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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Uma hora com um general ucraniano a 800 metros do inimigo: “Os russos, coitaditos, nem têm telemóveis”

O Observador passou uma hora com o general Valeriy, um dos comandantes das tropas ucranianas em Brovary. As batalhas, o grupo de WhatsApp com a família e as graças e críticas aos inimigos russos. 

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Até chegar ao general neste edifício onde instalou o posto de comando, é preciso passar por 5 homens armados. Dois na porta da rua, outros dois ao longo do percurso interior e um à esquina do corredor onde fica o seu gabinete. O general Valeriy está sentado à secretária, com o computador ligado, a ouvir música clássica. É um dos responsáveis pela defesa da região de Brovary, um subúrbio a cerca de 22 km da Praça Maidan, no centro de Kiev. Feitas as apresentações, quando o Observador lhe pergunta se o pode acompanhar mais próximo das posições onde tem os seus homens, o primeiro instinto é recusar. Mas depois muda impulsivamente de ideias e anui: “Ok! Let’s go see the war!” [Ok, vamos ver a guerra]

“Como é que está o Ronaldo?”, pergunta-nos, enquanto desce as escadas. Senta-se no seu carro descaracterizado conduzido a alta velocidade por um dos seus militares de confiança. Sabe inglês, até porque se graduou há 25 anos na Academia Militar do Canadá, mas prefere que a conversa seja intermediada pela intérprete, o que lhe permite ganhar tempo para pensar se quer responder em inglês ou em ucraniano e decidir se usa uma piada ou um provérbio para se esquivar de alguma pergunta.

“Muitas vezes nem os russos sabem o que estão a fazer”

O carro serpenteia pelos checkpoints em direção a leste, com os militares a mandarem avançar assim que reconhecem o poderoso passageiro no banco da frente. Chega a uma posição defensiva ucraniana, num cruzamento de uma estrada importante. Um jovem militar vem cumprimentar o general, que o apresenta assim: “O pai dele comanda este posto de controlo militar, e ele é o substituto”.

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Há meia dúzia de homens de uniforme armados a controlar viaturas, que surgem de todas as direções do cruzamento. Há blindados a marcar posição. Há um abrigo com dois colchões e comida. Há trincheiras ao longo da estrada. E um trator a ajudar a preparar o terreno para se instalarem mais militares em novas trincheiras.

O general Valeriy pede para não se fotografar o enquadramento do trator — aliás, restringe todos os planos das fotos que permitam localizar o espaço, por uma questão de segurança — mas aceita ser retratado. Respira auto-confiança, talvez até excessiva, pelas graças que vai fazendo sobre as dificuldades com que se têm deparado os invasores russos.

O plano de Putin era avançarem em 3 ou 4 dias, bloquearem rapidamente os quartéis, e serem recebidos pelos civis, com as raparigas a levantar os vestidos e a dar flores e o sistema estatal já pronto para os receber e dizer que está tudo bem. Mas afinal ao segundo dia de guerra foram distribuídas aqui duas mil espingardas e havia três ou quatro voluntários para cada arma. Portanto toda a população se mobilizou. Temos aqui uma guerra entre o Bem e o Mal.
General Valeriy, comandante das forças armadas ucranianas em Brovary

Consegue saber a que distância está o inimigo?
Estão a 800 metros naquela direção: têm pessoas a fazer reconhecimento ali. [Aponta para uns arbustos no meio do campo. Não se vê nada nem há disparos]

Tem snipers que possam atingi-los a essa distância?
Claro que temos muitos snipers aqui à volta de Kiev. Até temos um atirador que veio do Canadá para nos ajudar, não é segredo.

E eles já saíram da posição para atacar?
Eles têm medo de agir ativamente neste território e fazem bem. O plano de Putin era avançarem em 3 ou 4 dias, bloquearem rapidamente os quartéis, e serem recebidos pelos civis, com as raparigas a levantar os vestidos e a dar flores e o sistema estatal já pronto para os receber e dizer que está tudo bem. Mas afinal, ao segundo dia de guerra, foram distribuídas aqui duas mil espingardas e havia três ou quatro voluntários para cada arma. Portanto, toda a população se mobilizou. Temos aqui uma guerra entre o Bem e o Mal. E, mais do que isso, temos o início da Terceira Guerra Mundial. Porque caso a Ucrânia falhe e os russos cheguem até Lviv, a Polónia vai ser a próxima — e, como ela é membro da NATO, arrasta o resto dos países todos.

Tem ideia de quantos militares russos vêm nesta direção?
É difícil dizer, porque eles fazem rotações, portanto muitas vezes não sabemos o que eles estão a fazer. Mas tenho a certeza de que muitas vezes nem eles sabem o que estão a fazer. Acredito que a palavra “Chornobaevka” já é conhecida até em Portugal. Há nessa terra um aeroporto militar, que os russos já tentaram conquistar oito vezes e são sempre derrotados por nós.

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Recebem muitas informações sobre os movimentos do inimigo?
Primeiro, e o mais importante, somos muito ajudados pelos nossos aliados em todo o mundo. E esta ajuda não é apenas com munições e armas, é também com fornecimento de informações por satélite. Depois temos informações dos nossos vigilantes e informações dos próprios civis, que estão completamente contra os russos. Daí que a primeira coisa que os ocupantes fazem seja tirarem os telemóveis aos civis. Mas o problema para muitos russos, coitaditos, pobrezitos, é que eles nem têm telemóvel, e então ficam muito surpreendidos quando veem que os ucranianos têm dois ou três telemóveis, mais iPad, entre outras coisas. Eles não compreendem isso.

“Nós não vamos morrer pela Ucrânia, nós planeamos matar pela Ucrânia”

Mesmo que tenha algumas semelhanças, este não é um checkpoint como os que são visíveis no centro de Kiev. “Isto é uma posição de combate, porque ao longo desta estrada pode haver muitas situações imprevisíveis”, explica o general Valeriy. Diz que os russos evitam o combate frontal e tentam contornar localidades. “Esta estrada é muito boa para o fazer, e é por isso mesmo que fazemos de tudo para que eles não passem por aqui, para terem de nos enfrentar”.

O comandante recorda depois os vídeos que mostram colunas russas na estrada de Chernihiv para Kiev, em que os ucranianos atingem a viatura que segue na dianteira, fazendo-a explodir, e obrigando depois o resto da coluna a dividir-se fora da estrada, em diferentes direções.

Sempre que a situação no terreno o permite, estes militares estão divididos em três grupos: uma parte está de serviço, outra a descansar e o outro terço está de prevenção, alerta para qualquer necessidade. As refeições são organizadas aqui, com a alimentação fornecida pelo Estado a ser complementada com as ofertas da população. “O movimento voluntário é tão grande que os rapazes aqui até têm peixe vermelho, ameixas, laranjas, etc.”, gaba-se o general, que convida o Observador a entrar num contentor sem janelas, onde funciona uma espécie de mini-messe. Senta-se a uma mesa com café, biscoitos e chocolates, para continuar a conversa.

Como começa normalmente o seu dia em tempo de guerra?
Acordo de manhã, bebo café, cuido da saúde com salo [vira-se para o soldado que está ao balcão e pede para servir esta espécie de toucinho aos convidados]. Como nós somos representantes do Estado, fornecem-nos o essencial para vivermos aqui, porque ninguém vai para casa, ficamos todos aqui, numa espécie de hostel, onde também nos fornecem as refeições. Às 6h da manhã, recebemos o relatório da situação. À noite bebemos uma cervejita, uma vodkazita e alguns dão uns abracinhos às raparigas.

Que tipo de informações recebe às 6h da manhã?
Quem mais quer saber, mais rápido envelhece [provérbio ucraniano].

Já esteve presencialmente em batalha?
Claro, mais de uma vez. Mas não nesta guerra, porque os generais combatem aqui [e leva o indicador à testa]. Os generais não combatem no terreno. Se isso acontecer, significa que esse exército não tem futuro. Os generais estão aqui para pensar como manter os rapazes vivos. Porque nós não vamos morrer pela Ucrânia, nós planeamos matar pela Ucrânia.

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Qual foi a decisão mais difícil que teve de tomar desde o início da guerra?
Assim de repente não me vem nada à cabeça. Se recebo informação acerca de alguma coluna que se movimenta em direção a civis, comunico imediatamente as coordenadas à artilharia.

Como foi o seu dia 24 de fevereiro, quando começou esta guerra?
Isso até é interessante, porque no dia 24 de fevereiro eu estava a ir para o serviço. Era chefe da escola militar de Luhansk, onde ensinava 250 meninos, com idades entre 15 e 17 anos. Até 2014 esta academia era mesmo no interior de Luhansk, mas devido à ocupação dos russos tivemos de transferir a escola para uma região próxima, Kreminna, a cerca de 100 km. Então, no dia 24 de Fevereiro todos os rapazes foram enviados para casa e no dia 25 fui eu. Tenho duas filhas, dois genros e quatro netos, mas no dia 25 já estava a combater para servir a Ucrânia.

Foi destacado para esta região de Brovary?
Sim, apesar de a minha idade já nem sequer me obrigar a estar aqui. Tenho 60 anos, mas tenho uma saúde forte.

Tem algum dos seus estudantes aqui a combater às suas ordens?
Eu fui durante 20 anos chefe na academia militar. Em cada ano terminavam os estudos 120 alunos. Oito em cada dez alunos tornavam-se membros das forças militares da Ucrânia. Hoje em dia, aproximadamente 1.500 dos meus antigos alunos servem as forças armadas da Ucrânia. E todos os dias recebo telefonemas de estudantes meus interessados em saber como estou.

E também lhe telefonam a pedir conselhos quando têm de tomar uma decisão difícil?
Sim, já aconteceu… O meu genro mais velho é coronel, o mais novo é capitão, e tenho uma filha que é tenente-coronel. Ou seja, na minha família temos quatro pessoas a combater. Temos um grupo do WhatsApp da família, e todas as manhãs às 6h30 começamos a dizer “Bom dia” para sabermos que estamos todos bem.

Eles até podem reunir todas as forças e equipamento, mas mesmo assim teremos uma vantagem, que é a nossa alta e forte alma moral. Nós estamos prontos para os matar. Eles não percebem o que estão aqui a fazer, não percebem.
General Valeriy, comandante das forças armadas ucranianas em Brovary

O general Valeriy ainda mostrava no telemóvel o grupo familiar cheio de emojis e vídeos, quando o militar que o conduziu se precipita para junto dele, passando-lhe uma informação que o leva a decidir abruptamente abandonar esta posição, invocando questões de segurança, sem querer dizer exatamente o que se passa.

De volta ao carro e à estrada. “A situação é muito difícil, mas está tudo sob o nosso controlo, tudo. Temos três linhas de defesa: a primeira linha são as Forças Armadas da Ucrânia; a segunda linha são as Forças de Defesa Territorial; e a terceira linha são as unidades de voluntários”, enumera, enquanto aponta para um grupo de homens armados, vestidos à civil, plantados num descampado à entrada da cidade.

“Damos a cada russo um bocadinho da nossa terra, numa área de 1 metro por 2 metros”

Ao longo do percurso, vai apontando vários armazéns de produtos alimentares, dizendo que são um alvo do inimigo, para reduzir a capacidade de abastecimento ucraniana. Depois contradiz-se um pouco, falando de forma mais realista: “Aqui não podemos dizer que eles estão sob controlo, porque eles se movimentam ao longo das nossas linhas, aparecendo e recuando — são imprevisíveis”.

A prová-lo está um ataque a uma aldeia, onde diz que mataram oito jovens ucranianos que estavam à espera do inimigo com bandeiras amarelas e azuis. “Há três dias veio uma mulher de lá, que trabalhava na administração local, e contou-nos isto.”

Para equilibrar, o general Valeriy descreve uma ofensiva ucraniana concretizada dois dias antes da conversa, na semana passada (o general pediu para este trabalho apenas ser publicado passado uns dias, para não dar pistas aos inimigos através das fotos): “Anteontem, as nossas forças da defesa territorial atacaram as posições inimigas, numa pequena aldeia chamada Lukianivka. Durante este ataque morreram, oficialmente, mais de 40 soldados russos, e foram capturados oito veículos blindados e dois tanques — um desses tanques já está a ser utilizado por nós na defesa de Kiev. Mas, infelizmente, dois soldados ucranianos foram mortos e seis ficaram feridos.”

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como acabou essa batalha?
A batalha acabou com a bandeira azul e amarela na aldeia. Os russos vieram aqui porque querem as nossas terras. Como nós, ucranianos, somos um povo muito generoso, não temos pena de dar a nossa terra. Portanto, damos a cada russo um bocadinho da nossa terra, numa área de 1 metro por 2 metros [e desenha um pequeno rectângulo no chão, numa alusão aos locais onde os inimigos são enterrados]. Caso eles sejam muitos, podemos fazer um bocadinho mais. Na Rússia, os imbecis dizem que só morreram 1.200 rapazes. Mas 1.200 é o número dos que morreram só aqui a caminho de nós, em direção a Chernihiv e Kiev. Temos provas irrefutáveis de que no norte do território de Provarsky foram enterrados por eles pelos menos 80 dos seus soldados.

Encontraram os corpos?
Eu não. Mas foi uma investigação nossa. Quando digo que é um facto é porque foi confirmado por três fontes independentes.

Que indicações são seguidas pelo exército ucraniano para as situações em que perdem homens a meio de uma batalha?
Temos instruções do ministro da Defesa acerca das regras do enterro dos rapazes. Identificamos o soldado que morreu e depois é aberto um processo, que não interessa referir. O mais importante é que cada soldado é depois recebido na sua aldeia ou na sua cidade por centenas ou milhares de pessoas, e o seu nome é dado a uma escola ou a uma rua. Se algum ucraniano morrer, os filhos dele, até aos 23 anos, recebem um subsídio pela perda do seu pai, e também é fornecida uma compensação monetária à família.

“É um inimigo que não segue qualquer tipo de regras militares e humanas”

Chegamos a outro checkpoint, mais urbano. O general sai do carro, aponta-nos o fosso aberto por um rocket na estrada, pede para esperar sem fazer fotos e atravessa um portão. Volta passado uns instantes e leva-nos a cerca de cem metros de um conjunto de edifícios bombardeados no segundo dia da guerra. O general não o diz, mas as notícias da altura referiram um ataque a uma instalação militar, onde morreram seis pessoas.

Já estava aqui?
Não, se eu tivesse estado aqui, vocês não estariam a falar comigo agora.

De volta ao carro, o general prefere não desvendar detalhes sobre a forma como se articula com os superiores que definem a estratégia da guerra: “A estrutura da organização das forças armadas da Ucrânia é segredo militar. O comandante supremo é o Presidente Zelensky.”

Já esteve pessoalmente três vezes com o Chefe de Estado. Uma há 15 anos, num encontro informal, quando ainda era ator. Outra, já como Presidente, numa visita à academia militar em Luhansk. E a última há dois anos quando foi promovido a general.

Pára a conversa para atender uma videochamada da mulher. Diz-lhe que está com jornalistas portugueses e no fim confessa que já ponderou várias vezes vir a Portugal de férias com a família — e que talvez o faça quando a guerra acabar.

O que acha que irá acontecer a seguir na guerra?
É muito difícil fazer uma previsão, é basicamente impossível. Porque é um inimigo que não segue qualquer tipo de regras militares e humanas.

Acha que é seguro as pessoas continuarem a viver aqui?
É unânime que não entregaremos o país. Eles não possuem forças nem equipamentos para nos vencer. Eles até podem reunir todas as forças e equipamento, mas mesmo assim teremos uma vantagem, que é a nossa alta e forte alma moral. Nós estamos prontos para os matar. Eles não percebem o que estão aqui a fazer, não percebem.

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