O momento era adequado à introspeção: Marco Paulo, o maior cantor popular que Portugal já conheceu, depois de décadas de intenso rebuliço, romarias de cima abaixo, milhões de discos vendidos, estava enclausurado em casa, na serra de Sintra. Estávamos no início de 2021, Marco Paulo conversava pausadamente, o tema da conversa seria o ano de 1971 e os 55 anos de carreira, mas aquele maravilhoso coração, a pulsar tristezas e alegrias, recordava os pais, o período de serviço militar obrigatório na Guiné-Bissau, os empregos de escritório, os sucessos e enfim, as recorrentes críticas de piroso e cantor feirante.

Um ano depois da intervenção cirúrgica, consequência de um cancro na mama, Marco Paulo aguardava pacientemente o regresso para os braços daquele que dizia ser o seu melhor amigo, o público português. “O público é que faz sobreviver isto tudo — os discos, as rádios e as televisões — é o público que faz mover o mundo”.

Esta é a transcrição integral de uma conversa da qual foram publicados apenas excertos. Os primeiros anos; a surpresa de um jovem sonhador que chegava do Alentejo para tentar ser uma estrela na cidade grande; a pausa para o serviço militar e o medo do futuro; a relação com a crítica e com aqueles com quem começou; os números astronómicos de vendas de discos; e sempre presente, o pensamento sobre o que aconteceria quando tudo terminasse. Na sua globalidade, é uma entrevista inédita, que revelamos agora, após a morte de Marco Paulo, esta quinta-feira, aos 79 anos.

Morreu Marco Paulo, um dos mais populares cantores portugueses

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Celebra 55 anos de carreira. Começou em meados da década de sessenta e nestes primeiros anos somou logo alguns sucessos de vendas e uma série de participações na televisão. Considerava-se um artista estabelecido ou alguém com um longo caminho pela frente?
Não, ainda tinha um longo caminho pela frente. Os anos 60 foram uma longa caminhada, em 66 gravei o meu primeiro disco e a caminhada foi de gravar um disco por ano. Era uma caminhada interessante porque assim apareci pela primeira vez na televisão, no Festival da Canção em 66 [Festival da Canção Portuguesa da Figueira da Foz], lidei logo com uma carreira e um tipo de exposição para as quais não estava preparado. Mas foram vários desafios. Por exemplo, pela minha frente tinha a tropa, que fiz em Portugal e na Guiné Bissau”.

Em que período esteve na tropa?
Em 66, 67 e 68. Como tinha o contrato de fazer um disco por ano, continuava a gravar. Tinha o direito de vir ao continente de férias e nesse espaço de tempo a editora disponibilizava sempre o estúdio para gravar uma canção. Não passava férias, passava o tempo a gravar, estava sempre nos estúdios e nos espetáculos. Quando terminava a licença de férias no continente ainda estava no estúdio. Eu ainda era muito pouco experiente no assunto, um caloirosinho que estava a aprender tudo aquilo e cumpria tudo que o meu produtor e a minha editora pediam. O que desejava mais era cantar e gravar com grandes orquestras, aparecer na televisão, mas nunca me imaginei em concertos nas grandes salas como tive oportunidade de fazer. Estive na Guiné até 68, e quando regressei pensei que a minha carreira estava praticamente no fim, que não ia voltar a cantar, porque foram praticamente dois anos de ausência, e dois anos de ausência é muito tempo para quem está a começar uma carreira musical. Costuma-se dizer: quem não aparece, esquece. Tive receio que a tropa me cortasse as pernas para não dar continuação.

O que acabou por não acontecer.
Acabou por não acontecer. Então, cheguei, continuei a gravar, a fazer televisão e concertos. Era sempre visto como a grande voz e um cantor muito bonito que as pessoas gostavam muito, só mais tarde é que aparecerem os caracóis. Foi tudo uma grande caminhada para chegar aqui e fazer o que gosto. Os concertos por agora estão em stand by, que a pandemia não tem ajudado. Mas o mais importante é que as pessoas tenham saúde, que não aconteçam mais tragédias. Calmamente vou voltar aos palcos”.

Nesta fase inicial da carreira, qual a importância do Mário Martins [antigo A&R da Valentim de Carvalho]?
O Mário Martins foi o meu primeiro produtor. Nessa altura eu era um jovem inexperiente, era tudo uma novidade para mim, como uma criança a quem tivessem entregue um brinquedo pela primeira vez. Ali estava o meu futuro, aquilo que eu mais gostava, mas um futuro que não é fácil. Cheguei a trabalhar em escritórios, em farmácias, tive vários empregos, trabalhava de dia e estudava à noite, e portanto eu queria outra coisa, não me sentia realizado. Como qualquer jovem, fui obrigado pelos pais a ser uma coisa, mas este jovem gostava de outra coisa, e eu tinha jeito para a música. Até certo ponto, até aos 19 anos, contrariei muito o meu pai, o meu pai queria que eu fosse para um escritório, que fosse funcionário de finanças como ele era, depois tive que ir para uma farmácia porque ele também tinha sido farmacêutico. Isto foi o princípio da vida de alguém, seja eu ou outra pessoa qualquer. Mas eu contrariei este destino, por um lado infelizmente, que não se deve contrariar um pai e uma mãe, são eles que nos abrem os olhos para a vida. Claro, ainda bem que nesta relação de pai e filho a minha vontade conseguiu vencer.”

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Nem o seu pai imaginaria que estaria agora a fazer 55 anos de carreira.
É um palmarés muito importante para quem é artista neste país tão pequeno. Eu sempre paguei as minhas contas com a minha voz, a minha música. Ganhei a independência com a minha voz. Depois as coisas aconteceram e aconteceram. O primeiro disco foi uma apresentação [o EP Não sei, 1966], e depois foram praticamente todas as músicas sucessos, exceto uma ou duas. Nestes 55 anos, foram três milhões e meio de discos vendidos em Portugal, eu vendia discos sem as pessoas terem gira-discos, compravam pela capa sem saber o que estava lá dentro. Eu era um jovem e tinha um sonho, mas precisava que alguém me ajudasse. Tinha o talento para fazer da minha voz uma profissão, mas tinha de me rodear de alguém que pudesse ajudar, e foi quando apareceu a Valentim de Carvalho e o Mário Martins, que me ouviram cantar no Festival da Canção da Figueira da Foz. Gostaram da minha voz, da minha presença, e contrataram-me. Estive vinte e poucos anos como o artista que mais vendia na maior editora de Portugal, a Valentim de Carvalho — depois da Amália claro.”

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Gravava na Voz do Dono, uma subsidiária da Valentim de Carvalho.
Eu era um cantor com um contrato com a Valentim de Carvalho. Nunca tive nenhum contacto com a Voz do Dono. Mas estas coisas já me têm acontecido várias vezes. Depois da Valentim de Carvalho fui para a Zona Música [Marco Paulo assina pela editora Zona Música em 2001 e edita 35 Anos Da Nossa Música], que me andava a sondar há alguns anos, e a editora proporcionou-me muitos discos e tudo aquilo que achava que eu merecia. Entretanto, as tais coisas que me acontecem, deitei-me na cama como cantor da Zona Música e acordei era artista da editora Espacial. Houve um acordo em que a Zona Música passou todo o reportório para a Espacial. Mas não fiquei triste, só fiquei chateado porque não é assim que se tratam as coisas, deveria ter sido avisado. Não estou arrependido, tenho uma ótima relação pessoal com a Espacial.”

A relação pessoal é importante no seu trabalho?
É o que valorizo mais, se não tiver uma relação pessoal, acredito que o produto final não resulta, não se deve fazer nada por obrigação. Em primeiro lugar está a relação de amizade com as pessoas, o poder falar abertamente e não ser pressionado. No meio artístico somos muito sensíveis, seja cantor, ator ou músico. Felizmente temos o público. O público é que faz sobreviver isto tudo — os discos, as rádios e as televisões — é o público que faz mover o mundo, são as pessoas. Tenho sido um cantor muito amado em Portugal e gosto de relacionar-me com as pessoas, nunca fui um homem de negócios, sou e sempre serei um artista. O trabalho que faço só resulta de uma boa relação, seja em que área for, como os dois programas que apresentei na RTP, de grande audiência, “Eu Tenho Dois Amores” e “Marco Paulo com Música no Coração”. Aqui também precisei de apoio. Foi tudo um ensinamento, porque vim para este mundo praticamente sem conhecer nada, eu só gostava dos artistas. Era um mundo que me era totalmente desconhecido. Vim do Alentejo com cinco anos, nunca sonhei que, vindo de Mourão, este mundo desconhecido me iria receber de braços abertos”.

Há 50 anos, em 1971, o seu grande sucesso era “Love Story”, uma versão de um sucesso internacional. Era o Mário Martins que indicava o reportório, ou o Marco também sugeria canções?
Costuma-se dizer uma expressão popular: cada macaco no seu galho. Eu era o cantor, tinha de estar sempre pronto com a voz nas melhores condições para desempenhar o meu papel, tinha que estar pronto para gravar a qualquer momento. E com a consciência que aquela voz que gravei em 71 iria ficar para sempre. A função do Mário Martins era produzir os artistas da música portuguesa, como a Amália, Simone, Duo Ouro Negro ou eu. Além da Amália, os meus diretores da editora chegaram a dizer que Marco Paulo, na Valentim de Carvalho, era a maneira mais fácil de abrir a porta a quem estava a começar uma carreira porque os meus discos pagavam isso tudo. As minhas músicas eram praticamente uma ajuda para que a editora tivesse verbas para gravar com artistas mais novos, em princípio de carreira. O “Love Story” era um sucesso internacional, uma música muito calma, muito ao meu estilo, que eu sempre cantei o amor, é a minha praia, é nessas canções que eu posso contar através da minha voz o que faz parte do dia a dia das pessoas. Ninguém vive sem amor. As pessoas ainda me dizem: “Marco Paulo, você faz-me tão bem, eu estava tão deprimida e a ouvi-lo fiquei melhor”; “O Marco Paulo é um bálsamo, a gente está doente e ouvi-lo cantar é um remédio”. Uma amiga minha disse ao marido que tinha que ir ao médico veio a Sintra ter comigo, o médico era eu [ri-se]. Mas o que eu faço é apenas cantar, levar uma mensagem de alegria e boa-disposição”.

Por outro lado, os críticos e jornalistas de música não gostavam nada do Marco Paulo. O que pensa hoje da imprensa negativa que recebeu na época?
O sucesso de alguém tem esse problema, de haver quem olhe de lado, mesmo sem razão, quem tenha sempre um defeito para apontar. Fui dos cantores em Portugal que mais capas de revistas fez, ninguém se apercebe disto. Nem a Dona Amália recebeu um disco de diamante, que é um milhão de discos vendidos, e consegui essa proeza. Então é natural que isso faça alguma confusão nas pessoas — e nessas pessoas, não no público. Era outra altura, hoje tenho uma relação grande com a imprensa e as televisões.”

Mas consegue indicar, na sua opinião, porque é que os jornalistas e críticos renegaram tanto a sua música?
Eram muito poucos. Não sei, era uma maneira de preencherem o espaço nos jornais e revistas que lhes era dedicado. Mas eu não senti muito isso. Nunca senti que me tratavam mal porque eu canto assim, mas por vezes passava-me pela cabeça: “O que é que eu faço mal por cantar e as pessoas gostarem de mim?” Como era muito novo e não estava habituado, a coisa era mais desagradável. Mas toda a gente ouvia a minha música, era só ir a festas, aniversários, casamentos: “Ninguém”, “Eu Tenho Dois Amores” ou a “Joana”. Mas depois havia a outra parte, que eram alguns, não muitos, que diziam que as músicas do Marco Paulo eram pirosas, que o Marco Paulo, o Roberto Carlos e o Julio Iglesias eram cantores das feiras. Eu achava que isso não tinha razão nenhuma de existir. Felizmente ainda todos cantamos.

É verdade que cantava em feiras, mas também nas principais salas e em festivais.
Fui duas vezes ao Festival RTP da Canção, mas nunca ganhei. Fui ao Festival da OTI [Festival OTI de la Canción, 1989, Miami]. Fiz vários festivais em Portugal, mas nunca ganhei, fiquei sempre mal classificado. Mas a minha carreira, 55 anos depois, ainda está cá.”

No início da carreira ainda teve um concorrente de peso, o Gabriel Cardoso.
O Gabriel Cardoso era um cantor da Madeira que cantava umas canções que as pessoas gostavam, teve uma carreira muito curta e éramos amigos. Ele não tinha uma grande voz, mas tinha uma voz agradável para aquelas canções. Nunca tivemos qualquer desamizade, qualquer problema, nem de inveja, nada, tratámo-nos sempre bem, como tento fazer com todos os colegas. Até hoje cumprimento sempre os meus colegas, uns mais que outros. Diga-me, o que havia de sucessos em 1971?

O disco português mais vendido foi o “Sigo Cantando” do Paco Bandeira. Curiosamente, os mesmos jornalistas que não gostavam do Marco, também não gostavam do Paco.
[ri-se] Faz parte da vida. A vida é feita de quem gosta e não gosta. Mas é importante abanar um bocadinho. Agora falam muito de condecorações e adoram condecorar pessoas que já morreram, que não se lembraram delas quando eram vivas. Porque é que o Marco Paulo, que tem alegrado milhões de pessoas, durante 55 anos, nunca foi condecorado? Nunca fui condecorado. Acharam que eu não merecia, embora me tivessem segredado ao ouvido que podia acontecer este ano [no ano seguinte, em 2022, Marco Paulo seria condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa].

55 anos depois, o Marco Paulo ainda não é devidamente apreciado?
Uma coisa eu digo: não me façam nada depois de eu morrer, depois de eu morrer quero ficar descansado. Em Portugal infelizmente as pessoas são recordadas quando mortas e não quando estão no auge da carreira, a gravar discos e a fazer concertos. Não me façam nada morto que só me estão a incomodar onde eu estiver. O meu maior troféu serão sempre os aplausos e o público, sem o público não poderia estar aqui, sem as minhas canções não poderia ser quem sou. Esse é o meu maior troféu, a minha maior condecoração, saber que os portugueses gostam de Marco Paulo e faço parte de muitas famílias, acompanhei a vida de muitas crianças e adolescentes. Hoje quem me ouvia é adulto. Vão sempre lembrar-se que há uns quantos anos havia um cantor que emocionava as pessoas, chamado Marco Paulo.”

Marcou diversas gerações.
E tem que ver que só havia um canal de televisão. Bastava ir uma vez à televisão que todo o país já sabia o que eu cantei, se era bom se não era, no dia a seguir a canção entrava no top. Não o digo por vaidade, é para as pessoas saberem. Repito, não me façam nada quando eu partir que isso depois cheira-me a falso onde eu estiver.