O colar favorito de Jéssica foi feito por uma vizinha que costumava encontrar no café Semáforo, onde param praticamente todas as pessoas que vivem na zona do posto da GNR, em Setúbal. Quem passa por ali, há nove meses que se habituara a ver esta criança com a mãe, todos os dias. O colar era feito de bolas coloridas, que denunciavam aquilo que mais a caracterizava, “a alegria e a traquinice”. As descrições feitas pelos vizinhos cruzam-se agora, não só nos elogios, mas também nas considerações: “O que sabemos é que a criança está morta e isso já ninguém muda”.
Jéssica morreu esta segunda-feira. Tinha três anos, a morte foi provocada por maus-tratos, mas a história que lhe roubou a vida ainda não está completa. Faltam muitas peças, que a Polícia Judiciária tenta agora juntar e que o Observador ordenou, de forma cronológica, com base nas informações avançadas pelas autoridades e que resultaram dos interrogatórios feitos pela PJ nos últimos dias aos três suspeitos que se encontram detidos e à mãe.
O fim da vida de Jéssica foi determinado em 15 dias. Terá começado na segunda semana deste mês de junho, longe dos olhares dos vizinhos. E acabado, por contraste, esta quinta-feira, no velório da criança, marcado por confusões, gritos e insultos.
Dias 6 a 10 de junho. As bruxarias
A teia familiar onde Jéssica estava inserida não é simples — um padrasto, cinco irmãos mais velhos que não via habitualmente, uma avó materna com quem ficava aos sábados, o pai no estrangeiro, uma mudança de casa relativamente recente e pouco contacto com outras crianças. A relação de Inês, mãe de Jéssica, e de Paulo, o padrasto, começou pouco antes de mãe e filha se terem mudado para a casa onde vive o pescador e Alice, a dona da casa, com mais de 70 anos.
Cerca de nove meses depois de viverem todos juntos, a relação do casal estaria a passar por uma fase difícil e Inês terá decidido procurar ajuda. Encontrou-a a pouco mais de 700 metros da casa onde vive e que tem vista para o cemitério. Terá sido então no Beco do Pinhana que Inês teve a promessa de que ficaria tudo bem com o atual companheiro, mas a promessa tinha a forma de bruxaria e, claro, um preço. Ao Observador, fonte da PJ avança que o valor pedido rondava os 400 euros — dinheiro que Inês nunca conseguiu pagar.
Dias 11 a 14 de junho. As ameaças
A mãe de Jéssica passou a ter uma dívida que ia aumentando todos os dias, sempre que a mulher que fez as tais bruxarias ligava para fazer ameaças e dizer que, além do preço, acresciam ainda juros (que podem ter duplicado o valor). Enquanto isso acontecia, ninguém percebeu o que se passava, nem Inês terá contado a quem quer que fosse a dívida que tinha e as ameaças que estaria a receber.
Estes dias foram, aliás, iguais a tantos outros, contam os vizinhos. “Elas passavam aqui todos os dias. Às vezes, a menina dizia que tinha fome e nós pagávamos um bolo. Andava sempre a correr de um lado para o outro e a mãe dava-lhe estalos à frente de toda a gente quando ela se portava mal e fazia birras”, disse uma das vizinhas.
Setúbal. Comissão de Proteção de Crianças nega ter processo aberto sobre Jéssica
O caso de Jéssica tinha sido sinalizado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) em 2020, quando a criança tinha apenas um ano. Em causa estavam suspeitas de situação de perigo, mas uma vez que não foi dado consentimento pelos pais para a continuação do processo através da CPCJ, este organismo encaminhou o caso para o Ministério Público, que acabou por arquivar o processo. Que parou por aí e Jéssica continua a viver com a mãe, ficando aos sábados com a avó materna.
Na sequência dos alegados maus-tratos, o pai de Jéssica, que vive na Holanda e regressou a Portugal um dia depois da morte da filha, assumiu que a violência não é recente e que dura há vários anos, inclusivé da sua parte. Em entrevista à CNN, Alexandre acusou a mãe da sua filha de entregar a criança “à própria morte”, e admitiu que bateu várias vezes a Inês à frente da filha e que esta terá saído de casa por causa de violência doméstica.
Voltando ao café e aos vizinhos, há apenas um pormenor que agora leva estas pessoas a pensar que, afinal, não estava tudo bem, apesar de não terem feito denúncias. Sem saberem especificar datas, apontam o dia em que uma mulher e a filha, que viviam exatamente no sítio onde Inês pediu a bruxaria, foram até à rua do café Semáforo perguntar onde é que Inês vivia.
Dia 15 de junho. A cobrança
Depois de várias ameaças, que terão sido feitas através de mensagens e de chamadas, a mulher que terá feito as bruxarias para manter a relação, telefonou a Inês. Terá dito que queria conversar, numa tentativa de resolver a questão da dívida, sem revelar, no entanto, de que forma iria solucionar o problema.
A única indicação dada terá sido a de que a criança de três anos deveria acompanhar a mãe, até porque a agora suspeita dos crimes de homicídio, ofensas à integridade física grave, rapto e extorsão tinha uma neta da mesma idade, que poderia brincar com ela. As informações avançadas pela PJ, e que resultaram dos interrogatórios feitos nos últimos dias, revelam ainda outro detalhe: a mulher terá ainda pedido a Inês que levasse algumas roupas da filha.
Depois da chamada, Inês saiu de casa, desceu a rua e passou à frente do habitual café Semáforo. Os olhares dos vizinhos, como sempre, não deixam escapar nada e quiseram saber qual seria, desta vez, o destino da criança de três anos. “Vou para uma colónia de férias”, terá dito Jéssica. Sem desconfiança, a informação dada pela criança surpreendeu os vizinhos, já que a criança não estava inscrita em nenhuma creche e normalmente brincava sozinha.
Mãe e filha andaram cerca de dez minutos a pé e a última paragem de Jéssica neste dia não foi a tal colónia de férias que lhe tinha sido prometida, mas sim o Beco do Pinhana, onde ficava a casa da mulher que é agora suspeita de ter agredido a criança durante cinco dias. Já dentro de quatro paredes, sem pagamento e sem promessa de que a dívida seria paga, a dona da casa colocou-se à frente da porta e terá dito, acrescentou igualmente fonte da PJ, que a criança não voltaria para casa. “Ou pagas ou eu fico com a tua filha.” Inês não pagou e regressou sozinha.
Entre o dia 15 e o dia 19. Os maus-tratos
Seguiram-se, durante os quatro dias seguintes, novas ameaças. E, desta vez, a mãe de Jéssica diz ter ouvido gritos, não sabendo, no entanto, se o sofrimento que lhe chegava através das chamadas para o seu telemóvel era da sua filha ou de outra criança, se era provocado por uma birra ou por maus-tratos. Contou aos agentes que viveu assim, sem contar nada sobre o paradeiro da filha aos amigos, aos vizinhos e à pessoa com quem partilhava casa e por quem contraiu uma dívida, por medo do que podiam fazer à criança. E a si mesma.
Além destas ameaças, contadas à PJ por Inês, os vizinhos avançam com pormenores para compor a história. Com a informação de que a mãe da criança não foi, até ao momento, acusada de qualquer crime — PJ diz que terá sido “ardilosamente enganada” e só se provar negligência, falta de auxílio ou cumplicidade haverá crime –, as pessoas que vivem no bairro com vista para o cemitério assumem a própria visão de justiça e condenam moralmente a mulher.
A história que todos contam terá sido partilhada em direto nas redes sociais no passado sábado, por Inês, quando esta foi até ao bar que costuma frequentar, a poucos metros de casa, mesmo à frente da GNR. Alguns estavam no bar, outros seguiram através do Facebook. “Não sabia o que estavam a fazer à filha e estava no café, com o companheiro”, disseram ao Observador. E as acusações multiplicam-se: “Eu já lhe disse que ela é culpada”.
Os sábados eram, aliás, o único dia da semana em que Jéssica ficava com a avó e com dois dos seus irmãos, que vivem com a mãe de Inês, por decisão do tribunal. Dos seis filhos, de quatro pais diferentes, apenas Jéssica vivia com a mãe — além dos dois irmãos que estavam sob a guarda da avó, outros dois foram institucionalizados e outro vive com o pai.
Dia 20. A morte
Ao quinto dia de espera, sem saber como estava a filha, Inês terá recebido mais uma chamada. Seria a última. A informação que lhe chegou, segundo revelou, era a de que podia, finalmente, ir buscar Jéssica, porque esta teria caído de uma cadeira. A dívida ficaria então paga, mesmo sem ter sido entregue qualquer dinheiro.
Inês voltou então a fazer o mesmo caminho entre a sua casa e o Beco do Pinhana, a porta da casa onde tinha deixado a filha abriu-se, mas a criança tinha mais sinais do que aqueles que são esperados quando se cai. Inês disse ter percebido que a filha estava frágil e, apesar do calor, o seu corpo estava completamente tapado com roupas. A explicação, contou, foi-lhe logo dada e chegou em forma de nova ameaça: se contasse alguma coisa, ou se levasse a filha ao hospital, várias pessoas poderiam perder a vida.
De volta a casa, cerca de cinco horas depois de terem saído do Beco do Pinhana, Jéssica não recuperou a alegria que tantos lhe atribuíam. Piorou, a mãe não quebrou a ameaça da mulher a quem devia dinheiro, a criança terá começado a perder os sentidos e só quando a situação revelou estar no limite é que Inês pediu ajuda médica. Era tarde. O limite de Jéssica já tinha sido ultrapassado. Foi entubada, transportada para o hospital e acabou por morrer assim que deu entrada no Hospital de São Bernardo, em Setúbal.
Dia 22 de junho. Os interrogatórios
A morte da criança de três anos rapidamente começou a circular por Setúbal, pela comunicação social e a primeira hipótese divulgada dava conta de que Jéssica teria morrido depois de ter estado cinco dias com a ama. Entre especulação, a PJ conseguiu deter aquela que achava ser a ama da criança, que estava bem longe de Setúbal. A mulher fugiu para Leiria e foi encontrada esta quarta-feira dentro de uma casa abandonada.
Governo chocado com morte de criança em Setúbal sublinha importância da proteção de crianças
A mãe, o padrasto e a alegada ama, que agora se sabe que terá ficado com a criança para cobrar uma dívida, foram então levados para as instalações da PJ, onde foram ouvidos. Neste dia, saíram todos em liberdade.
Também neste dia, o corpo de Jéssica foi levado para autópsia que, ao contrário daquilo que foi anunciado inicialmente, não revelou indícios de abusos sexuais.
Dia 23 de junho. Detenções e velório
O que se passou nos últimos dias não deixa de ser tema, em qualquer canto da cidade de Setúbal. Nos cafés, nos cabeleireiros, nos restaurantes, ou nas lojas de tinta, a incompreensão é geral: “Como é que isto aconteceu?”, perguntam.
E entre várias hipóteses e histórias contadas por quem conhecia a criança de três anos, o dia começou com a PJ a avançar a detenção de três suspeitos — um homem de 58 anos e duas mulheres de 52 e 27 anos. “Os detidos serão presentes a primeiro interrogatório judicial para aplicação das medidas de coação tidas por adequadas”, lê-se no comunicado. Foi depois da detenção, aliás, que se confirmou a hipótese de que a mulher que caracterizavam como ama seria, afinal, a responsável pelas bruxarias e por tentar cobrar a dívida à mãe de Jéssica pelo bruxedo encomendado.
Tensão no velório de Jéssica. Mãe agredida e avó paterna retirada aos gritos da capela
Foi também esta quinta-feira que aconteceu o velório de Jéssica. A mãe da criança foi agredida e a avó paterna foi retirada da Capela da Anunciada aos gritos, o pai fez revelações. O funeral acontecerá na manhã desta sexta-feira.