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Para os especialistas ouvidos pelo Observador falar do fim da guerra é prematuro: ela está para durar, com objetivos irreconciliáveis dos dois lados

In Pictures via Getty Images

Para os especialistas ouvidos pelo Observador falar do fim da guerra é prematuro: ela está para durar, com objetivos irreconciliáveis dos dois lados

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Uma bandeira branca, um tratado de paz ou um ringue de boxe. A História diz-nos que só há 3 maneiras de acabar com a guerra

Como é que acaba uma guerra? Com uma rendição incondicional, com um cessar-fogo negociado ou num impasse. Zelensky também está disposto a ir para um ringue lutar com Putin.

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“Pode ser já amanhã…” As palavras do Presidente ucraniano são dirigidas ao Presidente russo. Com elas, cria-se uma imagem mental a que é impossível fugir. Num canto, Vladimir Putin, de tronco nu. No outro, Volodymyr Zelensky, vestido apenas com calções amarelos e azuis. No ringue de boxe, os dois chefes de Estado envolvem-se numa luta e assim se decide o destino do conflito entre Moscovo e Kiev. Improvável? Claro. Porém, mesmo que entre risos, Zelensky mostrou-se pronto para um combate a dois com Putin, numa entrevista transmitida a 16 de dezembro, na televisão francesa TF1.

Uma semana antes, numa outra entrevista, a David Letterman, Zelensky deixou claro que se “Putin apanhasse uma pneumonia ou caísse de uma janela”, ou seja, se morresse, como sugeriu o entrevistador, “não haveria guerra”.

Zelensky acredita que guerra na Ucrânia acabaria se Putin morresse

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“Quando um homem de verdade quer mandar uma mensagem a alguém, faz isso sozinho, sem recorrer a um intermediário”, respondeu Zelensky ao jornalista da TF1, questionado sobre uma provável obsessão que o Presidente russo possa ter sobre ele. Aproveitando a descontração do ucraniano, o jornalista perguntou-lhe se se envolveria num combate sanguinário com Putin. “Pode ser já amanhã”, respondeu, entre risos. “Mas seria a última cimeira” do Presidente russo, rematou.

De todas as hipóteses para o fim do conflito, esta é a mais inusitada. Então, como é que pode acabar a guerra entre a Rússia e a Ucrânia? A História mostra-nos que há, essencialmente, três formas possíveis de pôr fim a um conflito: com uma rendição incondicional, com um cessar-fogo negociado ou num impasse.

Para os especialistas ouvidos pelo Observador falar do fim da guerra é prematuro: ela está para durar, com objetivos irreconciliáveis dos dois lados. 

Essa é também a visão da NATO: Moscovo prepara-se para uma longa guerra. “Nada indica que Putin tenha desistido do seu objetivo de controlar a Ucrânia”, disse o secretário-geral da Aliança Atlântica, na sexta-feira, 16 de dezembro. Jens Stoltenberg afirmou que “não se deve subestimar a Rússia” e que o Kremlin “está a preparar-se para uma longa guerra”, pelo menos até que Putin perceba “que não pode vencer no campo de batalha e que terá de sentar-se e negociar de boa-fé”.

NATO acredita que Rússia se prepara para uma guerra longa

A pergunta continua à espera de resposta. Como acaba a guerra? E que analogias podem ser feitas com conflitos passados? Se, na academia, o início da guerra foi muito estudado, só mais recentemente começou a investigar-se o seu final, com autores como Hein Goemans (Guerra e Castigo, 2000) ou Dan Reiter (Como as Guerras Acabam, 2009). “Há boa literatura académica sobre como acabam as guerras. A conclusão é que o principal desafio para um conflito acabar é ambas as partes em guerra terem confiança no acordo final”, explica ao Observador o analista de Assuntos Internacionais Mikhail Troitskiy, sediado em Moscovo.

Surrender of the Japanese on the USS Missouri World War II in the Pacific Japanese Surrender aboard the USS Missouri in Tokyo Bay, September 2, 1945; the Japanese foreign minister Mamoru Shigemitsu is signing the surrender document

A rendição do Japão foi oficializada a bordo do USS Missouri. Mamoru Shigemitsu, ministro dos Negócios Estrangeiros, assina o documento

Bettmann Archive

Primeiro cenário. Vitória absoluta com rendição incondicional

Exemplos: Segunda Guerra Mundial

“A vitória absoluta com rendição incondicional do lado perdedor é rara. O caso óbvio é a derrota da Alemanha e do Japão em 1945. Em ambos os países, uma nova geração de líderes políticos chegou ao poder determinada a romper completamente com o seu passado terrível e concentrar-se na recuperação económica e numa política externa com forte sabor pacifista.” Peter Ricketts

Sir Peter Ricketts já foi membro da Câmara dos Lordes e, desde 1974, teve vários papéis na diplomacia britânica, servindo sob vários primeiros-ministros. Em 2016, retirou-se da vida política, quando era embaixador em França, mas a sua opinião continua a ouvir-se na imprensa. Num dos artigos que assina na revista britânica Prospect, escreve que o fim da guerra na Ucrânia — “por vitória absoluta, cessar-fogo ou impasse” — ditará também o futuro da Europa. E traça os cenários possíveis.

“Existem basicamente três maneiras pelas quais as guerras terminam, e vimos exemplos de cada uma delas na memória recente. Primeiro, há uma vitória absoluta de um lado ou de outro. Em segundo lugar, há um cessar-fogo negociado que leva a algum tipo de acordo de paz. Em terceiro lugar, um resultado inconclusivo, com a luta a diminuir gradualmente, deixando um impasse ou conflito congelado”, explica o diplomata.

Seja qual for a forma, a confiança da Ucrânia e da Rússia nos termos de um acordo é fundamental, explica Mikhail Troitskiy, professor catedrático russo ao Observador. “As partes estarão sempre preocupadas com potenciais brechas no acordo, seja um cessar fogo ou um armistício”, argumenta, por isso, eles próprios têm de acreditar, e de ter confiança, que há falta de incentivo da outra parte para regressar à guerra.

“Isto é o que diz a teoria: as guerras acabam quando há pelo menos uma confiança transitória das partes em guerra de que as tréguas vão aguentar-se durante tempo substancial, e que faz sentido arriscar pôr fim às hostilidades”, explica o analista. E todos entendem o porquê do risco: se pararem de lutar, o inimigo pode usar esse tempo para reparar equipamento, juntar novas tropas e retomar o combate com nova força.

German Surrender On Front Pages Sir Winston Churchill looking out over crowds celebrating the end of the Second World War in London.

Nova Iorque e Londres, 1945. A população celebra o fim da Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, assiste aos festejos

Bettmann Archive

Essa confiança, que permitiria um armistício, simplesmente não existe (por enquanto). Para o politólogo russo Oleg Ignatov, sediado em Bruxelas, é muito cedo para falar de qualquer tipo de solução. “Não vejo qualquer condição para a guerra ser terminada”, diz ao Observador o membro do think tank Crisis Group. “Não há condições para negociar. Ambos os lados seguem os seus objetivos incompatíveis. A Ucrânia quer o seu território de volta e a Rússia quer que a Ucrânia reconheça que perdeu aqueles territórios.”

Para uma rendição absoluta, de qualquer dos lados, seria preciso uma vitória esmagadora do adversário e esse é um cenário raro, defende Sir Peter Ricketts. O exemplo perfeito é o da Segunda Guerra Mundial, com a derrota e rendição absoluta da Alemanha (que foi dividida e passou a ser governada interinamente pelos Aliados) e a do Japão (atingido por duas bombas atómicas durante o conflito, mantendo-se sob ocupação até 1952).

“O resultado da Segunda Guerra Mundial ficou longe de resolver todos os problemas do mundo, como mostrou o rápido surgimento do confronto Leste-Ocidente na Guerra Fria, mas lançou as bases para um período sem precedentes de estabilidade estratégica”, escreve Ricketts, que coloca o final da Primeira Guerra Mundial num patamar ligeiramente diferente.

Mikhail Troitskiy diz que é evidente que se pode terminar uma guerra com uma batalha decisiva para uma das partes e dá vários exemplos. “Foi isso que aconteceu nas duas Guerras Mundiais ou na guerra dos EUA no Vietname do Norte. Ou a guerra da União Soviética contra os mujahidin no Afeganistão ou a da China contra o Vietname em 1979.”

Esta solução, embora evidente como ponto final, não estará ao alcance nem da Rússia nem da Ucrânia. Conseguiriam os adversários aniquilar-se? “Aniquilar, não. Mas penso que algumas partes da linha da frente podem colapsar. Já o vimos, aconteceu em Kherson”, diz um analista sénior do Crisis Group.

Falando com o Observador a partir de Kiev, o alemão Simon Schlegel lembra que a linha da frente é muito longa, quase em linha reta, do sudoeste para o nordeste, e para onde quer que os ucranianos avancem ficam rodeados de tropas russas, por três lados. “É difícil, mas possível que consigam dar cabo da logística russa, conseguindo que uma secção da frente colapse”, argumenta o especialista que, antes da guerra, passou muito tempo na região do Donbass.

Guerra entre China e Vietname: o invasor foi expulso

Continuando a pegar em “soluções testadas pelo tempo”, o analista Mikhail Troitskiy acredita que se pode estabelecer um paralelo entre o conflito atual e a Guerra Sino-vietnamita. “Se estivermos a olhar para um cenário em que a Ucrânia consiga expulsar a Rússia, e voltar às fronteiras de fevereiro — seja as de 2014 ou de 2022 — pode ser feita essa comparação. Foi o que aconteceu com a China, em 1979, quando invadiu o Vietname porque queria puni-lo por uma aliança com a URSS, e por estar mais forte e independente.”

Vietnam/China: Chinese PLA soldier captured by Vietnamese militiaman, Third Indochina War, 1979 Buildings in Lao Cai

Guerra sino-vietnamita, 1979. Soldado chinês capturado pelos vietnamitas. Destruição em Lao Cai depois da retirada de Pequim

Pictures from History/Universal

Durante a invasão, algumas zonas do Vietname do Norte foram completamente destruídas. A China queimou aldeias e matou pessoas, recorda Troitskiy. Nessa altura, diz o analista, a URSS ameaçou a China, diretamente do Norte. “Havia soldados na Mongólia prontos para atacar Pequim e a China foi travada por isso. O exército do Vietname era bastante forte e tinham acabado de sair vitoriosos da sua guerra com os Estados Unidos.”

A guerra terminou com as tropas chinesas a sair da parte invadida do Vietname. “Esse é um resultado em que uma invasão acaba com a expulsão da invasor. Mas a China estava bastante isolada da economia mundial naquela altura e não sofreu grandes consequências desta derrota no Vietname. Com a Rússia é diferente.” Na opinião de Mikhail Troitskiy, os EUA e a União Europeia (e outros países) iriam tentar fazer a Rússia pagar pelos danos da guerra. Assim, este tipo de resultado final teria consequências muito piores para Moscovo do que teve para Pequim. Além disso, o regime chinês não sofreu qualquer crise interna na sequência da guerra que durou apenas um mês.

Mesmo com retirada total, Putin ficaria no poder

Na guerra da Ucrânia, em vez de uma rendição incondicional poderia assistir-se à retirada total de tropas por parte da Rússia, ou à cedência de território, por parte da Ucrânia. Ambas são improváveis nesta fase do conflito.

Não acredito que Putin ordenasse a retirada das tropas, não vejo condições para isso. Não acredito que Putin ache que está a perder a guerra, acho que ele ainda pensa que pode ganhá-la e que pode conseguir o que quer da Ucrânia”, defende Oleg Ignatov, frisando que o falhanço da Rússia na guerra não significa mudança de regime em Moscovo. “Não estão ligados, não há qualquer ligação”, defende o politólogo.

Ignatov argumenta que na Rússia não há oposição organizada, nem ao regime, nem à guerra. “Muita gente no Ocidente diz isso: se perder a guerra, Putin sai ou é afastado. E na Rússia diz-se que perder a guerra levará ao caos e à mudança de regime. Nenhuma das duas é verdade. Na Rússia é uma narrativa propagandista, tentam intimidar as pessoas, querem que elas apoiem a guerra. Na Rússia, não temos opinião pública tal como ela existe num país democrático. Quero enfatizar que se o Putin acabar esta guerra amanhã, a maioria iria apoiá-lo. Iriam sempre apoiar o que Putin fizer — isto é uma peculiaridade das autocracias.”

Se para a Rússia a rendição podia surgir como retirada de tropas, para a Ucrânia poderia ser a cedência dos territórios ocupados. “O que a Rússia quer negociar é território, a abdicação de território. Aceitar isso seria um suicídio político para Zelensky”, diz Simon Schleigel.

O Presidente da Ucrânia disse várias vezes não estar disposto a negociar território, recorda o analista, especialista em assuntos ucranianos. “Não pode recuar nisso. Iria perder toda a popularidade e todo o apoio político. Se o fizesse, perdia poder. Seria substituído por quem não o fizesse. Um governo que abdicasse de território cairia a seguir. Não faz qualquer sentido político estar a debater de que parte do país pode a Ucrânia abdicar.”

O que traçaria a morte política de Zelensky, não teria o mesmo efeito para Putin. “Há uma grande diferença entre a Rússia e a Ucrânia. A Rússia pode retirar as tropas e Putin continuar no poder porque é um regime autocrático. Eles estão bem treinados a explicar recuos militares. Têm meses de experiência em como fazer o spin off e transformar uma retirada em algo que foi planeado ou que não é tão mau como parece”, ironiza o analista alemão.

Signing the Armistice that ended the First World War Signing of the Armistice to end the First World War, 11 November 1918 (1935). Artist: Unknown.

O Armistício de Compiègne foi assinado a 11 de novembro de 1918 entre os Aliados e a Alemanha dentro de um vagão-restaurante na floresta de Compiègne

Corbis via Getty Images

Segundo cenário. Cessar-fogo negociado seguido de acordo de paz

Exemplos: Primeira Guerra Mundial, Guerra do Golfo

“(…) Fim da I Guerra Mundial, um exemplo da minha segunda categoria: um cessar-fogo negociado que leva a um acordo de paz. Quando o armistício foi declarado em 1918, os Aliados estavam em posição dominante. Mas muitos na Alemanha recusaram aceitar que haviam sido derrotados e rapidamente se ressentiram dos termos do tratado de paz de Versalhes.” Peter Ricketts

Para Peter Ricketts, há uma diferença entre os dois grandes conflitos mundiais. Na II Guerra Mundial há uma vitória absoluta, na Grande Guerra há uma vitória militar. E isso leva a caminhos diferentes quando se olha para o que aconteceu a seguir: um dá lugar à paz, outro propicia um novo conflito. Neste segundo cenário, o diplomata britânico inclui a Guerra do Golfo.

“A vitória militar frequentemente levou a um resultado político muito mais ambíguo. A Guerra do Golfo de 1990 foi um sucesso militar impressionante ao expulsar as forças iraquianas da ocupação do Kuwait. A decisão do Presidente Bush [pai] de interromper a operação sem ir até Bagdade foi importante para manter o apoio público mundial”, argumenta num artigo de opinião.

A 2 de agosto de 1990, sob as ordens de Saddam Hussein, o exército iraquiano invadiu o Kuwait. Uma coligação internacional, liderada pelos EUA e com o aval das Nações Unidas, enviou soldados para o terreno, expulsando o Iraque do país vizinho. O cessar fogo foi assinado a 3 de março de 1991.

A decisão de não seguir até Bagdade teve custos: deixou Saddam numa posição de reconstruir o seu aparato de repressão e “as condições em que terminou a Guerra do Golfo plantaram as sementes de um conflito futuro”, argumenta Peter Ricketts.

Em 2003, uma coligação internacional, de novo liderada pelos Estados Unidos, desta vez com Bush filho como Presidente, invadiu o Iraque. Alegavam que havia no país armas de destruição em massa, o que não se verificou.

Armistice Day, Trafalgar Square, 1918. A Peace Bus

Trafalgar Square, 1918. O fim da Grande Guerra foi celebrado em todos os países Aliados

SSPL via Getty Images

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, aconteceu o mesmo, defende Ricketts. Na Alemanha, foi difícil aceitar a derrota, “Hitler explorou esse sentimento de ressentimento e, em 20 anos, o mundo estava de volta à guerra”. Apesar disso, o diplomata considera que houve exemplos de cessar fogo negociado que funcionaram melhor.

Esses acordos eram quase sempre negociados pelos norte-americanos — “Kissinger [antigo secretário de Estado dos EUA] era famoso pela sua diplomacia em busca de um cessar-fogo no Médio Oriente” —, e um dos exemplos apontados pelo diplomata britânico é o acordo de Dayton, que pôs fim a três anos e meio de guerra na Bósnia e Herzegovina.

“No caso da Bósnia, o presidente Clinton só decidiu usar todo o poder dos EUA depois de anos de limpeza étnica brutal e de esforços fracassados ​​de manutenção da paz da UE e da ONU. Em 1995, ele despachou o seu principal pistoleiro diplomático, Richard Holbrooke, para fazer uma viagem ao estilo Kissinger e arrancar um acordo das partes nas conversações de paz de Dayton”, descreve Peter Ricketts.

World Leaders at the Signing of the Dayton Peace Agreement United States - Diplomacy - Dayton Accords

Acordos de Dayton assinados pelos presidentes Slobodan Milosevic (Sérvia), Franjo Tudjman (Croácia) e Alija Izetbegovic (Bósnia)

Corbis/VCG via Getty Images

Depois da II Guerra Mundial, a Guerra da Bósnia foi o conflito mais longo na Europa (1.606 dias entre 1992 e 1995) e o mais violento (cerca de 200 mil vítimas e 1,8 milhões de deslocados), envolvendo vários países da ex-Jugoslávia, que começou a desintegrar-se em 1991. Na origem do conflito estavam divisões entre os três grupos étnicos da região: os sérvios cristãos ortodoxos, os croatas católicos romanos e os bósnios muçulmanos.

Em 1999, durante a crise do Kosovo, que queria a independência, foi uma coligação de países, Rússia incluída, a fazer pressão sobre o Presidente Slobodan Milosevic (presidente da Sérvia de 1989 a 1997 e da República Federal da Jugoslávia de 1997 a 2000). O acordo foi selado e, recorda o diplomata, “tanto na Bósnia como no Kosovo, a paz manteve-se, embora a estabilidade a longo prazo se tenha revelado difícil”.

A fama de Henry Kissinger enquanto diplomata, usando as palavras de Ricketts, não foi suficiente para receber aplausos pela proposta de paz que desenhou para a guerra na Ucrânia num artigo de opinião publicado na Spectator. A 16 de dezembro, o diplomata norte-americano de 99 anos sugeria que a Ucrânia ficasse vinculada à NATO, “porque a neutralidade não é mais uma opção”, enquanto que a Rússia deveria retirar-se para as fronteiras de 24 de fevereiro. Os territórios de Donetsk, Lugansk e Crimeia seriam discutidos numa segunda fase, já depois de um cessar fogo.

A Ucrânia foi rápida a reagir. “O Sr. Kissinger ainda não percebeu nada… nem a natureza desta guerra, nem o impacto na ordem mundial”, escreveu Mykhailo Podolyak, assessor de Zelensky, no Telegram. “A receita que pede, mas tem medo de dizer em voz alta, é simples: apaziguar o agressor sacrificando partes da Ucrânia com garantias de não agressão contra os outros estados do Leste Europeu.”

Um mês antes, foi o chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, o general Mark Milley quem deixou o alerta no ar. Militarmente falando, defendeu o norte-americano, é muito difícil que a Ucrânia consiga expulsar a Rússia do seu território. Essa solução teria de ser negociada politicamente para ser plausível.

Refugees After Clashes in Nagorno-Karabakh Clashes in Nagorno-Karabakh

Refugiados fogem de Nagorno-Karabakh

Sygma via Getty Images

Terceiro cenário. Impasse: sem vencedor, nem vencido

Exemplos: Conflito do Donbass, Conflito de Nagorno-Karabakh, Guerra da Coreia

“A terceira maneira de terminar conflitos é um impasse, sem um vencedor claro e sem um acordo de paz, mas com um afastamento gradual dos combates, deixando uma situação mais ou menos caótica e instável. Os exemplos incluem a fracassada ocupação do Iraque pelos Estados Unidos/Reino Unido após 2003 e os vários conflitos congelados em torno da periferia da Rússia que ocasionalmente irrompem, por exemplo, a disputa entre a Arménia e o Azerbaijão sobre a disputada região de Nagorno-Karabakh e (entre 2014 e semanas atrás) Rússia e Ucrânia.” Peter Ricketts

O exemplo de uma guerra que nunca acaba é a da Coreia. Embora o Norte e o Sul, separados pela zona desmilitarizada no paralelo 38, tenham assinado um armistício a 27 de julho de 1953, ou seja, um acordo formal em que as partes se comprometem a parar de lutar — e dado garantias do status quo ante bellum, expressão em latim que significa “o estado em que as coisas estavam antes da guerra”— ficou a faltar o tratado de paz.

Este é um dos exemplos históricos relembrados por Mikhail Troitskiy. “O que sabemos da história? Temos o exemplo da guerra da Coreia que acabou em armistício, mas, antes disso, houve milhões de mortes. Durou três anos, com um primeiro ano de guerra muito intensa, e conflitos ainda no segundo e no terceiro ano, mesmo depois de terem atingido a fronteira onde iriam assinar o armistício.”

Os números oficiais apontam para 1,2 milhões de mortos na Guerra da Coreia, entre soldados e civis: os corpos de 4.167 norte-americanos foram trocados pelos de 13.528 militares chineses e norte-coreanos.

“Podemos fazer este paralelo. Tínhamos os EUA a apoiar a Coreia do Sul, e a China e a Rússia a ajudar a Coreia do Norte, com muitos soldados chineses e americanos a morrer naquela guerra”, diz o analista russo. Esse apoio mantém-se até hoje, com os EUA presentes militarmente na Coreia do Sul e com a China a bancar o regime de Kim em Pyongyang. Voltando ao conflito que opõe Kiev e Moscovo, Troitskiy lembra que a China apoia a Rússia, enquanto a Ucrânia é apoiada pelos EUA e UE.

“Se houver um armistício, pode durar tempo substancial, mesmo que não dure décadas, como o da Coreia?”, questiona Mikhail Troitskiy. Com esta questão no ar, voltamos à teoria académica — as guerras acabam quando há pelo menos confiança transitória de que as tréguas vão aguentar-se durante tempo substancial, fazendo sentido pôr fim às hostilidades.

Neste momento, com a Ucrânia decidida a expulsar a Rússia de todo o território, Crimeia incluída, e com o contínuo fluxo de armamento vindo do Ocidente é altamente improvável que, na cabeça de Zelensky, faça sentido parar o conflito, apesar dos avisos do general Milley ou da solução proposta por Kissinger. Não será fácil conseguir libertar todo e cada centímetro de território ucraniano.

Solução estilo “Donbass”: um conflito latente

Para Simon Schleigel é muito difícil comparar esta guerra com outras guerras. “A comparação é muito limitada com, por exemplo, as guerras da antiga Jugoslávia ou guerras mais recentes nas antigas repúblicas do Bloco de Leste. A melhor analogia é com a guerra do Donbass, entre 2014 até 2021. Em muitos aspetos esta é uma continuação daquela guerra que chegou a um impasse, ou congelou de uma forma insatisfatória para os dois lados.”

Civil war in Sarajevo Food Rationing During Siege of Sarajevo

Depois da Bósnia e Herzegovina ter declarado independência da Jugoslávia, as forças sérvias iniciaram um cerco a Sarajevo

Sygma via Getty Images

Repensando as palavras, Schleigel refaz a frase e considera que o Donbass nunca foi um conflito congelado. “Acho que uma palavra melhor é latente. Havia artilharia a ser disparada todos os dias e havia dias bons e dias maus. No verão de 2020, houve um cessar fogo que durou vários meses”, recorda.

Quanto ao conflito atual, o analista do Crisis Group refere que ainda há alguma comunicação entre os dois lados sobre troca de prisioneiros, corredores humanitários e a central nuclear de Zaporíjia. “Seria teoricamente possível chegar a um cessar fogo temporário, mas neste momento ninguém está interessado. Os ucranianos não estão interessados nem vão retirar-se enquanto conseguirem manter vantagem. Neste momento, é do interesse da Ucrânia continuar a lutar.”

A guerra do Iraque de 2003. Quando o país invadido foi derrotado

Continuando à procura de exemplos históricos, Mikhail Troitskiy considera interessante o do Iraque, não só a parte da invasão, mas também a da retirada dos Estados Unidos. “O Iraque, ao contrário da Ucrânia, foi derrotado.”

O analista de Assuntos Internacionais lembra que, depois da invasão do país em 2003, o Presidente Saddam Hussein foi rapidamente derrotado. “Os EUA ocuparam o Iraque, com outros aliados como o Reino Unido, e rapidamente instalaram um novo regime político. Houve eleições, mas o país entrou num período de caos devido às divisões entre fações. A controvérsia veio ao de cima com o novo governo — apoiado pelo EUA — recusando-se a acabar com essas contradições da mesma forma que Saddam Hussein teria conseguido.”

Apesar disso, há paralelos. “Há uma força ocupante que invade um país, levando a conflitos internos. Instala um governo no território desse país, ou em parte do território.” Se se passar tempo suficiente, defende o analista, aquilo que sobra é um país dividido com um governo que pode, até certo ponto, governá-lo. O problema no Iraque, recorda Mikhail Troitskiy, era a instabilidade doméstica e a continuação dos conflitos entre as fações. “E os Estados Unidos retiraram as suas tropas, deixando o Iraque com um governo que eles mais ou menos instalaram, que ajudaram a consolidar. E esse governo, apesar de todos os problemas, foi capaz de governar o país ao longo de uma década e meia.”

PHOTO-TV. INVASION ET ANNEXION DU KOWEIT PAR L'IRAK

Declarações televisivas em 1990. Saddam Hussein anuncia anexação do Kuwait. George Bush anuncia que os EUA vão retaliar

Gamma-Rapho via Getty Images

Poderia esta solução ser decalcada para a Ucrânia, com a Rússia no papel que no Iraque pertenceu aos Estados Unidos? “Este cenário só é credível depois de uma guerra muito longa. Se a Ucrânia for esgotada à extensão que fique fragmentada e, ao mesmo tempo, a Rússia, a força ocupante, estiver esgotada ao ponto de sair da parte da Ucrânia que conseguir ocupar, deixando lá algum tipo de Governo que apoie à distância, então talvez tenhamos um cenário como o do Iraque”, acredita Mikhail Troitskiy.

No entanto, este cenário só podia acontecer no conflito atual depois de uma guerra muito longa, ao ponto de esgotar os dois países, ao ponto da Ucrânia se tornar ingovernável, com uma crise política e económica. “Em algum momento, os cidadãos podem dizer que já chega de guerra, que querem um novo presidente. Ao mesmo tempo, pode haver uma fação que quer lutar até ao fim. Isso leva a uma grande instabilidade. O mesmo pode acontecer na Rússia, se um novo governo chegar e disser que não quer ter mais nada a ver com a Ucrânia, como Barack Obama disse do Iraque.” Nesse cenário, algumas partes da Ucrânia e da Rússia poderiam tornar-se numa zona de instabilidade, caos, e conflito entre fações diferentes, um pouco como o Iraque, defende o analista de Assuntos Internacionais.

“Mas a Ucrânia e a Rússia não são sociedades muçulmanas fragmentadas dominadas por divisões sectárias. Podemos pensar em termos do Iraque, mas é bastante esticado porque, ao contrário do regime de Saddam, a Ucrânia não foi derrotada, mantendo a grande maioria do seu território, e esperando que a maré da guerra vire, em última análise, a seu favor”, conclui Mikhail Troitskiy.

E a melhor solução para pôr fim a guerra é…

No momento atual, cada um dos cenários em cima da mesa tem igual probabilidade de funcionar, na opinião do analista Mikhail Troitskiy, que faz um resumo do que pode acontecer, sempre tendo por base a história de conflitos passados.

“Temos estes cenários: a Rússia sai completamente da Ucrânia, ou sai e fica com a Crimeia, se bem que, neste momento, os ucranianos parecem determinados em recuperá-la. Se a ponte da Crimeia estiver destruída, a península vai estar sob ameaça. O que acontece a seguir não é claro. A Ucrânia pode tentar entrar na Rússia para segurar os seus avanços, para extrair indemnizações da Rússia e por aí fora”, detalha. Este é um cenário em que a Rússia perde muito, diz o professor universitário.

“Outra hipótese é o conflito constante que pode levar a um resultado do tipo Iraque, depois de 10 ou 15 anos de conflitos internos. No meio, temos o cessar fogo”, diz Mikhail Troitskiy, recordando, mais uma vez, o que diz a academia sobre o fim das guerras: tem de haver confiança das duas parte no acordo de paz. E, no momento atual, nenhum dos lados parece disposto a arrumar as armas e terminar o conflito.

No final, apesar de ser uma situação anormal, talvez haja maior probabilidade de conseguir juntar Zelensky e Putin num ringue de boxe do que numa mesa de negociações. À primeira solução, mesmo sendo uma resposta irónica, uma das partes já deu luz verde. Já vontade de discutir um armistício é algo que não tem saído da boca de nenhum dos presidentes.

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