[Artigo publicado originalmente a 11 de julho de 2020 e atualizado e republicado a propósito da morte de Cruzeiro Seixas a 8 de novembro de 2020]
Valter Hugo Mãe era há muito um admirador da obra plástica e poética de Artur do Cruzeiro Seixas quando começou a trabalhar na Quasi. A publicação da poesia do artista foi desde logo uma iniciativa que procurou levar a cabo na editora e que concretizou no início dos anos 2000, publicando os três primeiros volumes da sua obra completa. Valter Hugo Mãe era então “um mocinho”, que foi recebido com todo o entusiasmo em Lisboa pelo velho mestre, que sem pestanejar depositou nele toda a confiança e lhe passou para as mãos os papéis que guardava em resmas meticulosamente arrumadas numa estante de parede sobre o telefone.
A imagem da pilha de folhas A4, guardadas “à espera que alguém se enternecesse com aquilo”, é uma das que hoje, passados 20 anos, vem à cabeça do também escritor, que lançou há dias uma nova edição dos três volumes que saíram pela Quasi no âmbito da coleção que dirige na Porto Editora, a “elogio da sombra”. É também a “alegria” de Cruzeiro Seixas por alguém finalmente se lembrar dos seus poemas que Valter Hugo Mãe recorda melhor. Essa alegria mantém-se ainda hoje, porque, para o artista, que celebraria os seus 100 anos em dezembro [esta entrevista foi feita antes da morte de Cruzeiro Seixas, a 8 de novembro], a sua poesia permanece “um mistério por revelar, um mistério por revelar a ele mesmo”.
Morreu Cruzeiro Seixas, o artista que viu no Surrealismo a única revolução
“O curioso é ele encarar os próprios poemas como se os não soubesse ler, como se estivesse à espera de alguém que os venha ler com ele, para aprender sobre eles. E a edição tem essa importância, a importância de trazer a conversa em torno dos poemas, como se ele estivesse à espera que alguém lhe explicasse o que aquilo é”, afirmou o autor numa entrevista ao Observador sobre a poesia de Cruzeiro, o trabalho como seu editor e a sua recusa em aceitar a velhice.
A publicação da obra poética de Cruzeiro Seixas na “elogio da sombra” inicia-se no ano em que ele faz 100 anos. É uma forma de o homenagear?
A coleção foi criada no ano passado e uma das minhas primeiras intenções era recuperar a poesia do Cruzeiro Seixas que, desde que a tinha editado no tempo da [editora] Quasi, não tinha sido trabalhada. Portanto, já tinha essa intenção, mas no ano passado era demasiado cedo para se conseguir [lançá-la]. A obra é extensa.
Vão ser quatro volumes, não é? Este é apenas o primeiro.
Sim. Um dos volumes ainda precisa de ser organizado. O trabalho que envolvia recuperar a poesia completa não permitiu que nos lançássemos a esta edição no ano passado, mas este ano era inevitável, assim me parecia, ao coincidir com o ele completar 100 anos. E fico muito contente que faça parte da celebração do seu século, porque, devo dizer, ainda que ele seja muito conhecido como artista plástico e a sua arte plástica seja visível e aclamada, ele tem uma alegria — acho que a palavra certa é essa — muito especial com a poesia. O entusiasmo dele com a edição dos poemas é um entusiasmo de menino mesmo. Como se fosse fosse fazer alguma coisa que o surpreende, e o maravilha mesmo. Vejo isso nas exposições, mas nas artes plásticas parece que há um domínio do qual ele já espera menos ou que ele reconhece mais. Na poesia, parece que ele está à espera que aconteça alguma coisa que nunca aconteceu.
Na receção da sua poesia ou em relação ao seu próprio trabalho?
É assim uma coisa dele mesmo. Ao fim destes anos todos, ele ainda lida com os poemas como um mistério por revelar, um mistério por revelar a ele mesmo. Por isso, quando são editados [há uma alegria]. Isso aconteceu-me quando os editei [pela Quasi], há quase 20 anos, o frenesim dele foi o mesmo. Há qualquer coisa na poesia dele que é muito inexplicável para ele próprio e, quando se mexe nos poemas, sinto que ele fica como se finalmente viesse alguém brincar com alguma coisa que ele espera dividir há muito tempo. [É] como uma criança que quer dividir um brinquedo, que quer jogar um jogo com alguém e não tem encontrado muito com quem.
Mas o curioso é ele encarar os próprios poemas como se os não soubesse ler, como se estivesse à espera de alguém que os venha ler com ele, para aprender sobre eles. E a edição tem essa importância, a importância de trazer a conversa em torno dos poemas, como se ele estivesse à espera que alguém lhe explicasse o que aquilo é. É muito engraçado, porque ele coloca-se sempre na posição de a arte ser uma forma de superação absoluta, de uma certa transcendência. É algo que nos transcende a todos, que vem de um lugar que nos maravilha, porque não corresponde ao comezinho da vida. E ele com a poesia tem muito isso. Fica francamente maravilhado, como se estivesse a ver alguma coisa que nunca viu.
Com a pintura isso já não acontece?
Com a pintura, sinto que existe uma alegria, mas não é a mesma coisa. A poesia acaba por revelar uma importância para ele, na vida dele, que muita gente não suspeitaria. As pessoas dão de barato o facto de ele ser um artista plástico e talvez não estejam conscientes de que a poesia sempre lhe importou muito mais do que parece, do que seria de esperar.
Este primeiro volume é exatamente igual ao que tinha sido lançado pela Quasi em 2002?
Sim. Por opção do Cruzeiro, os três volumes que foram editados na Quasi vão ser repostos na sua completude.
A organização foi feita pela escultora e poeta Isabel Meyrelles, que assinou também o prefácio, que recuperaram neste livro.
Sim. Posso dizer que eles tomaram algumas algumas decisões na organização do volume que são assim traquinas. Foram traquinices surrealistas, decisões tomadas entre surrealistas para produzirem determinadas distrações ou efeitos. A coisa mais bizarra, intrometida, de que ele chegou a falar e que por isso é pública, foi que a Isabel Meyrelles teve liberdade para atribuir aos poemas a data que quis, o que significa que umas datas são verdadeiras e outras são falsas. Ainda problematizei a coisa, disse que seria interessante que os poemas que não estão tratados fossem organizados de outra forma, mas ele não [quis]. Ria-se, achava maravilhoso que os poemas pudessem ser antecipados. A grande vastidão da poesia foi escrita até 1971, 1972.
A grande maioria foi produzida quando Cruzeiro Seixas esteve em África, não foi?
Muitos dos poemas são do período de África, outros já têm datas de Lisboa. Mas a maior parte será de África, sim, só que ele não os datou e por isso alguns tanto podem ser de África como podem ser de Lisboa. A Isabel, à leitura de cada um, decidiu o que era de África e o que não era. E isso é um terrorismo surrealista [risos]. É uma permissividade, onde o que importa — e isso é muito concreto na arte do Cruzeiro — não é a realidade, é o impacto artístico, emotivo, que a arte pode ter em nós. O surrealismo é, todo ele, uma forma de construir uma outra realidade. O que foi feito na própria organização [do livro] tem que ver mais com uma certa construção de uma realidade do que com a aceitação dos dados que estavam disponíveis. Coloquei esta questão no momento de reeditar os volumes, porque tenho os datiloscritos da época e sei [quais] os [poemas] que foram datados pelo Cruzeiro e os que foram datados pela Isabel. A minha primeira decisão seria refazer a ordem dos volumes ou dos poemas, extraindo ou deixando de parte essa ficção que foi assumida e decidida por eles há 20 anos. No entanto, como o Cruzeiro me pediu que se mantivesse este trabalho da Isabel Meyrelles, que ainda está viva, foi isso [que fizemos]. Acabámos por repetir. Ainda espero ter assim uns 30 ou 40 anos de vida para um dia mais tarde poder repensar a ordem e mostrar como é que a obra pode ser lida de outra forma, sem esta interferência.
Além dessa questão das datas, todos os poemas aparecem como tendo sido escritos no mesmo lugar, nas “Áfricas”.
Pois, exatamente, ele acaba por não especificar. Deve haver dois ou três poemas onde [no original] diz concretamente o país ou a cidade [onde foram escritos], mas são raríssimos. E julgo que a Isabel, nas poucas vezes em que isso acontece, acabou por decidir meter só a data para que ficasse sempre a mesma referência. Penso que será importante no futuro pensar a obra do Cruzeiro Seixas por temáticas mais do que por tempos. Mas neste momento esta é a obra que o Cruzeiro quer ver editada e acima de tudo é importante que os poemas estejam outra vez disponíveis. É isso que estamos a fazer.
E é ele que manda.
É ele que manda. A poesia é dele, ele é que sabe e ele é que tem de estar feliz. Se um homem aos 100 anos não tem direitos, ninguém os tem.
Disseste que a poesia dele podia ser dividida por temáticas. Que temáticas seriam essas?
Sinto que há muito deslumbre amoroso, uma certa sensualidade. Nalguns poemas, ele fala inclusivamente dos corpos, aparece a boca, o braço, a mão, há um certo toque. Era capaz de reunir, de fazer um volume, onde o corpo estivesse em causa. Depois, há um delírio meio cósmico, onde as coisas se misturam. Pode haver corpo, mas o corpo já é uma mestiçagem com o animal e com a lua, que vai muito ao encontro do que é a sua arte plástica, onde parece que estamos a ver uma descrição alienígena das coisas, como se tivéssemos a sair do planeta, a ver coisas que não são manifestamente possíveis. E há textos que são muito próximos do aforismo. São textos muito curtos, muito breves, que vão ao encontro, por exemplo, das anotações dos seus diários, que não deixam de ser poéticos e que não deixam de ser uma outra vasta obra poética. [São] versos normalmente muito breves, com uma ansiedade de uma verdade acabada, que funcionam como dizeres norteadores e que me parecem também ter uma importância muito específica no modo como ele pensa poeticamente. Acho que ele ficou com a sensação de que algumas destas frases se repetem nos diários, porque ele recortava os datiloscritos. Ele escrevia à máquina e por vezes repetia a frase — deixava o poema no volume dos poemas, mas repetia-lo, recortava-lo e colava-lo nos diários, naqueles cadernos que agora começam a ser conhecidos e que estão à guarda da [Fundação] Cupertino de Miranda [em Vila Nova de Famalicão].
Mas é curioso, uma das lembranças que tenho do trabalho que fiz com o Cruzeiro é a de entrar na casa da Rua da Rosa e [ver] a poesia em cima do telefone. Havia uma espécie de estante corrida ao longo da parede [e] o telefone estava ali pousado. Por cima, havia umas estantes afixadas na parede e exatamente por cima do telefone estava uma pilha de folhas A4 muito, muito bem alinhadas, desempoeiradas, limpas e muito bem arrumadas e era onde todos os poemas estavam à espera que um mocinho, um jovem como eu, se lembrasse daquilo. Isto significa que havia no Cruzeiro uma perceção de que talvez um dia alguém se lembrasse de procurar aquilo, e isso talvez também justifique a sua alegria. Aquilo estava ali sem ter uma lógica, mas estava perfeitamente conservado, depositado.
Como que à espera de alguém.
À espera que alguém se enternecesse com aquilo. E lembro-me da alegria… Aliás, a pilha era tão grande que estava assim ao nível dos olhos, estava um bocadinho alta. Ele na altura já nem conseguia descer os poemas, então pediu-me que tirasse aquele volume de folhas daquela estante. E pronto…. Agora não sei porque é que comecei a dizer isto [risos]. Ocorreu-me [risos].
Como é que foi essa experiência? Já colaboraram várias vezes depois disso, mas calculo que esse tenha sido o primeiro contacto que tiveram.
Foi. Desde que vi as primeiras imagens do Cruzeiro, aquelas noites espectrais, lunares, que adorava a pintura dele, os desenhos dele. E, enfim, ele na altura já era um senhor com os seus 80 anos, não tinha muito a convicção de que algum dia o pudesse conhecer. Creio que até foi na antiga livraria Leitura aqui no Porto onde comprei o Eu Falo em Chamas, que é, na verdade, o único livro de poesia que ele tinha publicado. Tinha sido editado por uma galeria de Braga [a Gilde], mas não era um catálogo, era, e é, uma edição apenas de poemas com esse título exuberante, que tem tudo a ver como o meu imaginário e com o que me pode fascinar. Então, no tempo da Quasi, o Cruzeiro Seixas foi assim uma das primeiras figuras que quis tentar convidar para editar. Consegui o telefone dele. Foi até muito fácil — a Quasi era de Famalicão e tínhamos uma boa relação com a Cupertino de Miranda, que tinha o mapa de todos os surrealistas. O espólio do Cruzeiro ainda não tinha sido comprado pela Cupertino, mas conheciam-no e eu pedi se me podiam ajudar a falar com ele. Telefonei-lhe e ele disse-me imediatamente que podia ir a casa dele [em Lisboa] no dia que quisesse, para ver os poemas e falar sobre eles, que ficava muito contente que os editasse.
Então houve logo um entusiasmo muito grande da parte dele.
Exatamente. Por isso é que falo nessa alegria. Foi como se ele estivesse à espera que um mocinho lhe entrasse pela casa adentro e lhe pedisse os poemas. Ele depositou em mim uma confiança tão grande que imediatamente mos entrego. Fiquei com o contacto da Isabel Meyrelles, que ele na altura me deu, fiquei responsável por fotocopiar os poemas… Por isso é que tenho estes documentos, estas cópias da época, e posso de alguma forma refazer [a edição]. A história pode ser recontada, os volumes podem ser refeitos, porque estes papéis nunca saíram das minhas mãos. É uma maravilha que ele tenha confiado em mim e eu tenha sido de confiança também. Que não me tenha portado mal [risos].
Para esta nossa edição, fiz um cotejo de todos os volumes com estes documentos originais. [Tentei perceber] se não nos passou nada na altura, nas revisões, alguma deturpação, [se há] algum verso que tenha caído, algum poema que tenha caído. Há três poemas que ficaram inéditos que vou confirmar se não estão em mais lugar nenhum e que depois entrarão no quarto volume dos dispersos e dos poucos inéditos que possa haver.
Esse quarto volume é a novidade desta reedição?
Sim. Estava programado sair pela Quasi, mas depois não aconteceu. Saí da Quasi em 2004 e a editora perdurou até 2009. Não sei porque é que o Jorge Reis-Sá acabou por não o editar, porque estava previsto.
Preveem lançar mais algum volume este ano?
A ideia é que saiam mais dois volumes, um em setembro e o outro em novembro.
E em relação à coleção? Têm mais alguma coisa programada?
Vai sair um livro de poemas de Luís Adriano Carlos. O Luís Adriano Carlos é professor, é conhecido pelos estudos académicos, mas tem poesia, uma poesia meio rara, que aparece muito poucas vezes, que ele edita de década a década. Ele tem um inédito chamado Turpor, que é um inédito belíssimo, então vai sair ainda este ano. Estão vários livros programados. Estavam, aliás, vários livros para sair agora, mas com esta coisa da pandemia houve uma mexida. Os três primeiros volumes do Cruzeiro era para saírem juntos, mas com o fecho das livrarias e com toda esta lentidão em que o mercado de repente entrou, tornou-se um bocado incomportável conseguir [fazê-lo]. No fundo, era como deitar os livros a um poço. Não fazia muito sentido que fossem editados assim. Mas estão para sair na coleção a recolha da poesia do André Tecedeiro, que é um dos meus poetas favoritos da nova geração, e a recolha também da poesia do João Rasteiro, que é um poeta que vem dos anos 90, que já tem um percurso longo. A poesia dele será prefaciada pelo Mário Cláudio, que fez um belíssimo, belíssimo texto. O livro está pronto, o prefácio está pronto. Há várias coisas para lançar que me entusiasmam muito. Tenho pena que a situação do mercado esteja de tal maneira que não possamos estar a fazer sair as coisas com o timing que estava inicialmente previsto.
Teve naturalmente de haver uma reorganização de todo o plano editorial.
Sim, e foi uma reorganização um pouco violenta, no sentido em que as coisas estavam feitas, os volumes estão prontos para serem impressos. E eu compreendo, porque sou autor, adiar um livro, ter a expectativa de o livro ser editado num determinado mês e de repente ser adiado quase um ano, é uma hecatombe para o coração. Não sou o autor destes livros, mas como editor também fico um bocado ansioso.
Também sofres?
Sofro um bocado, porque queria muito que os livros estivessem cá fora.
Pela descrição que fizeste dos livros que estão para sair, e também por aqueles que já saíram, parece-me que tens a preocupação de recuperar autores mais velhos, que já estão um pouco esquecidos, e também de lançar poetas mais novos.
Para mim, a poesia é uma manifestação esdrúxula que pertence a cada um e, a mim, a toda me aproveito. Ou seja, gosto de tudo o que as pessoas possam escrever. Não tenho capelas, não tenho estilos, não me fixo em épocas. Tanto posso vibrar com a Florbela Espanca e o seu jeito modernista e falente, e até de um feminismo criticável, como de repente adoro a Cláudia R. Sampaio, que tem um feminismo moderno, com o qual me identifico muito mais. Identifico-me muito mais com a Cláudia, uma mulher empoderada, ensimesmada, do que propriamente com uma donzela sempre a morrer de amor como a Florbela Espanca. No entanto, enquanto sensibilidade, gosto das duas. Por isso, não fecho as portas a nada. Interessa-me sim que sejam autores de que gosto. Lançámos a poesia completa do Fernando Lemos, também surrealista, que estava há muitas décadas, há muitos anos, sem editar a poesia, sem a recolher e sem qualquer livro de poesia no mercado em Portugal e ainda menos no Brasil, onde ele vivia. Para mim, era essencial. Ele tem poemas belíssimos, era um dos grandes monumentos da nossa cultura do século XX. [Editar a poesia dele] foi uma oportunidade que me foi dada para a “elogio da sombra” que não podia desperdiçar. [Por outro lado], estreio, por exemplo, o Emanuel Madalena, um rapaz com os seu 30 e poucos anos que acho que estreia belissimamente, muito maduro, com uma poesia muito pertinente, muito sólida, à qual não posso ficar indiferente. Acredito que, dentro de uns anos, o Emanuel Madalena será tão óbvio quanto já são a Andreia C. Faria, a Cláudia R. Sampaio ou o André Tecedeiro.
O volume de poesia de Fernando Lemos acabou por ser uma espécie de uma última homenagem porque, infelizmente, ele morreu pouco tempo depois.
Sabes, estava tão habituado que ele fosse o meu amigo velho… Estava tão habituado a vê-lo doente, de cadeira de rodas e tudo isso, mas ao mesmo tempo sempre com um sorriso, um frenesim, uma disposição para inventar mais. Sempre que o encontrava estava rodeado de novos desenhos, novas cartas de catálogos. O Fernando tinha uma força tão viva que, sabendo que ele era um senhor de 93 anos, achei que ia viver dos 100 anos para cima. Estive com ele em setembro. Estava igualmente bem, como sempre, dentro do seu quadro de doença. Encontrava-o sempre naquela solaridade… Falava muito. Falava muito bem e era muito querido. Era uma pessoa mesmo muito querida. Quando me disseram em outubro que ele tinha dado uma certa queda, que tinha deprimido um pouco e que não estava com muita vontade de recuperar, no sentido em que estava a ter alguma resistência em fazer a medicação, em fazer os exercícios físicos, fiquei surpreso. Ele passou a vida inteira em médicos, em operações, recuperações e fisioterapias, mas tinha uma alegria de viver maior do que a minha. Fiquei muito surpreso e foi desolador quando ele morreu. O corpo tinha 93 anos, mas era como se o corpo não tivesse legitimidade para lhe impor um tempo e foi muito triste… Pelo menos fiquei com a satisfação de poder editar a poesia com ele vivo. E ele ainda a lançou em Lisboa e ainda lhe levei mais uns exemplares em setembro, que ele queria para oferecer a não sei quem. Levei a mala cheia de livros. Fui a casa dele [em São Paulo] e, inclusivamente, gravámos uma conversa e tudo isso. Enfim, acho importante que não esperemos que as pessoas morram para fazer alguma coisa. Nunca gostei mais das pessoas por elas estarem mortas. Admiro profundamente os nossos grandes mestres.
Não temos de esperar que tenham 100 anos para os celebrarmos.
Sim. Sinceramente, o Cruzeiro fazer 100 anos… O Cruzeiro também esteve sempre tão bem, tão lúcido. Quando o conheci, ele já teria uns 79 anos ou assim e a idade parecia que não podia fazer parte da equação, porque ele nunca se comportou como um velho e não fazia nada do que os velhos parecem fazer.
Se calhar é esse o segredo.
O segredo deve ser esse. O Fernando era exatamente igual. Eles não permitem que a velhice os convença, e por isso vão andando, vão perdurando muito mais do que as outras pessoas.
Temos de aprender com eles.
Sim, quem me dera!