Ho ho ho Merry Christmas. A proximidade do Natal obriga-nos a dar um guino ao telemóvel. Daí a chamada intercontinental para o outro lado do Atlântico, onde somos recebidos à grande e à colombiana. Com três Mundiais e seis Copas América, o número 10 por excelência da seleção da Colômbia fala sem parar. Chama-se Carlos Valderrama e é comparado com o holandês Ruud Gullit. Pelo toque de bola. E pelo cabelo, por supuesto. Señoras y señores, ei-lo.
Heyyyy, todo bien?
Por supuesto. Quien habla?
Rui Miguel Tovar. Hablo de Lisboa, Portugal.
Ayyyy, que bien. Dime.
Antes de mais, boas festas.
Navidad, sí, muy lindo.
O que significa para ti?
Tudo e mais alguma coisa. O meu pai ofereceu-me uma bola de futebol no Natal e, mira, nunca mais parei.
E o teu penteado também foi no Natal?
Jajajajaja, isso já não. Um dia, quando era “muy pelado” [muito novo], deixei crescer o cabelo e gostei do que vi. Como só tinha um pente com três trinches.
Quê?
Trinches.
O que é isso?
Como te explico? Um pente tem trinches.
Ahhhh, dientes.
Dientes?
Sí, jajajaja, tiene logica.
Muy bien, o meu pente tem três trinches e o penteado começou a ficar assim. Eu gostei logo dos movimentos do meu cabelo, só que a minha mãe insistia em levar-me ao cabeleireiro. Quando se apercebeu realmente que eu gostava daquele cabelo, nunca mais sugeriu nada. Apenas respeitou a minha decisão. Os meus pais são assim, ensinaram-me bem.
Ainda bem, é mais de meio caminho andado para o sucesso.
De verdad que sí, sin duda.
E esse corte (chamemos-lhe assim, vá), não é complicado?
Ya. No início, perdia uma boa meia-hora à frente do espelho, mas agora é bem fácil. Levanto-me, um pouco de água, champô e, pum, já está.
Voilá, um corte à Valderrama. Quantos colombianos já te imitaram?
É tão difícil como matemática aplicada. Entre 1990 e 1994, quando a seleção colombiana deu que falar, porque foi aos Mundiais de Itália e dos EUA, via muitos cortes parecidos com o meu, em quase todos os pontos do país. Tanto crianças como adultos.
E é um corte bom para cabecear bolas?
Próxima pergunta.
Então?
Jajaja, a verdade é que nunca fui um cabeceador por excelência. Usava a cabeça para outros fins.
Lembro-me bem. Aquele teu passe para o golo à Alemanha ainda me está na cabeça. E só tinha 13 anos.
A sério?
Toda a jogada foi brilhante. Aliás, o próprio jogo é uma contradição do futebol.
Então?
A Alemanha marca o 1-0 aos 88′ e ninguém, ninguém mesmo, nem o colombiano mais ousado, pensa no empate. E vocês fazem o 1-1 aos 90 e muitos.
90 mais um. Foi uma jogada bem trabalhada, es verdad.
Tu recebeste no meio-campo, enganaste dois alemães, tabelaste e assististe o Rincón.
Que mete por entre as pernas do Illgner.
Glorioso.
O Beckenbauer, fulo. Já não contava perder pontos na fase de grupos.
A verdade é que foi campeão mundial daí a duas semanas.
Jajajaja, verdad.
Por essa altura, já a Colômbia estava em casa.
Por cierto. Fomos eliminados pelos Camarões.
Aquele golo do Milla.
Qual deles?
O segundo.
Ahhhh, sim, sim.
O do roubo de bola ao Higuita.
Pois.
Como é que era o ambiente no balneário?
Ninguém incomodou o Higuita. As pessoas são capazes de ser insensíveis ou então de não perceber, mas a pessoa que erra é aquela que fica mais em baixo. Por isso, não vale muito a pena estar a falar-lhe do erro, não é? No balneário, todos demos-lhe força. É o Higuita, carajo? Quantas vezes é que ele nos salvou? Um número infinito. Quanto vezes é que nos ajudou? A nós, colombianos? Lembro-me de uma final da Libertadores em que ele defendeu três penáltis. Lembro-me de ter assumido a marcação do penálti do 1-0 à Venezuela em plena Copa América, no Brasil. Ganhámos 4-2. E ele depois foi peça-chave num 0-0 com o Brasil, em Salvador. E também me lembro daquele gesto técnico em Wembley.
Ah, o escorpião.
Isso mesmo, vês? Tu que és de Portugal reconheces esse lance de imediato e chamas-lhe pelo nome próprio. René [Higuita] é assim, um misto de classe e atrevimento. Foi um guarda-redes à frente no seu tempo. Dessa vez, com os Camarões, o Milla aproveitou e saiu-se bem.
Esse é o teu primeiro Mundial.
É o nosso primeiro Mundial, o da Colômbia. Foi uma sensação única, a noite da qualificação. Sabes onde?
Ni idea.
Israel. Empatámos 0-0 em Ramat Gan, depois de termos ganho 1-0 em casa. Nessa noite, joguei enormidades. Posso dizer isso sem medo. Já vi e revi o jogo inteiro. Assumi o jogo como um desafio muito pessoal. Quer dizer, a Colômbia só tinha ido a um Mundial, há mais de 30 anos [em 1962], e o apuramento foi algo de mágico.
É o início daquela geração.
Siiiiiiii.
Que dá um baile descomunal à Argentina na qualificação.
Esse 5-0 em 1993 é um jogo formidável. Para nós, jogadores. Para nós, povo colombiano. Marcámos um, dois e pensámos ‘está ganho’. Depois, aconteceu aquilo. Uma manita. Em Buenos Aires. E à Argentina, que não perdia em casa há 35 jogos. Incrível. O mais incrível foi ouvir os olés do público argentino a cada toque nosso na bola. Inesquecível. Eles é que começaram a picar-nos.
Então?
Na noite anterior, fariam tudo, tudo, tudo à porta do hotel para nos impedir de dormir. E conseguiram. Na manhã seguinte, só se viam sonâmbulos ao pequeno-almoço.
E?
Não ficou por aqui. A caminho do estádio, partiram-nos o vidro do autocarro. Quando chegámos ao estádio, dissemos ‘hoy ganamos’. Assim foi. Por cinco é que ninguém esperava, jajajaja.
https://www.youtube.com/watch?v=HM9BCnqTNlw
Se esse foi o teu melhor momento, qual foi o pior?
A morte do Escobar [defesa colombiano assassinado em Medellín, à porta de um bar, dias depois da eliminação da Colômbia no Mundial-94, confirmada com um autogolo de Escobar frente aos EUA]. No futebol,perde-se ou ganha-se, mas a Andrés não o vamos ver mais. Mataram-no. Quando soube da notícia, nem sequer acreditei. Fiquei paralisado, depois devastado. Foi difícil, muito difícil, ultrapassar esse momento.
Tens 11 clubes na carreira. Pior, com 12, só o Abel Xavier.
Peor? Peor no, mejor. Tens de ver as coisas pelo lado positivo. Siempre.
Pronto, mejor, com 12, só o Abel Xavier. Conheces?
El portugués?
Ya.
Claro que conheço. Lembro-me da sua melena, também é bem engraçada. Mas a minha é mais bonita, hein?
Gostos não se discutem.
Pois não, por isso é que insisto: a minha é mais bonita, tem mais style.
Jajajajaja. Desses 11 clubes, alguns são europeus. Como o Montpellier, em França.
Os primeiros seis meses foram complicados, pelo futebol mais rápido e pela língua. Custou-me a adaptar mas tive dois amigos que me ajudaram bastante.
Quem?
A ver se os conheces.
Cuidado, duvido que conheça alguém do Montpellier.
Vou dizer com cuidado, não te preocupes: Bla-nc e Can-to-na.
Nãããããã.
Conheces?
Pffffff, que pergunta.
Ganhámos a Taça de França, em 1990.
Como foi o jogo?
Tranquilo, viu-o da bancada.
Então?
Fui expulso na meia-final, em Saint-Étienne, onde ganhámos 1-0, golo do Éric.
E a final?
Zero-zero aos 90 minutos, depois prolongamento. Marcámos o 1-0, o 2-0 e o Ginola do Racing [Paris] reduz. Controlámos a vantagem e foi uma fiesta memorável. O Montpellier não ganhava nada desde os anos 20.
O Montpellier apura-se para a Taça das Taças e joga com o Benfica?
Nããããão, a eliminatória com o Benfica é anterior à conquista da Taça de França, é em 1988.
E jogaste em Lisboa?
Não, só em Montpellier, onde perdemos 3-0. Aí, o Montpellier tinha o Milla na frente em vez do Cantona.
O Milla, camaronês?
Esse mesmo.
O mundo dá voltas e mais voltas.
Verdad.
De Montpellier saltaste para Valladolid, porquê?
Conquistada a França, sonhava em conquistar mais um país do futebol europeu
E?
Ou Espanha ou Itália. Quando apareceu o convite do Valladolid, treinado pelo Maturana [selecionador da Colômbia em 1990] e com Álvarez mais Higuita, meus companheiros de seleção, estava animadíssimo e julgava que íamos triunfar na justa medida do que é o Valladolid, claro. Mas o presidente que nos contratou saiu um mês depois e a equipa foi-se abaixo.
Por falar em ir abaixo, o que aconteceu com Michel no famoso Real-Valladolid?
Tu também? Foi uma falta de respeito, isso sim. O Michel não devia ter feito aquilo. Durante anos e anos, o meu pai ouviu piadas dos amigos sobre o assunto. Todos os dias, mesmo. É absurdo, o incómodo.
Mas o que se passou em concreto com o Michel?
Foi um Madrid-Valladolid, como disseste. Era canto e ele apalpa-me los huevos [os testículos]. Um, dois, três toques. Três toques. E de propósito. Tu imaginas? Se te fizessem a ti, que tal?
…
Ao primeiro toque, não disse nada. Ao segundo, também não. Ao terceiro, passei-me: “És maricas ou quê?” Ele queria provocar-me e a verdade é que conseguiu. Como as pessoas gostam mais de comentar esse tipo de coisas do que futebol propriamente dito, essa imagem ficou colada a mim.
O que é o futebol propriamente dito?
Mira, el Brasil 1982.
Todos me falam dessa seleção.
É a melhor equipa que vi.
E nem chegou às meias-finais.
Baaah, é dessas fatalidades do futebol. Quando quer, o futebol é cruel. Sem desprezar a Itália, atención, só que esse Brasil jogava à bola. De verdad. A melhor equipa em talento por metro quadrado. Jogavam de olhos fechados. Há pouco falámos da eliminatória europeia entre Montpellier e Benfica, sí?
Sim, verdad.
Nesse Benfica, havia o Valdo. Que pedazo de jogador. Lá está, um brasileiro. Ele era magia pura, cada toque na bola era poesia.
Grande elogio, de 10 para 10.
Dez mais dez dá vinte. Valdo é gente fina, 20 puntos como pessoa.
Aí na Colômbia é assim?
Ya, 20 puntos é gente boa. Como Maradona. Comigo, sempre impecável. Convidou-me para a festa de despedida dele e tudo. Además, estava sempre a elogiar-me. Uma vez, disse aos jornalistas que se eu e ele jogássemos na mesma equipa, éramos invencíveis.
Alguma vez jogaste com ele?
Com, não. Só contra.
Quando?
Copa América 1987, em Buenos Aires. Ganhámos 2-1 à Argentina para o 3.º e 4.º lugares.
E tu não foste eleito o melhor desse torneio?
Jajajajaja, es verdad.
E à frente do Maradona?
Tirei uma foto com ele, emoldurei-a e está lá em casa, à vista de todos.