“As pessoas não estão melhor”, lamenta João Labrincha. Tem 37 anos e nunca teve um contrato sem termo. Há dez anos, no final dos seus ‘vintes’, foi um dos principais organizadores da manifestação Geração à Rasca, o protesto que saiu à rua a 12 de março 2011 e que marcou parte dessa geração. Hoje, está novamente desempregado. Paula Gil também esteve na linha da frente dessa manifestação. Continua a recibos verdes e também ela tem a mesma a convicção. “As coisas não mudaram muito”, aponta.
Foram as políticas de José Sócrates que os fizeram sair à rua. A gestão de Pedro Passos Coelho e os anos mais duros da troika intensificaram os protestos. O período da ‘geringonça’ e de António Costa fizeram com que acreditassem num país diferente, mas a verdade é que, aos olhos dos organizadores da manifestação Geração à Rasca, as coisas pouco ou nada mudaram. “O atual Governo não quer e talvez não possa alterar a situação atual”, condena Paula Gil. “Este e o anterior governos assumem como aceitável esta desregulação laboral em que vivemos. E isso não se entende, até porque hoje em dia é fácil impor a contratação legal, os contratos estão tão liberalizados que podíamos fazer contratos por meia dúzia de horas se fosse necessário.”
“Ou existe de facto uma segunda crise e vivemos um momento cíclico de repetição de crises, que mostra que a forma como a nossa sociedade está organizada não está a funcionar e temos de alterar fundamentalmente a forma como o Estado protege as suas populações. Ou então temos de ver isto de outra perspetiva que é: não há uma segunda crise, porque nunca saímos da primeira. Uma melhoria económica do país não se refletiu numa melhoria das condições dos trabalhadores e dez anos depois, estamos exatamente onde estávamos há dez anos”.
[Ouça aqui a reportagem “10 anos depois, estamos perante uma nova ‘Geração à Rasca'” na Rádio Observador, com as declarações de João Labrincha, Paula Gil, Ana Bacalhau, Duarte Marques e José Soeiro]
João Labrincha e Paula Gil estão entre os quatro amigos que, há uma década, à mesa de um café, decidiram organizar um grupo no Facebook para combinar um protesto contra a situação precária em que milhares de jovens se encontravam. Um evento marcado numa rede social tornou-se rapidamente naquela que chegou a ser considerada a maior manifestação não vinculada a partidos políticos desde o 25 de Abril. E bastaram apenas quinze minutos para o perceber.
O filme daquele dia
Era sábado, dia ameno. A multidão, que já se começava a formar, descia a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Na estátua dos Restauradores, que permite uma visão periférica para toda a avenida, dezenas de pessoas de mais idade olhavam para o que estava a acontecer. João Labrincha, um dos organizadores da manifestação Geração à Rasca, recorda esse momento.
“Estavam pessoas de mais idade, todas a chorar copiosamente, e veio um senhor dizer-nos ‘Obrigado, a vossa geração afinal é como a nossa e estão aqui a mostrar-nos que têm essa força. Não percebíamos como é que o mesmo povo que tinha feito o 25 de Abril, de repente, não saía à rua e não se manifestava contra as injustiças’.”
Esta é uma das principais memórias daquele 12 de março de 2011 rapidamente identificadas por João Labrincha à conversa com o Observador precisamente 10 anos depois. “Estavam visivelmente emocionados e isso obviamente emocionou-me e emociona-me ainda hoje, só de pensar.”
“Pessoalmente, foi o momento mais incrível e espetacular, no sentido em que eu nunca acreditaria que alguma vez algo assim me pudesse acontecer. Foi muito bonito ver aquela esperança, uma esperança transformadora, foi uma manifestação também de alegria, quase de alívio, até”, lembra João Labrincha, em entrevista ao Observador, sobre a manifestação Geração à Rasca.
Também Paula Gil, atualmente com 36 anos, recorda sobretudo a “intergeracionalidade da multidão”, também confirmada pelo momento que presenciaram quando desciam a Avenida da Liberdade e dezenas de pessoas mais idosas se emocionavam com a manifestação.
“Havia muitos jovens, como nós, mas havia também os seus pais e avós, que estavam ali para se manifestarem contra uma situação que, no fundo, afeta um país inteiro e também o futuro de um país.”
Radiografia de um país uma década depois
Dez anos depois, Portugal ainda está “à rasca”? “Temos de alguma forma um retrocesso, porque se passou a valorizar o emprego no Estado em vez do emprego criado sobretudo no setor privado”, defende Duarte Marques, deputado do PSD, à época líder da JSD.
“O desemprego baixou muito, o empreendedorismo chegou de facto a Portugal e viu-se que a sociedade e a economia passaram a confiar mais nos jovens empreendedores, naquela geração mais qualificada”, aponta. “Mas se olharmos para hoje em dia temos um retrocesso, porque infelizmente nos últimos anos passou a valorizar-se cada vez mais o emprego do Estado, o emprego no setor público, quando aquilo que era o caminho certo a percorrer era o emprego criado sobretudo no setor privado, que conseguia crescer, que se conseguia desenvencilhar e exportar cada vez mais”, considera.
Para Duarte Marques, o mais importante é que, passados dez anos, o tecido económico português “mudou” e passou a haver “mais espaço para os jovens que arriscam e criam a sua própria empresa”. O deputado do PSD rejeita mesmo que a manifestação da Geração à Rasca tenha sido organizada apenas por causa das condições do mercado laboral. “Um dos grandes problemas daquela altura era ver a nossa dívida pública a crescer e os jovens viam que eram eles que a iam pagar. E isso também foi um grande grito de alerta, não era só a questão do trabalho.”
Aos olhos do social-democrata, nem tudo é mau. “As várias reformas que foram feitas durante o período de ajustamento, e que foram tão criticadas, não tiveram qualquer tipo de regressão a sério por parte do Governo de esquerda que nos tem liderado. Até assistimos há poucos anos, o próprio Governo de António Costa a dizer que uma das grandes vantagens competitivas de Portugal era a sua legislação laboral. Desse ponto de vista, da flexibilização, o Governo não fez o retrocesso que fez noutras áreas”, recorda.
Já José Soeiro, hoje deputado do Bloco de Esquerda, lamenta “o padrão de precariedade do mundo de trabalho em Portugal não sofreu alterações“. Apesar de considerar que se mantém o peso estrutural dos contratos a prazo e de reconhecer que se verificou uma redução na utilização do recurso a recibos verdes, naquilo que considera ser um pequeno avanço, o deputado do Bloco de Esquerda entende que essa luta está muito longe de estar concluída.
Uma das grandes “urgências”, em matéria de legislação laboral, é o trabalho nas plataformas digitais, que “não está regulado” e não “prevê direitos, proteção social e contratos de trabalho” a essas “novas formas de precariedade”. Se há dez anos, esses trabalhos não eram tão expressivos, seja no transporte de passageiros ou no fornecimento de refeições, como a Uber ou a Glovo, hoje, também por conta da pandemia, estes tipos de trabalho “ganharam um novo fôlego”, aponta José Soeiro ao Observador.
“Estas pessoas estão fora da lei do trabalho, não têm acesso a direitos, são trabalhadores e empresários de si próprios”, defende o deputado, que garante: “Em Portugal, estamos muito atrasados e o pouco que foi feito, por exemplo, com a Lei Uber, foi pior emenda que o soneto. Portugal será, neste momento, o único país em que um Governo decidiu legislar sobre esta realidade para pôr na lei que é proibido haver um contrato entre trabalhador e a própria plataforma, em vez de regular para garantir contratos”.
Da canção dos Deolinda ao “despertar” das gerações
“Sou da geração sem remuneração.
E não me incomoda esta condição.
Que parva que eu sou.
Porque isto está mal e vai continuar,
Já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou.”
A canção “Parva Que Sou”, dos Deolinda, acabaria mesmo por servir de inspiração para a manifestação Geração à Rasca. Continuar na casa dos pais, não poder planear filhos ou comprar um carro seriam algumas das realidades com que os quatro amigos, acabados de entrar no mercado de trabalho, se acabariam por deparar. À mesa de um café, a canção, interpretada por Ana Bacalhau, surgia na conversa.
“Começámos a discutir a música e a forma como as pessoas reagiram e olhámos também para a nossa própria situação de precários”, conta Paula Gil. Também João Labrincha aponta o tema “Parva Que Sou”, cantado nos Coliseus de Lisboa e Porto, e a forma como rapidamente o vídeo desses concertos se tornou viral. E assim surgia a “Geração à Rasca”, a partir de dois momentos essenciais: “Um primeiro, com a música dos Deolinda, e depois a manifestação, como uma afirmação de ‘nós já despertámos, sabemos que isto não está correto e queremos que isto seja feito de outra forma’“.
Ao Observador, Ana Bacalhau lembra que aquela era uma canção nova, que foi tocada apenas nos Coliseus de Lisboa e Porto, nos dois concertos feitos em cada uma destas salas. “Das quatro vezes que tocámos, a reação foi assim, não foi mecanizada, tudo aquilo foi espontâneo. Depois foi para a internet e seguiu o seu caminho”.
As pessoas “pegaram na canção” e “tomaram-na como delas”. Uma geração inteira identificou-se com a canção escrita por Pedro da Silva Martins, também dos Deolinda, mas não só: “Muitas pessoas que não estavam na faixa etária entre os 20 e os 30 anos sentiram aquelas palavras — ou porque as sentiam na pele ou porque conheciam pessoas na família que viviam aquela realidade e aquelas dificuldades”.
Ana Bacalhau destaca a “honestidade” com que a música foi tocada e interpretada, muito também graças ao percurso dos próprios elementos da banda portuguesa. “Veio de um sítio honesto, que é a nossa própria experiência no mundo de trabalho. Eu antes de ser cantora a tempo inteiro, estive quase dez anos no mercado de trabalho, tanto no público como no privado”. Apesar disso, a vocalista dos Deolinda nunca imaginou que “Parva Que Sou” ganhasse a visibilidade que acabou por ganhar.
Foi esse descontentamento espelhado em palavras de uma canção que serviria de mote para a manifestação Geração à Rasca, que surgiu durante o governo de José Sócrates. “Havia uma grande indignação em relação ao rumo que o país estava a seguir”, diz Paula Gil.
Apenas um dia antes dos protestos que, de acordo com a organização, reuniram quase 500 mil pessoas em todo o país (Lisboa, Porto e outras cidades), o então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, apresentava o Plano de Estabilidade e Crescimento, o tão famoso PEC IV. Um documento que, entre outras medidas, previa cortes nas pensões (públicas e privadas) e deduções em sede de IRS. Puxando também a fita à frente, apenas onze dias depois da manifestação da Geração à Rasca, José Sócrates apresentava a demissão, depois de ver rejeitado o PEC IV.
“Nós queríamos colocar a questão da precariedade na agenda”, admite uma das organizadoras em entrevista ao Observador. “Queríamos que olhassem para a situação laboral do país e que percebessem que o caminho que estávamos a seguir não era um caminho que permitisse ao país sobreviver”. E assim foi: 300 mil pessoas em Lisboa, 200 mil no Porto e outras tantas distribuídas por outras cidades do país.
Entre megafones, bandeiras nacionais e os rostos de mais do que apenas uma geração, havia também um sentimento de esperança e mudança. Entre os cartazes empunhados, podia ler-se frases como “Governo rasca, Geração à Rasca”, “Governos gatunos”, “Escravatura outra vez não” ou “Também há avós à rasca”. Para João Labrincha, uma das grandes vitórias da manifestação foi “esclarecer as pessoas de que as situações laborais precárias em que elas estavam não eram situações normais, não era aceitável”.
As alterações à legislação laboral
A última alteração ao Código de Trabalho foi feita no final da última legislatura, em 2019. De acordo com o decreto, publicado em Diário da República em setembro de 2019, e que entrou em vigor um mês depois, entre as novas regras, os contratos de trabalho a termo certo passaram a poder ser renovados no máximo por dois anos, em vez de três.
No trabalho temporário, foi criado um limite de seis renovações ao contrato celebrado a termo certo. E os estágios profissionais para a mesma atividade e realizados no mesmo empregador passaram a contar para o tempo de período experimental.
De acordo com uma estimativa do Instituto Nacional de Estatística, a taxa de desemprego em janeiro terá subido 0,4 pontos percentuais para os 7,2%. Já a taxa de desemprego entre os jovens é estimada em 24,6%. Depois de curtos anos de alguma retoma económica e diminuição do desemprego, a Covid-19 vem arrasar quaisquer perspetivas de crescimento do país.
Se há uma década, Portugal via-se mergulhado numa crise económica e financeira, hoje a pandemia atira milhares para o desemprego, destrói pequenas e médias empresas e deixará um país com muitos destroços que levarão anos a recompor-se. Para o deputado social-democrata Duarte Marques, “Portugal está novamente à rasca”. Mas se na altura “era uma crise sobretudo financeira, do Estado, das contas públicas e do setor bancário”, hoje em dia esta crise “assusta mais”.
O deputado do PSD lembra as consequências para as empresas e o comércio, apontando uma crise profunda da economia, e não tem problemas em admitir: “Eu estou mais preocupado hoje se calhar do que estava há dez anos, porque esta crise pode ter consequências muito mais graves para as famílias se não conseguirmos rapidamente retomar o caminho do desconfinamento e da reabertura da economia”, afirma Duarte Marques, em entrevista ao Observador.
Por outro lado, a atual crise pandémica à qual se seguirá uma crise económica será, para muitos, “a segunda crise que atravessam num curto espaço de tempo das suas vidas”, lembra José Soeiro. “Há uma geração de pessoas que entrou para o mercado de trabalho num contexto de crise de austeridade, com todas as penalizações que isso implica, e que teve um pequeno momento de respiração durante estes últimos anos, entre 2016 e 2020”, aponta o deputado bloquista.
“Não houve uma alteração do padrão de emprego apesar de tudo, mas houve crescimento económico, criação de emprego, algum aumento de salários, nomeadamente do salário mínimo. Havia um caminho de progressão que estava a ser feito ao arrepio da lógica de austeridade. E agora, com esta nova crise, voltamos a ter aqui um grande problema que agrava as desigualdades, que precariza o trabalho.” José Soeiro defende por isso que é fundamental discutir “muito seriamente” quais as respostas que vão ser dadas a esta crise, justificando que “sabemos que as crises dadas à crise anterior foram respostas trágicas do ponto de vista social, do trabalho e da precariedade”.
O deputado do Bloco de Esquerda pede “sensatez e capacidade” para que as respostas que vão ser dadas a esta crise, quer a nível europeu, quer nacional, sejam “muito diferentes das que foram dadas na altura”. Já Duarte Marques considera que faltam apoios: “Dez anos depois, infelizmente e surpreendentemente, a fatalidade da pandemia pode criar-nos problemas muito mais graves. A diferença de apoios que é dada em alguns países às empresas e que é dada cá vai notar-se bastante na nossa economia nos próximos tempos”, conclui.
Dez anos depois da manifestação, os precários são os mesmos ou nascem novas gerações à rasca? Seja qual for a resposta certa, Paula Gil, uma das organizadoras do protesto, não tem dúvidas: é preciso lutar. “Uma das coisas mais bonitas que o 12 de março trouxe foi a mobilização da sociedade civil. Foi a organização que houve em vários movimentos que surgiram depois, sendo que muitos já existiam antes, e esse crescimento da contestação, que foi essencial durante o período da PaF, mas que se mantém e será sempre essencial. Não há evolução social e política sem luta política, e essa luta política tem de ser feita por todos nós.”