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“Isto é uma família, estão todos cá sempre no coração e na vida. Que sejam dias memoráveis para todos”. Tchin-tchin, toca a entrar em cena
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“Isto é uma família, estão todos cá sempre no coração e na vida. Que sejam dias memoráveis para todos”. Tchin-tchin, toca a entrar em cena

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“Isto é uma família, estão todos cá sempre no coração e na vida. Que sejam dias memoráveis para todos”. Tchin-tchin, toca a entrar em cena

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Uma noite com os Capitão Fausto: nos bastidores de uma banda "perita em arranjar problemas"

Um grupo de "tipos normais", entre mudanças na família, canções mais e menos favoritas, brindes, lágrimas e ideias para merchandising. A história do que não se viu nos concertos da Culturgest.

Estamos a menos de 20 minutos do início do concerto. O nervosismo é aparentemente invisível. À volta de uma mesa oval reúnem-se rapazes vestidos a corte de alfaiate, com copos de Moscow Mule na mão, autêntico cenário de filme dandy. A pergunta, “Sabes contar vacas?”, atira-nos de imediato para Um Mundo Catita, a série protagonizada por Manuel João Vieira. Imaginamo-lo ali, na treta com aqueles rapazes, que já não são assim tão rapazes como dantes, como quando não tinham aliança, filhos ou fatos à Frankie Valli costurados por um amigo de Alvalade, cujo negócio se chama Alphaiate, escrito mesmo assim, à séc. XIX.

Este é o segundo de quatro concertos esgotados dos Capitão Fausto na Culturgest, em Lisboa, mas, de um certo ponto de vista, bem o poderíamos considerar como o primeiro. “Ontem foi o concerto atrasado”, brinca Domingos Coimbra, falando da data extra que foi colocada à venda depois de os bilhetes dos restantes três espetáculos terem sido completamente varridos. Ao todo, voaram perto de 2.400 ingressos.

Quem comprou para o dia “atrasado”, já comprou com o álbum Subida Infinita, o quinto da banda lisboeta, cá fora. As cartas estavam todas à vista. Porém, quem se lançou para a segunda data estava praticamente às escuras sobre o trabalho que viria a suceder a A Invenção do Dia Claro (2019). Estava, como Manuel João Vieira, sem saber contar vacas e apenas com um single, Nunca Nada Muda, a servir de aperitivo.

“As pessoas que compraram o bilhete para este dia, independentemente do álbum, quiseram marcar presença”, prossegue Domingos, o baixista que para aquele momento até os sapatos do casamento levou, para fazerem pandã com o azul integral do seu fato. Para agradecer a esses fãs de lugar cativo, os Capitão Fausto guardaram para esta primeira-segunda data algumas surpresas, brindes simbólicos que, num dos casos específicos, seria exclusivo dessa mesma noite. Deixemos só o Moscow Mule acabar e já lá iremos. Ao concerto e às surpresas.

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A Rede Auditórios da banda “perita em arranjar problemas”

Horas antes, demos de caras com Domingos, Manuel Palha (guitarra), Tomás Wallenstein (voz) e Salvador Seabra (bateria) sentados nas cadeiras do auditório principal da Culturgest. Preparavam-se para o “ensaio de som mais rápido da história”: “Hoje já está tudo montado. Vamos só corrigir uma ou duas coisas que correram menos bem ontem”, esclarece Domingos, pondo-se lesto a organizar as peças em palco. A acompanhá-los estavam o “Sr. Rigor” Miguel Mâroco, a quem foram entregues as teclas de Francisco Ferreira – o quinto elemento que se afastou dos Capitão Fausto depois de editado Subida Infinita – e o “Sr. Boémio” Fernão Biu, o joker de serviço que, dos sopros à guitarra acústica, passando pela percussão, desenrasca todos os arranjos acessórios que suportam o espetáculo ao vivo.

Ouvimos Há Sempre um Fardo e passagens de Nuvem Negra, ambas do último álbum, o suficiente para os Capitão afinarem o motor do seu barco. Na sala das máquinas estava Diogo Rodrigues, técnico de som que acompanha a banda desde 2014 e que é tão ou mais preciosista do que os músicos. “Salvador, faz só aí os pratos”, pede do fundo da sala e Salvador, que andou a tarde toda com as baquetas coladas às mãos, fez a vontade a Diogo. “Está bom, podes parar”. 15 minutos e algumas discussões ao milímetro depois — do som às movimentações em palco — o ensaio estava feito. A caminho do camarim, ainda escutámos um aparte de Diogo: “Gostamos de arranjar sempre mais trabalho”.

"O Kalú disse-nos uma frase que, volta e meia, ainda penso nela: ‘Toquem sempre como se fosse o último concerto que vão dar’. É uma ótima maneira para se estar"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Os Capitão Fausto não o negam, bem pelo contrário. Com uma mini na mão, que partilhámos numa entrevista informal com os quatro, assumem-se como “uma banda perita em arranjar problemas”: “Apesar de já termos dado milhares de concertos, nunca aconteceu um em que não estejamos a tentar resolver alguma coisa ou a fazer melhor”. O desta noite não seria exceção. Já depois do espetáculo acabar, apanhá-los-íamos a magicar sobre a melhor forma de esconder os estrados em palco, qual convénio de engenharia. Isso, para Tomás, é um dos segredos que explica o prazer que ainda têm em tocar e andar na estrada juntos: “É uma das partes que nos dá gozo ao fim destes anos todos”.

Para esta digressão, complexificaram a componente técnica, de iluminação, de montagem e de som. “Esta digressão teve uma preparação maior do que qualquer outra. Foi o maior passo que alguma vez demos”. Talvez o segundo maior possa vir a ser o da construção de uma linha férrea imaginária que ligará diretamente todas as salas por onde vão passar. “Vamos ter a Rede Auditórios”, riem-se.

A brincar que o digam, Domingos, Tomás, Manuel e Salvador bem a mereciam: de fevereiro a novembro vão ter paragens em quase todas as estações e apeadeiros de norte a sul do país, em toda a cidade ou vila que ostente uma sala com lugares sentados para ver música ao vivo. Aveiro, Vila Nova de Famalicão, Oliveira de Azeméis, Covilhã, Leiria, Póvoa de Varzim, Lisboa, Vila Real, Porto, Caldas da Rainha, Águeda, Braga, Torres Novas, Faro, Guarda, Beja, Ovar e Figueira da Foz fazem parte do itinerário de Subida Infinita, fora as datas de verão que ainda estão por anunciar. “Já há uns anos que fazemos isto, para não ficarmos só à espera dos festivais de verão. Fazemos questão de traçar o nosso próprio caminho e aparecer onde há auditórios, que são ótimos para chegar às pessoas”, diz Manuel.

O Alentejo e o Algarve são os territórios mais difíceis de encher (a não ser que falemos das ilhas de Faro, e aí os Capitão Fausto são peritos a fazer chegar música a um público plantado num pedaço de terra no meio do mar de propósito para os ver, como aconteceu em 2021 com a iniciativa Banda à Solta). Subindo no mapa, “quanto mais para Norte, mais quantidade de público aparece”, notam. Porém, isso não os faz hierarquizar espetáculos, garantem, e Tomás apressa-se a trazer uma lembrança à conversa: “Em 2012 fomos abrir um concerto dos Xutos & Pontapés no Campo Pequeno e chegámos atrasadíssimos (foram 2h de atraso, põe rigor Domingos). O Kalú então disse-nos uma frase que, volta e meia, ainda penso nela: ‘Toquem sempre como se fosse o último concerto que vão dar’. É uma ótima maneira para se estar, assim damos sempre importância ao sítio onde tocamos”.

“Isto é uma família”

Os concertos, no fundo, são como os filhos. São todos iguais, mas há sempre um deles que faz bater o coração um pouquinho mais rápido, mesmo que se tente esconder esse facto inconfessável. O desta noite é, de certa forma, o filho predileto dos 24 espetáculos em sala. E a razão de o ser tem a ver com a personagem de cabelo encaracolado, pontas aloiradas, óculos na cara que, a meio da tarde, entrou pelo camarim com a naturalidade de quem faz disto vida há mais de uma década. “Olá pessoal”, atira Francisco Ferreira para a sala, puxando de uma cadeira para conversar com Flávia, a repórter de imagem de serviço convocada para registar os melhores momentos da digressão.

Tomás terminava os aquecimentos vocais que a mãe Lúcia, professora de canto lírico, lhe gravara. Domingos pedia ajuda para resolver o problema nos botões de punho

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Francisco ainda emprestou os dedos a Subida Infinita, já sabendo que, findado o processo de gravação, arrumaria os teclados para o lado para se dedicar à guitarra acústica que tem lá por casa. “Ando a tocar músicas de outros compositores”, assume com prazer, de unhas crescidas para agarrar bem as cordas das notas desenhadas por outro Francisco, o Tárrega. Ele, diz-nos, cansou-se de tocar por obrigação profissional, tal como Jürgen Klopp se cansou de treinar e, abraçando com naturalidade os trens de chegada e de partida da vida, retirou-se da banda sem fazer qualquer escarcéu. Aliás, “estou com eles todos os dias”, nota aquele que é também responsável pelos materiais de vídeo dos Capitão Fausto. Na noite anterior, a tal “atrasada”, vira o concerto sentado na plateia e adorou: “Era como se já tivesse visto aquilo por um terceiro olho”, ri-se. No concerto desta noite, irá entrar em palco, na última música, “mas só para tocar um compasso”, revela, pouco tempo antes de mergulharmos na saga das vacas à volta da mesa oval.

Enquanto falávamos com Francisco, Tomás terminava os aquecimentos vocais que a mãe Lúcia, professora de canto lírico, lhe gravara, enquanto enfiava a camisa verde por dentro das calças brancas. Domingos pedia ajuda para resolver o problema das mangas de camisas que têm botão de punho, assumindo a resolução de as dobrar até ao cotovelo como a mais prática. “No início eu era o ‘T-shirt toca’”, conta o baixista que nunca teve grande queda para modista. Salvador, no seu silêncio recatado, continuava a bater com as baquetas no tapete de treino. E Manuel passeava-se de blazer cinzento e expressão regalada na cara.

“Malta, vamos fazer um brinde”, sugere Ricardo Coelho, road manager dos Capitão Fausto desde 2012, pró em tornar a vida dos músicos e dos cerca de 20 elementos técnicos que os acompanham o mais sedosa possível na estrada. “Isto é uma família, estão todos cá sempre no coração e na vida. Que sejam dias memoráveis para todos”. Tchin-tchin, toca a entrar em cena.

Toca a “Teresa” — e uma lágrima no canto do olho

Passavam 10 minutos das 21h quando a instrumental Subida Infinita foi disparada para a entrada dos músicos. A sala, quentinha de gente, agigantou-se com palmas e onomatopeias de êxtase, deixando bem claro que eles ali – os que tinham comprado os primeiros bilhetes da digressão – eram os grandes devotos faustianos. Saberíamos, já no final, que na primeira fila estiveram João e Carolina, casal que tem mais de 70 concertos dos Capitão Fausto no currículo e que não tenciona parar por aqui. Ou António, miúdo de 21 anos que não ficou um minuto quieto na cadeira e que, como prémio-dedicação, levou a baqueta de Salvador para casa.

Os Capitão Fausto despediram-se de uma sala em pé com Crystal Blue Persuasion a passar de fundo. "Love is the answer, And that's all right", versos apropriados para encarar esta subida infinita

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

O alinhamento incidiu principalmente no novo álbum, aquele que tem a faixa Nada de Mal e que Tomás dedicou “ao nosso querido Gastão”, o baixista dos Zarco que morreu na sequência de uma explosão no prédio onde vivia, em 2020. Tem também Cantiga Infinita, gravada com o “amigo transatlântico Tim Bernardes”, Na na nada, que arrancou um solo funky a Manuel Palha, ou a Muitas Mais Virão, canção redondinha que abriu o concerto. Mas foi quando Faço as Vontades e Sempre Bem entraram de seguida, trazendo A Invenção do Dia Claro para palco, que vimos as primeiras pessoas a ousarem levantar-se da cadeira para dançar.

O delírio da noite — antes do grand finale – deu-se com Amanhã Tou Melhor, do disco consagração Capitão Fausto Têm os Dias Contados (2016), à qual sucedeu Santa Ana, regresso à origem de tudo, ao Gazela (2011) que tinha nervo indie rock e o sonho de cinco miúdos que queriam andar a tocar por aí e a dar autógrafos como faziam os Franz Ferdinand e os Arctic Monkeys. Inevitavelmente, alguém com o entusiasmo nos píncaros gritou da plateia, “Toca a Teresa”, mas essa não cabia no guião, “não estraguem o concerto”, provocou com humor Domingos. Já nos bastidores, os Capitão Fausto congeminaram sobre a possibilidade de incluírem no merchandising uma T-Shirt com a frase “Toca a Teresa”. Com estes rapazes de ideias irrequietas, tudo pode acontecer.

Não coube Teresa, mas couberam Lentamente, Boa Memória, Certeza ou “Corazón”; couberam muitas palavras de amor para o público – “A cada noite que passa torna-se cada vez mais certo que quando vocês não estão isto não serve de nada”; e coube um momento cinematográfico, com o estore de fundo de palco a ser puxado para cima, desvendando a fonte luminosa da Culturgest em todo o seu esplendor na derradeira Nunca Nada Muda. Aí, tal como prometido, entrou Francisco Ferreira, sob um forte aplauso, para tocar o tal compasso de despedida. Ricardo Coelho não conteve a emoção: “soltei uma lágrima”, confessou. Talvez a Lágrima de Tárrega que Francisco tem andado a praticar em casa. Os Capitão Fausto despediram-se de uma sala em pé com Crystal Blue Persuasion a passar de fundo. “Love is the answer, And that’s all right”, versos apropriados para continuarem a encarar esta subida infinita que é a sua música, que é a vida. Venha de lá o croquete de consagração no Galeto. Nos dias que se seguem haverá sempre mais.

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