O primeiro-ministro chamou-lhe “circuito de verificação adicional”, enviou uma carta ao Presidente da República e a ministra da Presidência já deu as primeiras pistas sobre o plano. O Governo está a estudar um sistema que permita escrutinar os governantes antes de serem nomeados. Ao mesmo tempo, há partidos, como o Livre ou Chega, que já fizeram propostas que implicam rever a Constituição. Um ex-ministro do PSD, um ex-dirigente nacional do PS e um antigo presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais — que habitualmente refletem sobre o sistema político — propõem, em conversa com o Observador, diferentes modelos para este mecanismo. Os três têm pontos de contacto.
Sem serem ainda conhecidos muitos detalhes sobre a proposta de António Costa, entre ex-ministros e dirigentes políticos que estudam o sistema, há propostas que vão desde uma CREsAP (entidade de recrutamento para a administração pública) para governantes até mecanismos que podiam estar já a ser aplicados sem ser preciso mudar a lei. Ambos têm em comum uma ideia: o Presidente da República não deve ser envolvido no processo de verificação prévia, porque a escolha dos ministros e secretários de estado cabe apenas ao líder do Governo.
A própria ministra da Presidência também já negou essa possibilidade e disse esta sexta-feira, no podcast Comissão Política do Expresso, que “a ideia não é passar o escrutínio para o Presidente, é que exista um momento antes da nomeação, exterior ao Governo, para se ter acesso a informação de que o Governo não dispõe”.
Ao Observador, o ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro defende que o primeiro-ministro já podia ter implementado esta verificação de incompatibilidades “sem necessidade de mudanças formais na lei” e o constitucionalista e ex-deputado do PS, Pedro Bacelar Vasconcelos diz que “a atual Constituição permite audições prévias, não vinculativas, no Parlamento”, mas também há propostas mais inovadoras.
Do ideal ao possível: “CREsAP do Governo na dependência do gabinete do primeiro-ministro”
O ex-dirigente do PS e coordenador nacional da SEDES, Álvaro Beleza, diz ter um “patamar ideal, um possível e um prático”. Comecemos pelo prático. O socialista sugere a criação de uma CREsAP para membros do Governo, que possa “fazer um crivo prévio dos membros que são convidados para integrar o executivo”. O que sugere o antigo dirigente do PS é que “exista, tal como na medicina, um formulário de consentimento informado, um documento de auto-exclusão” que tenha um conjunto de questões relacionadas com o passado pessoal e profissional das pessoas convidadas para integrar o Governo.
Para Álvaro Beleza os casos que têm surgido acontecem “ou porque as pessoas não têm noção das condições, por ignorância, para serem membros do Governo” ou então “omitem as informações por má formação ética”, algo que de uma forma ou de outra se pode corrigir “de forma mais rápida, com o atual sistema político, recorrendo a uma declaração assinada sob compromisso de honra” por parte dos membros convidados. Essa “CREsAP do Governo” estaria na dependência do gabinete do primeiro-ministro. Esta é mais uma possibilidade que a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, já excluiu.
Para o coordenador da SEDES, com a atual Constituição, um modelo de audições no Parlamento não é possível sem uma revisão constitucional, mas desafia os partidos a ir mais longe: “O processo de revisão que está em curso é poucochinho. Para mudar não basta fazer apenas remendos” e os 50 anos do 25 de abril são a “oportunidade ideal para modernizar o sistema”. E é aí que a reflexão passa para a “versão ideal”.
Aí, Álvaro Beleza defende uma aproximação ao modelo britânico ou norte-americano em que “devem existir círculos uninominais e em que os membros do Governo sejam obrigatoriamente deputados. Os ministros devem ser políticos”, defende o antigo dirigente do PS, que acrescenta ainda que “ao ir buscar os governantes ao Parlamento, os partidos são obrigados a escolher os melhores para deputados”.
A criação de uma câmara alta — o Senado — é também defendida por Álvaro Beleza, que afasta “o argumento de que Portugal é demasiado pequeno para ter duas câmaras no Parlamento. Só três países na Europa é que não têm um Parlamento com duas câmaras“, regista. A tese defendida, em resumo, é que “tudo deve ser permitido desde que tudo possa ser escrutinado. A democracia e a República têm que ser construídas com paredes de vidro”. Beleza aponta os exemplos britânicos e norte-americanos “por serem democracias muito mais antigas do que as europeias e onde não existiram ditadores”, salientando ainda que “não é preciso inventar” para chegar a um modelo que melhore o sistema atual.
O mecanismo para ontem. “Primeiro-ministro já podia ter criado um sistema com a atual legislação”
Miguel Poiares Maduro, ex-ministro do PSD, entende que um sistema de vetting que possibilite fazer uma verificação de incompatibilidades é “muito mais útil” do que um modelo de audições prévias sem caráter vinculativo, que “pode na mesma fazer sentido”. O antigo ministro e também professor universitário defende que António Costa “pode criar mecanismos sem necessitar de mexer na legislação, pedindo informação às pessoas que quer convidar para integrar o Governo”.
Apesar de defender que um modelo mais informal e mais prático, de rápida aplicação, Miguel Poiares Maduro abre a porta “a uma formalização do processo” que, por exemplo, “permita a colaboração de autoridades fiscais que enviam ao primeiro-ministro informação sobre os ministros e secretários de Estado”.
O social-democrata é favorável a uma aproximação ao modelo norte-americano, em que já seria necessário mexer na lei, para permitir que o líder do Governo “contacte uma série de entidades que dão acesso a informações fiscais, declaração de rendimentos, declarações profissionais” e que depois “exista a possibilidade das autoridades, como a Policia Judiciária, auxiliarem o primeiro-ministro na verificação dos dados”.
Para Miguel Poiares Maduro o recurso a uma entidade externa de fiscalização permite fazer uma avaliação “com base na legalidade”, mas dificulta a criação de “um juízo ético”, que “deve ser feito pela entidade com poder de nomeação”, neste caso o primeiro-ministro. O antigo governante acredita que “o sistema já podia ter sido montado porque é uma questão de organização do Governo” e que “pode formalizar na lei alguns aspetos, mas não é fundamental” para arrancar com o procedimento.
Já quanto à questão das audições parlamentares — que Poiares Maduro distingue do sistema de vetting — entende que “na cultura portuguesa é mais difícil” e que teria que assumir “um caráter não vinculativo”, ainda que “possa fazer sentido e possa ajudar no processo de escrutínio” dos membros convidados para integrar um Governo.
Audições prévias sem caráter vinculativo “têm enquadramento na atual Constituição”
Oantigo presidente da Comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Pedro Bacelar Vasconcelos, do PS, entende que há margem para “dentro da atual Constituição se enquadrar um modelo de audições prévias no Parlamento, sem caráter vinculativo”. Para o ex-deputado e constitucionalista, “o défice do sistema político é uma tendência perigosa” e que se está a refletir “numa diminuição do papel do Parlamento, um pouco por todo o mundo”.
Bacelar Vasconcelos ressalva que “é mau agir em cima dos acontecimentos”, referindo-se “aos escândalos sucessivos que são preocupantes e merecem reflexão para que se evitem repetições” e olha para o modelo de audições parlamentares prévias à tomada de posse como uma “solução compatível com o sistema semipresidencial que existe em Portugal”. Esta solução chegou a estar prevista, ainda que num modelo diferente — para apresentação dos objetivos para cada ministério — no programa eleitoral do PS em 2019, mas caiu no documento apresentado aos portugueses no ano passado.
Para o ex-deputado do PS, a audição dos membros indicados para ministros ou secretários de estado “promove um escrutínio mais sério e rigoroso” e “alarga a a legitimidade democrática”, apontando até “a Comissão de Assuntos Constitucionais como o lugar privilegiado para estas audições”, referindo que “foram feitas múltiplas audições a candidatos a lugares de nomeação” nesta que é a primeira comissão da Assembleia da República.
Pedro Bacelar Vasconcelos reconhece que num formato como este “há sempre debate político-partidário“, mas que isso “não deve ser visto de forma negativa porque permite dar a conhecer a personalidade e o currículo da figura que se propõe para o cargo” numa audição que não obrigaria a mudanças de fundo e que “podia ser enquadrada com uma alteração ao regimento da Assembleia da República”, processo que também está a decorrer.