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Foi há dez anos que a designação de unicórnio começou a ser atribuída a um grupo restrito de empresas. A responsável pela utilização desse conceito para classificar startups que atingem ou ultrapassam uma avaliação de mil milhões de dólares é Aileen Lee, fundadora da Cowboy Ventures, que investe em negócios sediados nos Estados Unidos. Na procura pelo nome ideal, ainda ponderou godzilla, mas foi unicórnio que achou “mais fácil de ler”.
Um nome que, durante uma participação na Web Summit de 2020 (que se realizou exclusivamente em formato online devido à pandemia), descreveu como “especial e mágico” e que ainda só esteve ao alcance de sete empresas com ADN português, que conseguiram chegar a avaliações multimilionárias com o ’empurrão’ de investidores nacionais e internacionais.
O grupo de unicórnios com ADN português recebeu o primeiro membro em 2015: a Farfetch. Seguiram-se a OutSystems e a Talkdesk (em 2018) e a Sword Health, a Feedzai, a Remote e a Anchorage Digital (em 2021). As sete nasceram como startups e cresceram até serem unicórnios, mas mantêm esse estatuto se as avaliações de mil milhões de dólares começarem a cair? As opiniões não são unânimes.
Uma vez unicórnio, unicórnio para sempre?
Como não existe uma definição oficial ou uma “regra” institucionalizada, analistas e fundadores de sociedades que investem em startups dividem-se. Há quem considere que os unicórnios mantêm esse estatuto mesmo quando já não têm uma avaliação multimilionária e até mesmo quando estão a declarar falência. É o caso de Gabriel Coimbra, country manager da consultora IDC Portugal, que afirma que “normalmente” as empresas que alcançam esse título mantêm-no mesmo quando começam a perder valor.
“Quando atingem a avaliação de mil milhões de dólares tornam-se unicórnio e a partir daí têm esse estatuto. Se a empresa for à falência continuamos a chamá-la de unicórnio? Não há uma regra. Normalmente, sim, dizemos que é um unicórnio”, que pode “perder valor ou crescer” até se tornar um decacórnio (se atingir os 10 mil milhões de dólares), acrescenta o também vice-presidente do grupo.
Não existe uma definição que obrigue a empresa a ter uma determinada valorização para continuar a ser chamada de unicórnio”, afirma, ainda que admita que este não deveria ser um “estatuto para o resto da vida”.
Para João Henriques, cofundador e membro da administração da gestora portuguesa de private equity Iberis Capital, o estatuto não é vitalício. “Não só podem voltar para trás como é natural que em alguns casos isso aconteça. E isso depende também da forma como as rondas de investimento estão estruturadas”, afirma. A opinião é seguida por Stephan Morais, fundador e diretor-geral da sociedade portuguesa de capital de risco Indico Capital Partners, que, ao contrário da Iberis, investe em dois unicórnios, a Remote e a Anchorage Digital.
Para Stephan Morais “o estatuto depende da avaliação da última ronda de investimento da empresa”. “Não é nenhuma definição de dicionário ou financeira. É uma questão de cultura desta indústria: tem de ter uma avaliação de mil milhões de dólares” para ser um unicórnio. No último ano,”o número de unicórnios desceu significativamente”, porque “uns faliram e outros tiveram rondas de investimento com avaliações muito mais baixas”, diz, embora não acredite que este seja o caso dos que têm ADN português.
Poderá haver, ainda assim, uma exceção: a Farfetch, porque “se costuma dizer que isto dos unicórnios só se aplica a empresas privadas [não cotadas]”, lembra o fundador da Indico Capital Partners. A plataforma de moda de luxo é cotada desde 2018, tendo neste momento um valor de mercado de cerca de 612 milhões de dólares, de acordo com os dados disponíveis no MarketWatch.
A Baillie Gifford & Co, empresa de gestão de investimentos que, segundo dados da CNN, é uma das maiores acionistas da Farfetch, refere ao Observador que como a plataforma “já não é privada, mas cotada, já não pode ser descrita como unicórnio”. O Observador questionou a Farfetch para perceber se ainda se considera um unicórnio, mas até ao momento não obteve qualquer resposta.
Farfetch passou de lucro a prejuízo no segundo trimestre do ano
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A Farfetch registou um prejuízo de 218,3 milhões de dólares no segundo trimestre deste ano, um valor que contrasta com os lucros de 67,7 milhões de dólares registados no período homólogo.
Entre abril e junho deste ano, as receitas da empresa caíram 1,3% para 572 milhões de dólares, face aos mesmos três meses de 2022. Por outro lado, a plataforma registou um recorde de consumidores ativos de 4,1 milhões, um aumento de 7% em relação ao ano anterior.
Os resultados do terceiro trimestre do 2023 da Farfetch ainda não são conhecidos.
Os unicórnios com ADN português mantêm o estatuto?
Como a Farfetch é a única que está cotada, o valor atual da OutSystems, Sword Health, Feedzai, Remote, Anchorage Digital e Talkdesk, que em setembro foi notícia por ter feito uma vaga de despedimentos que afetou mais de 100 trabalhadores, não é conhecido. O Observador questionou empresas, como a KKR e a Viking Global, que investem nesses unicórnios para perceber se ainda mantêm o estatuto e a avaliação de mil milhões de dólares, mas não obteve respostas.
Stephan Morais, diretor-geral de uma sociedade que tem no seu portfólio dois unicórnios, a Remote e a Anchorage Digital, afirma que “nenhum dos unicórnios portugueses teve uma ronda de investimento que o avaliasse abaixo de mil milhões de dólares”, o que o leva a pensar que “se calhar”, a Farfetch é a única (“e é porque está cotada”) que já não tem esse título.
Também da Indico Capital Partners, a investidora e sócia Cristina Fonseca disse, no início deste ano, que se acredita que “as valorizações reais das empresas unicórnio sejam metade ou, na maioria dos casos, apenas um quarto” dos mil milhões de dólares que chegaram a valer. “Isto são dados não oficiais de outros investidores e associações, mas depende muito do setor”, afirmou, no podcast O CEO é o limite, do jornal Expresso, acrescentando que “o problema é que o ecossistema está muito interligado” e “a decisão de uma empresa afeta todas as outras”. O Observador tentou chegar à fala com a também cofundadora da Talkdesk (que deixou a empresa em 2016, mas que na altura disse ao Dinheiro Vivo que continuaria a ser sócia) para perceber se o valor de mercado dessas startups tem vindo a baixar, contudo tal não foi possível.
No entender de Gabriel Coimbra, da IDC Portugal, é “difícil” responder se os unicórnios com ADN português têm vindo a perder valor de mercado até porque não possui “dados concretos sobre a valorização” dessas empresas. Considerando que “é um bocado forte dizer que os unicórnios com ADN português se desvalorizaram nos últimos anos”, relembra que “não há uma identidade que certifique as startups” como tendo esse estatuto ou uma determinada avaliação.
Se 2021 foi “o melhor ano de sempre em termos de financiamento de startups e unicórnios com ADN português”, no ano passado registou-se “uma quebra”. E a IDC prevê, segundo o country manager, que este ano “haja uma nova quebra no investimento, no capital levantado pelas startups portuguesas”. “O que aconteceu em 2021 foi um levantamento de capital de tal ordem que em 2022 houve uma quebra, mas chegámos perto dos mil milhões de euros, o que é um valor muito significativo. Em 2023 vamos ter valores bastante inferiores”. O relatório será apresentado pela consultora na próxima semana, à margem da Web Summit.
No estudo do ano passado, o Bulding a Scale Up Nation, realizado pela IDC para a Startup Portugal, concluiu-se que o ecossistema de startups português levantou 710 milhões de euros em 2022, quase metade dos cerca de 1,5 mil milhões de 2021. Em 2022, entre os considerados 100 melhores países no ecossistema empreendedor, Portugal ocupava a 28.ª posição, menos uma do que no ano anterior. O documento detalhava ainda que cerca de 31% dos empreendedores não considerava Portugal um bom destino para começar uma empresa devido, entre outros motivos, aos impostos.
Quais serão as próximas empresas a entrar no ‘mundo’ dos unicórnios?
Há dois anos, o relatório Startup & Entrepreneurial Ecosystem (da IDC, Startup Portugal e Portugal Digital) indicava que mais oito empresas poderiam estar a “alinhar-se” para alcançar o estatuto de unicórnios — Aptoide, DefinedCrowd (agora Defined.ai), Jscrambler, Sensei, Uniplaces, Veniam, Unbabel e Stratio. Até ao momento, nenhuma alcançou essa marca e Gabriel Coimbra prefere agora “não mencionar nomes” que aí podem chegar no futuro, salientando apenas que “há um crescimento no efetivo do número de startups em Portugal”.
Quem também opta por não mencionar nomes de empresas que podem chegar a uma avaliação multimilionária nos próximos tempos, uma vez que acredita que “não é correto ter filhos preferidos”, é Stephan Morais. “Nunca dizemos quais achamos que vão ser unicórnios ou não. Há empresas que obviamente estão mais próximas, porque são maiores, já levantaram mais dinheiro… mas ainda assim é muitíssimo difícil dizer”, afirma.
Que startups são estas que a IDC e a Startup Portugal previam que chegariam a unicórnios?
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- Aptoide: opera uma loja de aplicações móveis paralela à da Google, rivalizando com a Play Store, contando com mais de 250 milhões de utilizadores. Em 2022 recebeu um investimento de 12 milhões de dólares.
- DefinedCrowd: desde o final de 2021 que passou a designar-se Defined.ai, um rebranding para refletir o trabalho na área da inteligência artificial. Coordena um projeto (Accelerat.ai) que tem como objetivo ensinar português a assistentes virtuais.
- Jscrambler: uma empresa de cibersegurança que tem soluções que permitem que aplicações JavaScript se tornem “autodefensivas e resistentes a adulterações e engenharia reserva”, segundo uma descrição feita pela Portugal Ventures.
- Sensei: tem uma tecnologia para supermercados autónomos, dizendo adeus a caixas, filas e processos de digitalização de códigos de barras. No ano passado entrou no mercado brasileiro e esta semana chegou ao italiano.
- Uniplaces: plataforma de arrendamento a estudantes que, durante a pandemia, devido à quebra de receitas, teve de colocar “a maioria dos funcionários em lay-off“, de acordo com o Dinheiro Vivo.
- Veniam: desenvolvia tecnologia que transformava carros em pontos de acesso à internet para outros dispositivos. Há um ano, a israelita Nexar anunciou que a iria comprar para “transformar veículos em motores de dados”.
- Unbabel: responsável por uma plataforma de “language operations”, em que alia as traduções automáticas por inteligência artificial à verificação humana para conseguir fornecer traduções de forma mais rápida.
- Stratio: empresa de Coimbra que utiliza sensores instalados em camiões e autocarros para prever idas à oficina. Há dois anos captou um investimento de 12 milhões de dólares.
Ao contrário de Stephan Morais, João Henriques não se inibe de apontar as empresas que, num portefólio com Unbabel, Sensei, Defined.ai ou Tekever, podem alcançar esse título. Afinal, sem unicórnios no leque de startups em que investe, a Iberis Capital aposta em “estar presente na próxima geração”, onde “há mais potencial de rentabilidade”.
Para o cofundador da Iberis Capital “há várias [empresas] com potencial”, mas a Tekever, que forneceu drones às tropas ucranianas para apoiar operações terrestres e marítimas, parece ser a que está mais próximo. “Se não for [unicórnio] nesta ronda que está a fechar agora, vai ser na próxima. Não vejo outro cenário”. Já a Unbabel, que também faz parte do portefólio da Indico Capital Partners, “tem um caminho claro para chegar lá”, estando atualmente também a fechar uma nova ronda de financiamento.
Questionado, durante um encontro com jornalistas, sobre qual das suas participadas fará um IPO (Oferta Pública Inicial), João Henriques voltou a apontar a Tekever, mas numa “grande praça internacional, Londres ou Nova Iorque”. Se há uns meses essa empresa foi notícia por fornecer drones a Kiev através do Fundo Internacional para a Ucrânia, há uns anos as atenções focavam-se numa decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Foi em setembro de 2018 que esse tribunal suspendeu Pedro Sinogas da liderança da Tekever, concluindo que o antigo CEO e fundador do grupo usava, de acordo com o Negócios sem o “conhecimento dos restantes sócios”, Ricardo Mendes e Vítor Cristina, “as contas bancárias das sociedades que administrava como sendo suas, delas dispondo livremente para despesas e gastos de caráter exclusivamente pessoal, como sendo atividades de mergulho, despesas relativas a um barco, férias, aquisição de obras de arte, despesas de formação pessoal e aquisição de um automóvel de luxo”.
Ao longo de 15 meses, entre 2018 e 2019, foram vários os processos judiciais que culminaram com decisões favoráveis à Tekever, sendo que a empresa conseguiu que os bens de Pedro Sinogas — que perdeu todos os cargos, tendo depois alegadamente acusado os outros sócios de chantagem — fossem arrestados, incluindo a participação acionista maioritária (de 52%) que tinha no grupo.