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— Quarta, quinta, sexta, sábado, domingo… quatro noites que a menina passou aqui. Coitadinha!
— Tanto tempo. Ainda se vê ali o sítio onde ficou deitada.
— Vejam lá, até partiram um pinheiro para tapar o corpo. Malvados…
Contam pelos dedos das mãos as noites que o corpo de Valentina Fonseca ficou naquele eucaliptal. Vão pegando e atirando para o chão, gesto contínuo, os ramos partidos usados para tapar o cadáver da criança de nove anos que ainda lá ficaram — como se eles próprios quisessem reconstituir o crime. Num círculo quase perfeito em redor do local onde o corpo foi deixado, a população de Atouguia da Baleia troca teorias e deixa, no ar, perguntas sem resposta. Esqueceram o distanciamento social e alguns deixaram as máscaras para trás que os tempos de pandemia obrigam. Agora, de olhos fixos no chão, nos ramos ainda esmagados, o que lhes importa saber é quem matou Valentina, como e porquê.
As 72 horas de buscas por Valentina: o crime e a investigação, passo a passo
Nem cinco minutos antes, Sandro Bernardo tinha estado exatamente ali para explicar aos inspetores da Polícia Judiciária (PJ) como é que tinha deixado o corpo da própria filha, ao frio e no breu. O suspeito do homicídio de Valentina, em co-autoria com a mulher, madrasta da criança, saiu do carro da polícia e entrou eucaliptal adentro, cabisbaixo e ombros descaídos — reconstituindo o que terá feito naquela madrugada de quinta-feira. Entre o arvoredo e sob o olhar atento dos investigadores, ia levantando no ar e pondo no chão ramos de uma árvore. O que disse e o que explicou só os investigadores saberão.
A verdade é que não era a primeira vez que tinha estado ali com a PJ. Depois de ter passado a noite toda e início da manhã no Departamento de Investigação Criminal de Leiria a ser interrogado, Sandro Bernardo acabou por conduzir a polícia, nessa manhã, ao local onde terá abandonado a filha, já sem vida, naquele eucaliptal na Serra d’El Rei, a menos de oito quilómetros da sua casa. Não terá confessado que matou a própria filha — como confirmou ao Observador fonte da PJ —, mas terá dado informações cruciais que permitiram dar passos largos na investigação e levar a que fosse detido com a mulher, ambos por suspeitas de homicídio e ocultação de cadáver.
O caso, que começou como sendo um desaparecimento, acabou por revelar-se um homicídio de uma criança de nove anos. Os principais suspeitos são o seu pai, de 32 anos, e a madrasta, de 38. Mas o que terá acontecido? Um acidente que levou o casal a entrar em pânico e a querer livrar-se do corpo? Ou um crime premeditado e levado a cabo na véspera de o casal emigrar com os outros filhos para a Bélgica?
Valentina estava vestida quando foi encontrada
Os elementos da polícia científica passaram a manhã e o início da tarde, a entrar e a sair, em corrupio, da casa de Sandro e de Márcia Bernardo — um primeiro andar de uma vivenda na Rua D. Jerónimo de Ataíde, onde viviam há cerca de um ano e cujo acesso é feito por umas escadas no exterior. Terá sido este o local do crime. Levaram, inclusive, um carro da família para ser alvo de perícias — o que terá sido usado para transportar o corpo da criança desde a casa até ao eucaliptal.
No fim dessa rua, cortada ao trânsito pelas autoridades, várias pessoas iam-se acumulando, motivadas pela curiosidade. Eram cerca das 17h00 deste domingo, quatro dias depois de dizer que tinha visto Valentina pela última vez e lhe aconchegara os lençóis, quando Sandro Bernardo subiu aquelas escadas — curvado, máscara na cara e capuz enfiado na cabeça. Gerou um leve frenesim entre os poucos habitantes que se aperceberam que o vizinho e suspeito da morte da filha regressara à casa. Estava ali para reconstituir os factos da sua versão da história, a história de como Valentina tinha morrido no interior da residência na noite de quarta-feira.
A PJ só avança, para já, com uma vaga explicação: “Terá sido por questões internas do funcionamento da família”. Fontes familiares confessaram ao Observador que a menina costumava dizer que não gostava da madrasta — teria até fugido da casa do pai, na Páscoa do ano passado, dizendo ter “saudades da mãe”, com quem vivia permanentemente (passava apenas alguns dias na casa paterna). As hipóteses não passam disso mesmo, de hipóteses. Uma delas, e a que terá sido apresentada pelo pai aos investigadores, foi a de que Valentina terá morrido por acidente, enquanto tomava banho. Mas em conferência de imprensa, a PJ disse ter sinais de que a morte não foi acidental.
Mais: a criança de nove anos estava vestida quando foi encontrada, já sem vida, no eucaliptal. O que levanta uma questão. Ou o pai e a madrasta vestiram a criança já morta antes de a abandonarem, ou o alegado acidente não ocorreu na banheira. Ou não foi sequer um acidente e ter-se-á tratado de um crime. Premeditado ou não.
A ser um crime e não um acidente, há uma peça que será fundamental para perceber se o alegado homicídio foi ou não planeado com antecedência: qual a roupa que a criança tinha vestida — um dado que a PJ não quis revelar ao Observador. Nomeadamente se as roupas correspondiam ou não às que o pai tinha apontado como as que estaria a usar no momento do suposto desaparecimento. É que, se sim, a investigação pode concluir que Sandro Bernardo e a mulher queriam precaver-se para o caso de o corpo ser encontrado e, assim, as roupas corresponderem àquelas que eles próprios tinham mencionado.
Madrasta não saiu do carro na reconstituição feita no eucaliptal
Quando, passado cerca de uma hora, Sandro Bernardo saiu finalmente da sua casa, já a população tinha a garantia de que era ele mesmo quem lá tinha entrado antes e, por isso, preparava-se para se manifestar. O suspeito acabou por sair acompanhado pelos elementos da polícia científica ao som de insultos e gritos. Depois, seguiu viagem até ao eucaliptal onde, também ali, foi recebido de forma semelhante por vizinhos, conhecidos ou curiosos.
O pai de Valentina deu a vez à madrasta. Ainda Sandro explicava aos investigadores como tinha sido depositado o corpo da filha no eucaliptal, já Márcia estava na casa para também ela contar e demonstrar a sua versão da história. Os dois suspeitos fizeram cada um a reconstituição do crime individualmente. Aliás, foram separados a partir do momento em que começaram a ser interrogados — para evitar que pudessem, entre eles, combinar o que diriam aos inspetores.
Tal como Sandro, também Márcia se dirigiu depois ao eucaliptal em Serra d’El Rei. Mas, ali chegada, não saiu do carro da polícia — o que pode, em si, ser um detalhe importante para a reconstituição dos factos. A madrasta pode ter acompanhado Sandro até ao local, mas não ter saído do carro. Em vez disso, pode ter aguardado dentro do veículo que o companheiro deixasse o cadáver, a cerca de dez metros da berma.
A ser verdade, significa também que três crianças foram deixadas em casa sozinhas: duas filhas do casal, uma de quatro anos e outra de sete meses, e ainda uma filha de Márcia Bernardo, de outro relacionamento, que terá entre 11 a 12 anos. Um vizinho que vive perto da casa contou ao Observador que, nessa noite, ouviu as crianças a chorarem.
O que aconteceu na manhã seguinte é público: às 8h30 de quinta-feira, Sandro Bernardo dirigiu-se à GNR das Caldas da Rainha para reportar o alegado desaparecimento da filha, apesar de saber que a criança tinha morrido e que ele estava, de alguma forma, envolvido nos factos. Nessa altura, contou que a família foi dormir por volta das 23h00 mas que, à uma da manhã, foi aconchegar os lençóis à criança antes de voltar para a cama. Às 8h00 da manhã seguinte, quando regressou ao quarto de Valentina, não a encontrou e deu-a como desaparecida às autoridades.
Nesse dia e nos que se seguiram, a madrasta mudou-se, com os filhos, para casa de um familiar, no mesmo bairro, alegando que queria proteger os menores e afastá-los das buscas que decorreram durante três dias. Mas a criança já estaria morta há algum tempo e o seu corpo fora de casa — como era do conhecimento de ambos, Sandro e a mulher.
Como e porquê? O que aconteceu no interior da habitação é ainda uma incógnita. Os contornos do crime ainda não são completamente conhecidos das autoridades. A polícia científica terá recolhido provas, usado luminol em busca de sangue, para perceber se algo aconteceu na banheira ou num outro local. A autópsia determinará a causa da morte, que alguns meios de comunicação social adiantaram ter sido asfixia. A investigação prossegue para resolver os mistérios que se mantêm e unir as pontas soltas. Esta segunda-feira, o casal vai ser presente a um juiz, para aplicação das medidas de coação. Podem remeter-se ao silêncio ou optar por contar a sua versão da história.