.
De onde vem essa independência?
Era o meu feitio. Nasci asmática e fiz os possíveis para que a asma não desse cabo de mim. Como é que hei-de explicar? A gente quando tem asma não consegue respirar. Passava muito tempo em casa a ler. E dava uma ideia de fragilidade para os outros que eu não queria. Punha em cima dos joelhos um livro sobre a China que está ali naquela vitrine e pensava, “Quando for grande, vou à China”. E às tantas era grande e fui à China. A minha mãe ajudou-me muito – muito mais do que pensou.
Como?
Por exemplo, eu era boa aluna e ela estava sempre a dizer-me isso. Deu-me muita força.
Paulo Henriques (curador): É ela que prepara a ida da Alda com 18 anos a Viena, sendo que ia com algumas amigas, exatamente para ter noção de que tinha de fazer as suas coisas sozinha.
Era uma mulher também ela muito diferente da norma.
Ela gostaria de ter sido como eu, acho. Preparou-se para ir para a faculdade, mas depois casou-se. Aconteceu a muitas mulheres que conheci nessa altura.
Fez por si o que gostava que tivessem feito por ela.
Acho que sim.
Então e foi para Londres…
Fui a Londres com o Artur Casais, com quem me sentia bem e com quem descobria coisas, mas ele quando chegou ficou com uns amigos e eu fiquei sozinha num hotel. Eu teria uns 20 e poucos anos. E comecei a andar por ali fora. Falava inglês, sim. Falar francês e inglês lá em casa era um bocado obrigatório.
Porquê?
Não sei bem. Tinha pessoas na família que tinham estudado línguas na Universidade. A minha mãe estava em casa e o meu pai em Viana [do Castelo] era diretor dos Serviços Municipalizados de Água e Eletricidade. Mas existia uma guerra na Europa. E havia uma senhora que tinha criado uma coisa chamada Círculo de Cultura Musical [a pianista Elisa de Sousa Pedroso, em 1934] e que tinha uma casa onde abrigava músicos refugiados. Depois, esse Círculo de Cultura Musical passava pelas cidades que ela conseguiu cativar. O meu pai fazia parte da delegação de Viana. Em Braga não havia porque eram muito reacionários.
PH: O pai da Alda promove a fixação de músicos em Viana do Castelo.
E eu comecei a conhecer aquelas pessoas todas. Conheci os melhores músicos da altura.
Portanto, cresceu num ambiente artístico, internacional, num cenário de grande instabilidade…
Repare, eu nunca tive essa noção. Em Viana do Castelo a gente ouvia os aviões passar. E depois tinha a presença das crianças refugiadas. E também acolhíamos os filhos das criadas, que quando chegavam eram lavados de cima abaixo e depois durante dois meses iam connosco para a praia. Eram uns pais muito especiais. Tive sorte. Tive muita sorte…
De volta a Londres…
Precisava de ganhar dinheiro. A minha família não estava interessada em que eu ficasse. Por isso fui tomar conta do filho de uns funcionários da embaixada americana que não falava – e que comigo começou a falar. Um dia fiz uma brincadeira e ele começou a rir-se, a rir-se. Pensei, sou uma palhaça competente. Eram pais que nunca estavam, que jogavam toda a noite. Eu arranjei-lhe uma bola, íamos jogar para Hyde Park. Depois fui trabalhar como rececionista na Casa do Brasil na Grã-Bretanha, que é um nome fantástico. Estava cheio de artistas. Conheci gente muito engraçada. E ao mesmo tempo estudava à noite Design Têxtil e de Moda na Saint Martins [Central Saint Martins College of Art], que era uma escola boa, e ia muito ao British Museum assistir a palestras. A minha vida foi estranha, mas eu gostei dela.
Porque diz que foi estranha?
Porque não fiz aquilo que as pessoas fazem, que é casar, ter filhos, tomar conta dos filhos, da casa… Deixei Londres quando começaram a acontecer coisas interessantes em Portugal, que era a história das greves estudantis.
A crise académica de 1962.
Eu chego no último dia das greves. Depois fiquei por cá. O meu namorado na altura era o [cientista político] Manuel Lucena, que era amigo do Paulo Rocha. E fui trabalhar em “Os Verdes Anos”. Estava na altura a dar aulas numa escola técnica do Barreiro, chegava a Lisboa às seis da tarde e ia para o sítio onde estavam a fazer o filme, que era a casa do Paulo [no prédio do Vá-Vá, nas Avenidas Novas, em Lisboa]. Era um grupinho de católicos progressistas. Eu era a única mulher. E, embora tenha andado num colégio católico, não era católica.
Alguma vez a retraiu o facto de não haver outras mulheres?
Nunca me fez confusão. Era normal. Andar nas Belas Artes também me ajudou nisso.
Em “Os Verdes Anos”, faz os figurinos.
Não fiz os figurinos; arranjei roupa. Primeiro, com pessoas amigas; depois, em sítios onde se vendia roupa usada, roupa feita para peças de teatro… Era complicado. Já se passaram tantos anos.
Avançando para o design gráfico, como é que lá chega?
Em 1958, já tinha feito uma revista para a JUC [Juventude Universitária Católica]. Eram pessoas extraordinárias, sobretudo a Manuela Silva, de quem se fala pouco, e que me desafiou para desenhar a revista. Chamava-se Presença, o que era um escândalo por causa da outra [revista] Presença, mas o que é que eu havia de fazer?
PH: era uma revista que mostrava uma preocupação de atualização a que corresponde até uma renovação na arte religiosa, com o José Escada, o João de Almeida e outros.
O que a atraiu no design gráfico?
Eu não paro. Ainda trabalhei com os arquitetos Daniel Santa-Rita e Duarte Nuno Simões. Foi importante a minha entrada no Instituto nacional de Investigação Industrial, feito para a entrada de Portugal no mercado comum. Havia gente de toda a espécie de disciplinas. Foi aí que pensei, “Se calhar sou designer gráfica”. Na altura não se falava em design; era arte industrial.
PH: A Alda faz a primeira capa do primeiro relatório. E em 1967 vai novamente para Londres estudar design gráfico na Ravesbourne College of Art and Design.
Uma escola a sério. Estive lá três anos com uma bolsa da Gulbenkian. Trouxe de lá um pouco mais de rigor, mas aprendo sempre mais com o que está à minha volta. Lembro-me que na altura ainda acolhi uma fulana refugiada, mulher de um português que estava na Argélia.
PH: A Alda faz parte da primeira geração em Portugal que usa esse nome mas antes há um homem muito importante, o Sebastião Rodrigues, que é o pai do design português como o vivemos na atualidade.
Voltando à pergunta, o que a atrai no design gráfico?
As palavras, o assunto, a imagem da letra, as pessoas com quem a gente está a comunicar. A comunicação, no fundo.
PH: houve outras coisas muito importantes que tu fizeste, por exemplo a organização da 1.ª Exposição de Design Português, já na década de 1970. Se reparar, a coleção Livro B começa em 1970.
Como é que começa a desenhar capas de livros?
Era sempre através de amigos. Eu lia muito. Desde criança que dormia mal e os livros eram o meu divertimento. Os clássicos, os livros do Júlio Verne que estavam numa biblioteca junto à casa de banho… Vocês estão a puxar-me muito pela cabeça.
Os mais famosos são a coleção Livro B, com as capas todas pretas e todas iguais. Qual era a sua ideia quando os desenhou assim?
Eram livros de bolso e não eram títulos vulgares. Tinham sempre qualquer coisa de mistério, de estranho. [O primeiro título é O Arranca Corações, de Boris Vian] Eles vendiam os livros dizendo “É um livro para meter no bolso”. Eu também gostava de ter um livro no bolso. Foi uma coisa que me deu muito gozo fazer, mas só fiz o primeiro. Depois nunca mais disseram nada, nunca mais me pagaram e às tantas até estavam a ser assinados por outra pessoa.
Que marca é que sente que deixa no design gráfico português?
Há um poster que eu fiz para a IRU, que achei que era uma coisa engraçada porque era um congresso dos fulanos que desenham estradas [International Road Transport Union]. Percebi que era no Estoril, perto da praia. E a gente queria que isso ficasse muito vincado no poster. Então, se olhar com atenção, encontra peixes, barcos, o sol, o céu. Para aquele outro, o da metrologia, andei à procura em coisas antigas, do que é que havia para medir e para pesar. Quando me mandam fazer uma coisa, eu estudo – e dou às pessoas a hipótese de ver coisas que não veem todos os dias. Gosto disso. É um recado, uma traulitada na cabeça: acorda, menino!
Ficou alguma coisa por fazer?
Não faço ideia. Isto para mim [a exposição] é uma surpresa. A minha vida foi completamente acidental.
Nunca planeou nada?
“Quando eu for grande?” Não. Eu não sabia que ia ficar grande. Vivo o dia a dia. Porque foi assim que tive de ser educada. “Hoje não tenho asma? Que bom”; “Não podes fazer isso que ficas com asma”, pronto, não faço. Mais tarde passei a andar com uma bomba e já não tinha medo de estar sozinha.
Então e se pudesse mandar um recado à Alda de 21 anos?
Tenho uma maneira de ser feliz muito especial, que é só querer as coisas que posso fazer, que posso ter. Eu pensava que morria cedo.
Se calhar era isso que diria, “Vais passar dos 87 anos”.
A minha família é assim, tem mulheres que chegaram aos 98. As mulheres são… longevas? É assim que se diz?