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Alexandre Simas passou uma vida a perseguir criminosos. Em 1986 foi enviado para o Algarve para procurar e capturar os seis reclusos que fugiram do estabelecimento prisional de Pinheiro da Cruz, conhecidos como os “Cavacos”. A missão (que devia durar três dias) prolongou-se durante um mês e envolveu trocas de tiros, mas só terminou quando todos foram apanhados. Passados 40 anos, o inspetor da Polícia Judiciária olha para a fuga da prisão de Vale de Judeus com uma certa admiração: o trabalho foi feito com “calma” e “precisão militar”, e os reclusos estavam seguros de que “tudo ia correr bem”. Até a cor da escada usada para saltar o muro de cerca de oito metros foi pensada ao pormenor, diz. E aposta que “a chave” para o plano correr na perfeição foi o cérebro de Fábio Loureiro, conhecido por Fábio “Cigano”.
“A fuga demorou a ser planeada. Isto é feito com precisão militar, não é à toa. [Os reclusos] têm de ter um telemóvel para comunicar, não é algo feito a correr, e fazem tudo com a certeza de que vai correr bem“, começa por dizer Alexandre Simas, antigo inspetor da PJ, atualmente reformado.
Vale de Judeus. Dois GNR tensos a guardar a escada da fuga e uma aldeia calma a beber cerveja
“Tudo foi muito bem estudado”, acredita o ex-inspetor da PJ: “Sabiam que as câmaras não estavam a ser vigiadas e que os infravermelhos [com sensores de movimento] não estavam a funcionar.” Sabiam quando “atacar”: na hora das visitas. Os guardas, “preocupados a fazer revistas, chamar os reclusos para as visitas” e a organizar todo o processo, descuram o controlo das câmaras de vigilância.
Alexandre Simas admite que o momento pelo qual todas as autoridades anseiam — a captura dos reclusos — “é capaz de demorar o seu tempo”, uma ressalva deixada também pelos responsáveis da PJ, GNR e PSP na conferência de imprensa deste domingo. Não é a primeira vez que Alexandre Simas é confrontado com este cenário. No verão de 1986 começou uma longa odisseia de procura pelos seis prisioneiros que fugiram de Pinheiro da Cruz.
"Cavacos". Quem eram e que crimes cometeram?
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No verão de 1986 fugiram 6 reclusos:
- Ex-paraquedista Augusto Ramalho (“Tony”) – Condenado a 5 anos por roubo
- Ex-paraquedista José Gaspar (“Zé Guerreiro”) – Condenado a 20 anos por assalto à mão armada
- Carlos Pereira (“Carlos da Malveira”) – Condenado a 17 anos por assalto à mão armada
- Germano Raposinho – Condenado a 25 anos pelo homicídio de um homem durante um assalto
- Vítor Cavaco – Condenado a 17 anos por vários roubos
- Faustino Cavaco – Condenado a 19 anos pelo homicídio de um agente da PSP, Manuel Laginha, que teria sido seu cúmplice em vários assaltos.
A imprensa adiantava que os três últimos homens (todos algarvios) pertenciam ao bando que ficou conhecido como as FP-27, quadrilha que entre 1982 e 1985 assaltara com violência mais de duas dezenas de bancos, casas de câmbio e hotéis por todo o país.
Pelas 16h30 de 28 de julho desse ano, a fuga de Augusto Ramalho, José Gaspar, Carlos Pereira, Germano Raposinho, Vítor Cavaco e Faustino Cavaco começou — e decorreu de forma violenta. Três guardas que tentaram travar a fuga foram abatidos a sangue-frio e um ficou ferido. Além disso, três outros guardas prisionais foram feitos reféns e usados como escudo pelos reclusos.
O inspetor, que trabalhava na capital, foi destacado para o Sul depois de se saber que os fugitivos “teriam abordado um Opel de uns turistas espanhóis para iniciar a fuga. Foi muita gente aqui de Lisboa para baixo, para ajudar os de Setúbal. Para uma coisa destas era preciso bastante gente.”
“Quando chegámos lá abaixo, percebemos que as coisas estavam um bocado complicadas, porque nós sabíamos que o Raposinho, que era um dos que faziam parte e o cérebro da fuga, era dali de Quarteira. Fomos para a zona, abordámos os familiares do Raposinho e passado dois dias, talvez, a irmã dele, depois de um interrogatório, disse que estavam numa casa na rua da cabine em Quarteira”, lembra o agente.
Os primeiros: paraquedistas cercados e um tiro de raspão
Foi pelas 6h que as autoridades começaram “a abordar o sítio”, sem saber ainda “quantos lá estavam”. A irmã de Raposinho, Maria Helena, deu abrigo a quatro dos seis fugitivos, mas, desses, apenas dois ficaram na sua casa: os ex-paraquedistas Augusto Ramalho e José Fernandes Gaspar. Simas recorda o momento em que avançaram, depois de assumirem posições: “Um dos colegas diz: ‘Atenção, Polícia Judiciária, rendam-se, estão cercados’. Mas não se ouviu nada. De repente, eu, que estava mais próximo da janela, ouço puxar a culatra atrás”, lembra Alexandre Simas.
O inspetor, antigo militar da unidade de Comandos do Exército, diz conhecer “muito bem o som dessa arma que é a G3”. “Gritei que eles tinham G3 e disparo para janela. Eles tinham o estore corrido, com aqueles bocadinhos abertos, e estavam a ver-nos. Também fizeram fogo e há uma troca de tiros grande”, que quase feriu o então inspetor da PJ. “Ainda levei um tirito, mas foi na camisola, não me atingiu fisicamente, passou de raspão”, conta.
Tudo aconteceu quando estava a “trocar o carregador”, que coincidiu com o momento em que os reclusos dispararam contra as autoridades. “Virei-me, pus-me de lado, e, como sou assim uma fraca figura, passou. Se tivesse barriga tinha-me atingido”, brinca o antigo agente.
Os tiros duraram até que Zé Gaspar baixou a arma. Nesse momento, “acabou o tiroteio, ele saiu [da casa] e disse que o Ramalho não se queria render“, conta Alexandre Simas. O agente pediu ao antigo paraquedista para voltar a casa e insistir com o colega. “Quando o Zé Gaspar vai ter com ele ouço um tiro. E depois viemos a saber que foi o Ramalho que disparou, suicidou-se“, lamenta. O trabalho, nesse dia, estava a feito, mas ainda estavam a monte quatro reclusos.
Operação secreta fez “Cavacos” entregar armas de bandeja
Raposinho e “Carlos da Malveira” foram os próximos a ser capturados. Foi, uma vez mais, a irmã de Raposinho a denunciar o paradeiro dos reclusos. “Mais uns interrogatórios e tal e lá soubemos que eles estavam ali, na Reboleira, num apartamento de um familiar do ‘Carlos da Malveira’”, conta, salientando que não esteve presente nesta captura por continuar destacado no sul.
Faltava apanhar dois fugitivos e não havia tempo para descansar. “Um dia estava em casa e o meu diretor, o doutor Sousa Martins, ligou-me num domingo e disse que precisava de mim no dia seguinte às 7h”, lembra o antigo agente. E, sem saber, começava aí o início do fim desta gigantesca operação de caça ao homem.
“Ninguém sabia o que se passava. No domingo, chegámos, fomos para os carros e avançámos para Setúbal. Numa reta qualquer o diretor parou os carros e disse: ‘Meus senhores, vamos para uma operação que pode ser perigosa. Pode haver tiros e mortes e quem quiser desistir pode desistir. É claro que ninguém desistiu”, diz.
A PJ tinha recebido a informação de que um jardineiro da Câmara Municipal de Loulé era refém dos dois Cavaco que ainda resistiam, Faustino e Vítor, estando a ser forçado a protegê-los. O homem, de serviço quando foi abordado pelas autoridades, “confessou que estavam na casa dele, na Cruz da Assomada”, e que não se rendiam.
Chegando a casa do jardineiro, o homem tentou convencer os fugitivos a render-se. “A certa altura — isto viemos a saber depois — disse aos Cavacos que estavam ali os gajos de Quarteira, onde tinha havido o tiroteio, eles pensaram melhor e entregaram as armas. O jardineiro saiu com uma espécie de um tabuleiro, com as armas que eles tinham, depois saiu primeiro o Faustino e o Vítor saiu logo a seguir”.
A “chave” da fuga e uma escada propositadamente verde
Na época, ninguém passou a fronteira, mas foi por sorte, já que um associado dos dois “Cavacos”, conhecido por “Francês”, estava a tratar de arranjar documentos para conseguirem deixar o país. Agora, na fuga de Vale de Judeus, esta situação não se vai repetir, assegura Alexandre Simas.
E acrescenta: “Julgo que o único que ainda deve cá estar [em Portugal] é Fernando Ferreira, acho que a única base de apoio dele é aqui. E a base de apoio de Fábio Loureiro é Portugal e Espanha. Os outros são gente que se move a um determinado nível. Acredito que cada um foi à sua vida.”
Em 1986, o grupo dos seis reclusos separou-se poucas horas depois porque estavam conscientes de que, “quanto mais fugirem, mais dispersam as autoridades”. Agora, o antigo agente da PJ antecipa o mesmo cenário. “Cinco indivíduos andarem de um lado para o outro dá nas vistas.” Na opinião de Alexandre Simas, “Fábio [Loureiro] orientou” os restantes fugitivos e ordenou uma separação.
O antigo PJ considera que “a chave” desta operação foi Fábio “Cigano”. “Para mim, a fuga terá sido feita através de alguém que tem muita retaguarda para o proteger, que seria o Fábio, conhecido por Fábio ‘Cigano’. Os estrangeiros não têm retaguarda aqui em Portugal”.
E, defendendo que tudo foi “muito bem estudado”, vai mais além: “Isto é tão bem feito que um dos indivíduos que ajudou à fuga está equipado, como aqueles que a gente vê nos filmes e que se deitam no meio das ervas”. Mais: “A escada é verde! Das duas, uma: ou a escada era verde, ou foram eles que a pintaram. Porque o sol podia bater no alumínio e podia ver-se. Assim, põem a escada verde junto à vedação e, mesmo que haja uma ronda, no meio das ervas não se nota.”
Das dicas à ineficaz pressão junto das famílias
Face à experiência de Alexandre Simas na caça ao homem, questionado sobre quais devem ser os primeiros passos após a deteção da fuga de um prisioneiro, o antigo PJ considera que “a primeira coisa a fazer é alertar as autoridades todas para a fuga”. Este primeiro passo foi, efetivamente, dado na sequência de a fuga ter sido detetada — ainda não é claro exatamente quanto tempo depois —, tendo sido agilizada a cooperação com organizações internacionais.
O segundo passo, diz o antigo agente, “será [o controlo] das fronteiras”. E, depois, “é começar a planear a estratégia: quem são os que fugiram, como, de onde é a família”. Apesar disto, o ex-PJ tem dúvidas de que fazer pressão junto dos familiares dos reclusos tenha sucesso. “A mulher do Faustino [Cavaco] era professora. E nós também andámos lá muito a bater. Várias vezes a mulher foi interrogada, mas ele nem a procurava porque sabia de antemão que andávamos por ali”, recorda Alexandre Simas.
Durante a tarde deste domingo, a mulher daquele que terá sido o cérebro da fuga escreveu nas redes sociais, segundo o Correio da Manhã, que não queria ser contactada e lembrou que as famílias “sofrem com estas situações”. “Tenham mais noção das informações que passam para o exterior/imprensa”, lê-se na publicação.
O antigo inspetor considera também importante que as autoridades oiçam e valorizem as dicas dos cidadãos. “Não se podem descartar assim as dicas”, diz. E conta que estas foram grande parte das buscas em 1986. “Tínhamos tudo preparado e, se havia uma pessoa que dizia que o Faustino estava em tal sítio ou o Vítor em tal sítio, a gente ia lá logo a correr. As pessoas diziam que eles estavam numas boates, a gente ia e não estava nada”, diz, acrescentando que acontecia com frequência.
“Um dia quando estávamos em Loulé, a almoçar, disseram-nos: ‘Estão ali dois tipos para assaltar o banco. Largámos logo o almoço, fomos a correr, e não era nada, eram dois indivíduos a passar’”, conta animado. E antecipa que agora “haverá avistamentos de tudo”. Ao longo de sábado passado foi avançado também pelo Correio da Manhã que a viatura usada para a fuga de Vale de Judeus, um Mercedes, foi visto pelas 15h30 em frente à casa de Fábio ‘Cigano’ em Lagoa, informação que até agora não foi confirmada pelas autoridades. Já esta segunda-feira, foi noticiado um novo avistamento falso, desta vez na estação de Coimbra B. As autoridades analisaram as imagens e acabaram por descartar a hipótese de serem os fugitivos de Vale de Judeus.