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Quase no meio do nada, na aldeia de Tagarro, em Alcoentre, não se vê ninguém nas ruas. A localidade é pequena e a noite de sábado é passada no café principal, o Calhambeque. A fuga de cinco reclusos da cadeia de alta segurança de Vale de Judeus, tema do dia, faz-se ouvir ao balcão: “Uma escada, foram buscar uma escada para fugir!”, troça alguém entre goles de cerveja. É um tema como qualquer outro, com a diferença que tudo aconteceu a três quilómetros de distância. Enquanto os fugitivos seguem a monte, ali reina a tranquilidade e, na prisão, dois militares da GNR continuam a guardar a escada verde usada na fuga dessa manhã.
Quem passasse pela entrada principal do estabelecimento prisional de Vale de Judeus, em Alcoentre, não suspeitava que na manhã desse dia cinco prisioneiros tivessem executado a fuga perfeita. Isto porque tudo aconteceu na ponta oposta: nas traseiras da prisão. Ajudados por homens treinados, os reclusos conseguiram escapar-se deste estabelecimento de alta segurança sem deixar rasto por volta das 9h. Poucas horas depois, as autoridades estavam em força no local, mas pelas 19h só restavam dois militares da GNR.
Os homens tinham uma missão simples: guardar a longa escada verde usada para sobrepor a barreira de betão de cerca de 8 metros. A esta hora o principal meio de fuga já estava deitado, encostado à parede. Mas ainda assim o acesso à parte traseira do estabelecimento (pelo exterior) era limitado, com a GNR a controlar todas as deslocações.
A prisão de Vale de Judeus fica no meio do nada. Para entrar no recinto há apenas uma estrada e à volta existe apenas terra batida e vegetação. O terreno é acidentado e minado de silvas que facilmente picam as pernas de qualquer um. Mas nada disto atrasou os cinco homens. Nem mesmo a rede com arame farpado que delimita o espaço.
Corte na rede possibilitou entrada da escada
Quase no final deste que foi um longo dia para as autoridades, o ambiente estava mais tenso que nunca. Todos os olhares trocados com guardas prisionais fardados ou pessoas que saíssem da prisão diziam, indiretamente, que pessoas estranhas à área não eram bem-vindas.
Um desses olhares veio de dois homens, que recusaram qualquer contacto. Surgiram, à civil, deram a volta ao recinto e deslocaram-se até à zona onde tudo aconteceu. Eram conhecidos dos guardas prisionais que por volta dessa hora, quando o sol se punha, passavam vistoria ao local. Quando os três homens se cruzam ouvem-se detalhes da fuga: os indivíduos que ajudaram os cinco prisioneiros (e que poderão ser antigos militares, segundo fonte do Expresso) cortaram a vedação da prisão.
Depois de cortarem a rede, levantaram-na e usaram essa porta improvisada para fazer passar a escada verde. Pelas 20h já o buraco tinha sido remendado, mas o trabalho tinha de continuar. Durante quase trinta minutos, os dois homens à civil moveram-se entre a alta vegetação que circunda o estabelecimento em busca de algo — que até agora continua um mistério.
Os fugitivos terão seguido viagem num Mercedes que estava estacionado perto da prisão. Mas não sobrou um só vestígio a olho nu de que esta viatura tenha estado parada à espera dos prisioneiros.
“Já não aparecem. A esta hora está cada um em seu país”
Vale de Judeus está num local isolado e um quanto mal iluminado, mas a poucos metros existe um bairro com casas em tons avermelhados. Nos anos 90, era aqui que viviam os guardas prisionais e as suas famílias, contou ao Observador um local. Foi construída uma igreja e uma escola, vestígios que agora mal se encontram. O espaço está praticamente abandonado atualmente. Ainda há guardas prisionais a viver ali, mas apenas uma minoria. Há carros abandonados, casas com portas abertas e vidros partidos, mas não se vê ninguém.
A cerca de quatro minutos de carro, numa viagem sempre em linha reta, chegamos a Tagarro. A aldeia é pequena e quase parece uma terra-fantasma, exceto quando chegamos ao Calhambeque. No principal café da aldeia, onde se reúnem os locais, a vida parece seguir com normalidade. A porta está escancarada, há esplanada montada, fãs de futebol vidrados na televisão e homens ao balcão.
São quase 21h, mas a noite aqui já vai longa e as cervejas saem em barda. “Uma escada, foram buscar uma escada para fugir!”, troça um dos homens entre goles. E logo ouve a resposta: “Faltam guardas, não há controlo. E estes já não aparecem, a esta hora já está cada um em seu país.”
Os prisioneiros que fugiram do estabelecimento têm várias nacionalidades: dois são portugueses, um é argentino, um georgiano e um é inglês. Questionados se acham que os homens já terão passado a fronteira, ninguém tem dúvida que sim, motivo pelo qual dizem não ter medo.
O café que é ponto de encontro dos guardas prisionais
São poucos os que querem ser identificados. Diogo, dono do principal café da aldeia, dá a cara, mas recusa revelar o apelido. Mora em Tagarro há 38 anos e abriu o seu estabelecimento há cerca de três. É onde se vive o verdadeiro sentido de comunidade, diz. A existência de uma prisão (e prisioneiros) a poucos quilómetros de casa não lhe faz diferença. “Aqui é o local mais seguro porque sabemos que os que estão aqui, estão lá dentro”, diz entre risos, lembrando que além do estabelecimento de Vale de Judeus, há ainda o estabelecimento prisional de Alcoentre, onde “não são tão perigosos”, explica.
“Ao longo da vida já vi muitos a fugir. E alguns a ser apanhados! Mas estes são perigosos, estes já não os apanham, estão além-fronteira”, garante. E logo acrescenta que, quem quer fugir, não procura abrigo na aldeia do lado, teoria que outros homens apoiam.
Até porque a aldeia de Tagarro tem uma longa ligação à prisão de Vale de Judeus. Um dos homens — chamemos-lhe, ficticiamente, André — mais novo que os restantes, conta que o seu avô foi guarda prisional nessa prisão, assim como o seu pai, mas ele quebrou o padrão. E garante que a aldeia está cheia de guardas prisionais, diz.
No momento em que se ouve esta frase, entra no espaço um desses guardas, ainda fardado, e vai direto ao balcão. Sentando-se no último lugar, não cumprimenta os presentes nem se junta à conversa. É que o Calhambeque é ponto central para guardas prisionais de Vale de Judeus: é onde bebem café, cerveja e, muitas vezes, até o pequeno almoço.
“Como é que fugiram? Conivência!”
André mora em Tagarro desde que nasceu. Não está preocupado com as fugas e, tal como Diogo, salienta que já muitas aconteceram durante a sua vida. Inclusivamente, “não houve alarme nenhum” na aldeia este sábado quando os homens fugiram. Os locais ficaram a par de todo o acontecimento como o resto do país: pela comunicação social.
Para André, a fuga pode ser explicada recuando ao pós-25 de abril, mais precisamente a 1978. Nesse ano, 124 homens fugiram da prisão por um túnel que demorou três meses a escavar, ficando para trás, por vontade própria, 76 reclusos.
“Como é que os homens fugiram? Conivência!”, afirma. E garante que agora, em 2024, voltou a repetir-se: guardas, no interior, cederam e ajudaram à fuga. Quem trabalha com reclusos, se “dá um dedo, [sabe que eles] pedem sempre mais”, diz. E remata: “Quando começas a ceder é difícil parar porque fazem-te pressão e dizem-te que de vão denunciar.”
Enquanto André acaba de partilhar a sua teoria, abre-se a porta que dá acesso a um jardim traseiro. Um amigo chama-o e diz-lhe que estão à sua espera. André sorri, pega no copo e junta-se ao grupo, com a certeza que na sua aldeia não há nenhum fugitivo escondido.