O objetivo está definido: o Livre quer fazer parte de um próximo governo de esquerda e tem de usar os próximos tempos para se preparar para isso. Foi essa a tónica deixada no final do congresso pelas duas principais caras do partido, Rui Tavares e Isabel Mendes Lopes, que partilharam a intervenção de encerramento e deixaram as linhas-mestras para orientar o partido — da necessidade de criar raízes em todo o país às soluções para liderar uma “viragem contra a extrema-direita e o conservadorismo”.
Antes de Isabel Mendes Lopes apresentar as propostas mais concretas que o partido quer lançar, coube a Rui Tavares falar e dar algumas pistas sobre o caminho exigente que o Livre e a esquerda como um todo devem agora percorrer. Um dia depois de ter anunciado que o partido tem de se preparar para governar, o fundador começou por falar às restantes esquerdas: “Estamos do mesmo lado para mudar este país e virar o ciclo político para políticas de progresso”. Até porque, se há, naturalmente, “alguma competição” entre eleições, a esquerda “é feita mais de cooperação”, frisou.
E essa é uma cooperação que deve ser feita contra uma direita “cada vez mais radicalizada e conservadora”, prosseguiu, num discurso em que colocou o Livre do lado do progressismo, numa espécie de missão contra o conservadorismo. Guardando mais recados para a esquerda: se a extrema-direita aposta num estilo de liderança “autoritária e personalizada”, a esquerda não deve “responder com a mesma cultura”.
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Era o passo que precisava de dar para passar aos recados internos: em tempos “difíceis para a democracia”, o Livre precisa mesmo de garantir que se enraíza no território e que promove não só uma liderança, mas muitas e espalhadas pelo país todo, lideranças que sejam “jovens, locais, setoriais” — “É muito importante que tenhamos líderes jovens em todo o lado” que possam “interromper uma conversa” que reflita preconceitos com dados que as desconstruam, frisou. No fundo, o Livre quer apostar na formação de quadros, tendo em vista as suas ambições crescentes: “É uma tarefa que o Livre abraça e que nos próximos dois anos nos vai dar muito trabalho”.
Durante todo o congresso foi possível ouvir, de resto, muitas referências a um fenómeno que o Livre quer combater: a ideia de que territórios mais isolados e “esquecidos”, nomeadamente no Alentejo e no Algarve, estão entregues ao Chega e que mais vale a esquerda desistir de tentar penetrar neles. Rui Tavares juntou-se ao apelo em sentido contrário: “Em cada município e aldeia começa a viragem contra a extrema-direita e o conservadorismo”.
Tudo isto numa altura em que, como já tinha defendido e reforçou, “ninguém sabe” qual será o calendário eleitoral — pode haver eleições legislativas ainda antes das autárquicas de 2025 — graças a uma “desorientação” de um Governo preocupado com questões menores, como “mudar um logótipo ou demitir uma pessoas”, mas perdido nas dimensões “ideológica, moral e ética” e sem se distanciar do Chega, acusou.
O guião político ficava traçado, falta o trabalho no terreno e no território — um trabalho que uma esquerda com muitas semelhanças com a do Livre, como é o caso do Bloco de Esquerda e do PAN, já tentou fazer e falhou — para assegurar que o partido tem um crescimento real e estruturado, em termos de implantação nacional. Por isso, Rui Tavares deixou um recado: nos próximos dois anos, progressistas e ecologistas devem dar as mãos, fazer coligações, apoiar movimentos independentes e, no caso do Livre, avançar com candidaturas locais em nome próprio se “achar que tem condições para isso”. Sem força local e autárquica será mais difícil ganhar uma estrutura mais sólida — e ambicionar a voos mais altos.
Taxar megafortunas, semana de quatro dias e herança social: as medidas do Livre
Esses voos mais altos também foram referidos por Isabel Mendes Lopes, que rematou o seu discurso pedindo que se construa uma uma alternativa “estável, de futuro, plural”, de que o Livre fará sempre parte — “vamos fazer por isso” — contra quem quer “minar e destruir a democracia por dentro”. Não por acaso, no final ouviu-se a Grândola, Vila Morena no final do discurso e “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.
Ainda assim, à líder parlamentar coube sobretudo fazer o discurso mais programático, numa enumeração de propostas concretas com que o Livre vai avançar ou já avançou, muito à volta das principais bandeiras do partido.
Desde logo, com a insistência naquela que será uma das medidas mais emblemáticas do Livre, o projeto-piloto para uma semana laboral de quatro dias, que quer agora implementar o setor público — e que o Livre vai ele próprio implementar para os seus funcionários, revelou Mendes Lopes. Quanto à resistência do Governo à medida, não teve meias palavras: para o Livre, é uma “irresponsabilidade” e uma “falha ao país”, tendo em conta os resultados do primeiro projeto-piloto, implementado em empresas do setor privado.
Boa parte das propostas em que o Livre quer focar-se agora têm a ver com questões de justiça social e distribuição da riqueza — é o caso do aumento do abono de família, da insistência na criação de uma “herança social” (um “pé de meia” assegurado pelo Estado para quem entra na vida adulta) ou da tributação de “megafortunas”. “Queremos que Portugal se comprometa com a verdadeira erradicação da pobreza estrutural. Não é admissível que continue a existir”, atirou.
Depois passou a propostas sobre coesão territorial, com farpas a um Governo que acusa de querer que o centro das cidades “fique para os ricos”, e defendendo um referendo para a regionalização que o Livre também aprovou em congresso, apontando para 2026. Também insistiu no alargamento da proposta do Livre para um passe ferroviário nacional (quer quer chegue a 250 comboios em todo o país), deixando uma farpa ao Governo: a proposta-base já estava incluída no Orçamento do Estado para 2024, portanto já é lei e deve ser cumprida.
Acabou com gritos por causas que unem o partido, defendendo a liberdade das mulheres para decidirem sobre as suas “vidas e corpos”, a “normalidade de todas as famílias”, a “luta justa” e sem “prazo de expiração” da Ucrânia e o cessar-fogo para “já” na Palestina.
Rui Tavares tinha deixado avisos ao partido sobre a “camaradagem” e a amizade que devem marcar as relações internas no Livre, para que o partido não tenha vistas curtas e se concentre no trabalho que tem pela frente; Mendes Lopes acabou a sentenciar que este é o “melhor momento de sempre do Livre”, que precisa agora de pôr “os olhos no futuro”. Os objetivos estão definidos e são ambiciosos (e arriscados). Agora, como dizia Mendes Lopes, o Livre tem de “fazer por isso”.