Índice
Índice
Uma internacionalização com resultados desastrosos ajudou a destapar uma outra série de problemas na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Em poucos anos, a instituição passou de uma situação de aparente abundância para um quadro de aperto financeiro e risco de rutura de tesouraria. Fica um guião com dez respostas sobre a próxima comissão parlamentar de inquérito (CPI) — a segunda desta legislatura — que toma posse esta quarta-feira.
Qual a principal razão para esta comissão de inquérito?
O facto que está diretamente na origem deste inquérito é a estratégia de internacionalização da Santa Casa, que foi aprovada quando Ana Mendes Godinho era ministra do Trabalho e da Segurança Social e desenvolvida a partir de 2020 pela mesa liderada pelo provedor Edmundo Martinho. Foi essa mesa que deu os passos decisivos com a criação da Santa Casa Global.
A expansão internacional devia apontar aos países africanos de língua portuguesa (tirando partido da marca e reputação da SCML), mas acabou por apostar em força noutros destinos (ainda que de língua portuguesa) e o grande investimento feito no Brasil trouxe maus resultados e muitas dúvidas. A acumulação de perdas e problemas operacionais que travaram os projetos previstos e consumiram fundos da Santa Casa sem aparente racionalidade ou retorno, sobretudo no Brasil, onde se admitem perdas de 50 milhões de euros, são a causa imediata desta iniciativa.
O que correu mal na internacionalização?
O racional por trás da estratégia de internacionalização da Santa Casa, validada por dois ministros — Vieira da Silva e Ana Mendes Godinho — era a promoção de fontes de receitas que permitissem compensar a esperada quebra nos jogos sociais, consequência da luz verde ao jogo online dada em 2015.
A pandemia e o confinamento aceleraram a perda prevista de receitas na Santa Casa e comprometeram o arranque de alguns dos projetos internacionais. Mas o que se sabe da forma como esses projetos foram geridos levanta muitas dúvidas. Por um lado, não foram pedidas as autorizações exigidas por Ana Mendes Godinho quando aprovou a estratégia para cada investimento feito. O dinheiro começou a sair da Santa Casa para o Brasil sem grande controlo interno ou externo, nem garantias de retorno. A auditoria forense pedida pela gestão da provedora Ana Jorge aponta a para a existência de vários processos irregulares e serviu de fundamento para afastar os dois principais gestores da área internacional que, por sua vez, contestam estas conclusões.
Quem pediu a CPI e quem vai liderar?
As propostas para a constituição da comissão vieram do Chega, da Iniciativa Liberal (IL) e do Bloco de Esquerda, embora o âmbito e objeto não fossem idênticos. Presidida pelo deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro, terá sete deputados do PSD e do PS, quatro do Chega e dois da IL. Tanto o Bloco como PCP, Livre, CDS e PAN terão, cada um, um deputado. A primeira vice-presidência da Comissão caberá ao Chega e a segunda ao PSD.
O que se pretende com esta comissão de inquérito?
Chama-se “comissão parlamentar de inquérito à gestão estratégica e financeira e à tutela política da SCML“. Segundo o despacho que a cria, vai abranger as “decisões de gestão estratégica e financeira” da SCML, incluindo associadas ou subsidiárias, “que possam ter contribuído para o desequilíbrio financeiro” da instituição.
A CPI vai também procurar “avaliar e esclarecer” as decisões das várias mesas em funções, dos provedores e membros das administrações das empresas subsidiárias, focando-se na diversificação das fontes de financiamento, avaliação do risco, apoio jurídico e financeiro aos negócios efetuados, incluindo no que toca à internacionalização, novas áreas de negócio no âmbito do jogo ou compra de novos equipamentos, e “apurar responsabilidades políticas, contratuais, legais e financeiras” relativas à atual situação da SCML.
Qual o período alvo de escrutínio e quem será escrutinado?
Os deputados querem recuar a 2011, o que representa um longo período temporal de 13 anos que abrange quatro provedores — Pedro Santana Lopes (entre 2011 e 2016), Edmundo Martinho (entre 2017 e 2023), Ana Jorge (entre 2023/2024) e o atual provedor, Paulo Sousa. Mas a comissão de inquérito também vai avaliar o papel da tutela, o que passa por avaliar a “definição das orientações gerais de gestão e de fiscalização” da SCML por parte da tutela entre 2011 e 2024 e clarificar a intervenção dos governos desde 2011, no que respeita às autorizações de investimentos, partilha de informação e controlo jurídico e financeiro.
Estão em causa as atuações de cinco governos — um de Pedro Passos Coelho (2011-2015), três de António Costa (final de 2015 a 2023) e o atual de Luís Montenegro. Em foco vai estar, sobretudo, o acompanhamento da tutela, que é o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, mas o ministério das Finanças também poderá ser invocado na medida em que lhe compete nomear o presidente do conselho de auditoria da Santa Casa.
Por que recua a comissão de inquérito a 2011?
Provavelmente porque é a partir dessa data que começou a sentir-se o impacto financeiro da transferência de vários equipamentos de apoio social (creches e lares) do Estado para a gestão da Santa Casa, o que resultou num aumento de funcionários de chefias e de despesa. Foi também o primeiro ano do mandato e meio feito por Pedro Santana Lopes.
Que outros motivos estão por trás desta CPI?
A forma como Ana Jorge procurou travar a fundo os negócios internacionais e a decisão do novo Governo de demitir a provedora nomeada pelo anterior Executivo, com críticas duras à gestão feita da crise da Santa Casa, também pesam nesta comissão de inquérito.
Não é claro qual tem sido o processo de “desinvestimento” adotado pela atual tutela nem quais as consequências, tendo em conta as quebras contratuais e eventuais indemnizações em curso. A expansão internacional e a gestão interna e política deste dossiê levaram os partidos a chamar vários responsáveis, atuais e antigos, ao Parlamento no início do atual mandato, com testemunhos que se contradizem, o que influenciou igualmente as propostas de comissão de inquérito.
Há outros temas relacionados com a gestão da Santa Casa, como os investimentos na área da saúde onde se registam perdas crónicas. O uso do balanço da Santa Casa como ‘bombeiro de serviço’ para resolver crises noutras áreas será certamente avaliado.
O último exemplo foi a compra da maioria da sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha, concretizada em plena pandemia e já com a instituição a sentir queda da liquidez. No radar estarão igualmente as decisões tomadas sobre o quadro de pessoal, incluindo aumentos salariais, contratação e criação de chefias, despedimentos e rescisões, a gestão do património imobiliário e a política de apoios e subvenções ao desporto e cultura. Para tudo isto, a CPI vai analisar a documentação “relevante”, como relatórios e contas, atas, contratos, relatórios de progresso, auditorias, análises de risco, comunicações, entre outros.
O plano de reestruturação da Santa Casa, sobre o qual ainda pouco se sabe, mas que tem como um dos objetivos reduzir os custos com pessoal, também será tema, bem como o regresso da instituição ao caminho da sustentabilidade financeira.
Qual é a duração prevista?
Segundo o despacho assinado pelo presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, a comissão funcionará “pelo prazo mais curto que permita cumprir os seus objetivos, não ultrapassando os 180 dias”. Mas a regra é as comissões de inquérito serem prolongadas no tempo, sobretudo quando o seu funcionamento pode ser interrompido pela discussão do Orçamento do Estado, como é o caso.
Quem deverá ser ouvido?
A CPI irá ouvir certamente as pessoas que já foram chamadas este ano à comissão parlamentar do Trabalho e Segurança Social. Como os antigos provedores Edmundo Martinho e Ana Jorge ou os diretores da Santa Casa Global que estiveram à frente do processo de internacionalização — Ricardo Gonçalves e Francisco Pessoa Costa. Ana Vitória Azevedo, a vice-provedora que se demitiu antes da exoneração da mesa de Ana Jorge e que já deu explicações aos deputados, deverá ser igualmente chamada. Tal como João Correia, ex-vogal que deu uma entrevista a justificar algumas das opções tomadas. Os deputados vão provavelmente chamar também mais ex-vogais da Santa Casa (houve mais demissões antecipadas e não explicadas — João Pedro Correia saiu em 2021 por alegadas divergências com o então provedor).
Os membros das mesas de Edmundo Martinho e Ana Jorge são presenças certas, tal como Pedro Santana Lopes, que foi provedor durante seis anos. Os ministros que tiveram a tutela da Segurança Social — Pedro Mota Soares, Vieira da Silva, Ana Mendes Godinho e Rosário Palma Ramalho deverão estar na lista. O novo provedor, Paulo Sousa, será certamente chamado, até para explicar a reestruturação. E o presidente do conselho de auditoria, que desde 2018 é Vítor Braz, à data Inspetor-geral de Finanças, também será provavelmente chamado. Tal como o antecessor.
Que contradições e dúvidas ficaram das audições no parlamento?
A narrativa sobre a internacionalização muda consoante os testemunhos. Para o ex-provedor que a lançou, Edmundo Martinho, e os gestores que a executaram, era preciso dar tempo ao tempo para que os investimentos dessem frutos. O que não aconteceu. Estes protagonistas desvalorizaram as perdas acumuladas e as transferências feitas pela Santa Casa sem retorno e acusaram a provedora Ana Jorge de ter abandonado de forma precipitada as operações com consequências negativas para a instituição.
Já a ex-ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, não tem dúvidas de que a mesa de Edmundo Martinho ultrapassou o mandato que lhe foi dado quando aprovou a internacionalização. Ana Mendes Godinho tem dito que apenas deu autorização à constituição da Santa Casa Global, com um capital social de cinco milhões de euros, e que a partir daí nenhuma decisão de investimento lhe foi comunicada. Diz, mesmo, que lhe foi prometida uma due diligence à compra da MCE, a empresa que venceu o concurso para explorar a lotaria no estado do Rio de Janeiro, mas que não a recebeu. E que só mais tarde soube que a compra tinha sido feita.
Edmundo Martinho rejeita a acusação de ter tomado decisões que comprometeram financeiramente a Santa Casa e argumenta que os investimentos (os valores previstos, não as operações concretas) estavam nos orçamentos e planos de atividades que a tutela aprovou. Martinho foi afastado da gestão da SCML em 2023, antes do fim do mandato, depois de Ana Mendes Godinho ter recebido um parecer do conselho de auditoria que sinalizou “pela primeira vez preocupação com a sustentabilidade financeira e o processo de internacionalização”, explicou a ex-ministra em maio no Parlamento.
A sucessora de Edmundo Martinho, Ana Jorge, pediu uma auditoria forense à expansão internacional e procurou desligar o interruptor que enviava dinheiro para a internacionalização, numa altura em que a Santa Casa sentia já dificuldades financeiras. Os resultados desta auditoria apontam para irregularidades (desconformidades) nos processos, projetos sem fundamento, criação de uma teia opaca de empresas, falhas de controlo e compliance prévia, gastos não justificados e contas secretas, entre outros. E até terá encontrado possíveis ligações financeiras ao crime organizado no Brasil que ficaram de fora da auditoria porque não foi encontrada documentação sobre alegados pagamentos.
Empresa controlada pela Santa Casa no Brasil tinha várias contas bancárias “secretas”
A estratégia de saída rápida do Brasil, mercado onde se concentram as falhas e irregularidades, mereceu duras críticas da nova ministra da Segurança Social, Rosário Palma Ramalho, que imputa mais perdas a esta abordagem.
Rosário Palma Ramalho foi especialmente dura nas justificações para exonerar a mesa presidida por Ana Jorge, que acusou de falta de colaboração, ocultação de informação e ter falhado a apresentação de um plano de reestruturação quantificado e fundamentado. “A provedora encontrou um cancro financeiro, mas tratou-o com paracetamol”, atirou.
Ana Jorge respondeu, revelando uma lista de mais de 30 documentos exigidos de um dia para o outro, e deixando no ar a ideia de que a ministra poderia defender a realização de despedimentos na Santa Casa. E exigiu que Palma Ramalho provasse a acusação feita à anterior mesa de ter tirado proveitos próprios da instituição.
Ainda que sem a gravidade e dimensão da expansão internacional, ficou por explicar o grau de envolvimento do filho de Edmundo Martinho na decisão de apostar no negócio dos NFT. Segundo foi noticiado em maio, o filho trabalhava na empresa que foi escolhida pela Santa Casa para prestar o serviço de conversão das criptomoedas em euros. No Parlamento, Edmundo Martinho disse que a empresa era a única autorizada na altura a fazer essas conversões e que, “coincidência das coincidências”, era onde o filho trabalhava.
Da audição da vice-provedora que se demitiu — Ana Vitória Azevedo — surgiu ainda a dúvida sobre quem na hierarquia da mesa da Santa Casa tinha a responsabilidade por acompanhar mais de perto a área internacional.