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É este o trabalho de Vargas Llosa: empolar a obra de García Márquez a ponto de a tornar uma autêntica substituição da obra de Deus
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É este o trabalho de Vargas Llosa: empolar a obra de García Márquez a ponto de a tornar uma autêntica substituição da obra de Deus

É este o trabalho de Vargas Llosa: empolar a obra de García Márquez a ponto de a tornar uma autêntica substituição da obra de Deus

Vargas Llosa, García Márquez e uma competição com Deus

"História de um Deicídio" é a tese de doutoramento de Mario Vargas Llosa sobre Gabriel García Márquez. O que aprendemos quando um mestre latino-americano faz a anatomia de um "criador de mundos"?

Poucos escritores têm capacidade para explicar com clareza e interesse os mecanismos da escrita. O romance ou a poesia parecem escapar à celebre definição de ciência dada por Aristóteles na Metafísica: se um artesão sabe fazer por imitação, o cientista sabe fazer porque conhece a causa das coisas.

Em literatura, porém, as causas não parecem suficientes. Há críticos com uma sensibilidade literária inatacável, que sabem explicar, passo por passo, o que é verdadeiramente novo num autor ou que sintaxe é que nos leva a reagir de determinada maneira, que têm o condão de traçar genealogias literárias tão intrincadas que nos revelam, no complexo rosto dos romances, as caras diferentes de pais e avós vindos dos quatro cantos do mundo, mas poucos desses críticos, tão capazes de perceber retrospetivamente os processos criativos de uma obra de arte, conseguem produzir uma tendo apenas as causas na mão. Sainte-Beuve, Steiner, James Wood, os exemplos são como a descendência de Abraão: incontáveis.

Por outro lado, a quantidade de escritores que não parece estar sequer à medida do que escreve, que transforma, quando fala delas, as suas próprias palavras numa banalidade sem nome, também não deixa de impressionar.

É, também por isso, duplamente prazeroso quando se encontra um romancista ou um poeta capaz de analisar com brilho uma obra literária. Não é apenas uma questão de raridade. A análise tem também que ver com uma acuidade, com uma capacidade de revelar aquilo que de mais importante está num texto, que ganha com aquela clareza artística, com o dom da palavra precisa que é uma espécie de património exclusivo dos melhores artistas. A centelha de clareza capaz de resumir uma ideia ou um mundo numa expressão ou numa personagem como que confirma as revelações que nos são dadas por um raciocínio penetrante. Qualquer leitor sabe isto: ler ensaios escritos por Eliot ou por Orwell é diferente de ler um simples teórico, por mais impressionante que este seja. Há uma inteligência artística que é arejada, que, mesmo quando a linguagem é contida, nos lembra que o autor não está simplesmente a falar sobre outros: é o seu próprio processo que está em confronto com aquilo que lemos.

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Título:
“História de um Deicídio”
Autor: “Mario Vargas Llosa”
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal
Páginas: 695

Quando Eliot louva os poetas metafísicos, é impossível fugir ao confronto das virtudes enunciadas com a sua própria poesia. Se aquilo é bom, se aquilo é útil, estará também em Eliot? A literatura, como todas as artes, tem algumas pretensões de totalidade, ou de pelo menos tocar aquilo que de mais essencial há no mundo. Ninguém pode fazer arte a escrever sobre o que não interessa, pelo que o reconhecimento de uma qualidade artística é, também, para o poeta, uma declaração canibal. Se aqui foi encontrada uma verdade sobre o mundo – não uma verdade no sentido mais estrito e singularizado, mas uma verdade geral, algo que se pode dizer sobre todas as coisas, ou pelo menos todas as coisas daquele tipo – uma poesia que nasce com consciência dessa verdade tem, de alguma maneira, de se relacionar com ela.

O ensaio escrito pelos grandes artistas tem, assim, este duplo objeto e uma inevitável presença de uma intimidade que lhe dão um significado muito próprio. E se, apesar de tudo, estamos relativamente habituados a encontrar essa força artística em alguns ensaios curtos, de Canetti ou de Thomas Mann, por exemplo, é mais raro encontrá-la em teses com a envergadura de García Márquez – História de um Deicídio.

Aquilo que Vargas Llosa faz na sua monumental análise da obra de Gabriel García Márquez (resultado da sua tese de doutoramento, de 1971, apresentada na Universidade Complutense de Madrid) não pode bem ser explicado por aquelas centelhas de clareza ou pela presença regular de expressões felizes para descrever certos fenómenos. Vargas Llosa olha para o romance como uma competição com Deus, como uma tentativa de matar Deus para que o artista crie de novo, à sua maneira, o mundo, e a sua tese rivaliza com a ambição do deicida. Que poderemos dizer de alguém que quer criar de novo o mundo? Que é louco, orgulhoso, megalómano, ambicioso, o que seja; mas que dizer, então, daquele que procura descrever tudo o que há no mundo e o que levou a que aquilo que existe exista no modo em que existe?

Vargas Llosa é também um fabricante da grandeza de García Márquez, torna-o representante de mais lutas, de mais estados de espírito, de mais História, do que aquilo que o próprio García Márquez se podia aperceber. Este é assim, no fundo, um livro que, na sua própria ambição, revela aquilo que atribui ao romance: o desafio ao próprio Deus.

É este o trabalho de Vargas Llosa: empolar a obra de García Márquez a ponto de a tornar uma autêntica substituição da obra de Deus, mostrar como todos os pormenores estão cheios desta ficcionalidade que não significa mais do que a marca do autor sobre a realidade, e extrair desse mundo novo a psicologia do deicida. É ao mesmo tempo um trabalho de inventário – a substituição não é completa se houver elementos que subsistam com uma vida dada por outrem, de tal modo que em tudo é preciso ver se está a marca de Gabo – e de compressão, porque tudo aquilo que surge como ficcionado tem de vir da mesma cabeça, responde de alguma maneira à unidade que é esse sujeito.

Vargas Llosa atira-nos para o mundo da infância de García Márquez, o mundo do litoral colombiano e da febre da banana, dos coronéis e das guerras civis, traz-nos o regresso à sua vila de infância, tão mudada, que desperta a sua vocação de escritor, traz-nos o seu avô militar e as pequenas aristocracias orgânicas, as companhias agrícolas estrangeiras e as terras pequenas, balneares, tão isoladas como sufocantes pela proximidade, mas também nos emerge no mundo literário de García Márquez. Um mundo em que Faulkner e Hemingway têm uma influência capital, mas em que também pontificam Carlos Fuentes ou Sófocles.

De todos estes elementos Vargas Llosa vai reproduzindo o modo como surge aquela que é para ele a grande criação ficcional, a verdadeira criação deicida, de García Márquez: Macondo. O objetivo de Vargas Llosa passa por mostrar que mesmo as ficções anteriores a Cem Anos de Solidão, mesmo aquelas que não se referem diretamente a localidade de Macondo, são já flashes deste mundo que só será absolutamente revelado em Cem Anos de Solidão, mas que estará sempre presente na obra de García Márquez.

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Vargas Llosa (à direita) é sempre justo, o que nem sempre significa aprovar as escolhas do seu objeto de estudo (à esquerda), embora perceba que as escolhas infelizes não beliscam o génio

Gamma-Rapho via Getty Images

Há, no livro, um lado que não está diretamente relacionado com Gabo e que, ainda assim, nunca desaparece. O facto de um escritor dedicar uma tese a um contemporâneo seu, a um companheiro de ofício, que conhece, e elevá-lo a representante por antonomásia da literatura latino-americana obriga a reconhecer no autor uma certa humildade. Neste caso, contudo, trata-se de uma estranha forma de humildade, porque o reconhecimento de García Márquez como o grande escritor do seu tempo e, mais do que isso, da sua realidade, está associado à grandeza do próprio livro de Vargas Llosa.

A análise aqui em causa é também, por outras vias, uma competição, uma espécie de tomada de consciência da grandeza de Gabo, de tal modo que o reconhecimento dessa grandeza chega a pontos com que nem o próprio visado poderia sonhar. Isto é, não se trata apenas de uma análise: Vargas Llosa é também um fabricante da grandeza de Garcia Márquez, torna-o representante de mais lutas, de mais estados de espírito, de mais História, do que aquilo que o próprio Garcia Márquez se podia aperceber. Este é assim, no fundo, um livro que, na sua própria ambição, revela aquilo que atribui ao romance: o desafio ao próprio Deus.

A preocupação de Vargas Llosa em mostrar a largueza do mundo de Gabo, de mostrar a amplitude do seu deicídio, talvez o cegue para alguns dos problemas fundamentais daquilo a que se convencionou chamar “realismo mágico”, particularmente aquele que mais deve a García Márquez. Não o cega para os defeitos menores de construção narrativa, para algumas infantilidades, ou para uma ou outra incoerência – no pequeno exame, Vargas Llosa é sempre justo, o que nem sempre significa aprovar as escolhas do seu objeto de estudo, embora perceba que, na maior parte das vezes, essas escolhas infelizes não beliscam o génio.

Vargas Llosa atira-nos para o mundo da infância de García Marquez, o mundo do litoral colombiano e da febre da banana, dos coronéis e das guerras civis, traz-nos o regresso à sua vila de infância, tão mudada, que desperta a sua vocação de escritor, traz-nos o seu avô militar e as pequenas aristocracias orgânicas, as companhias agrícolas estrangeiras e as terras pequenas, balneares.

A maior cegueira, parece-nos, revela-se nos problemas de fundo, às vezes até naqueles que Vargas Llosa encontrou. A fórmula de Vargas Llosa para descrever o romancista – o deicida, o marginal que não consegue adaptar-se ao mundo tal como ele é e que precisa, por isso mesmo, de criar um novo —, fórmula essa obviamente influenciada pelo tipo de romancista que é García Márquez, tem qualquer coisa de verdade, sim; no entanto, é uma verdade muito incompleta, embora possa, no caso de García Márquez, considerar-se suficiente. O desejo de uma ficcionalidade completa pode radicar nesta inadaptação; o problema é que a ficcionalidade completa, se for bem sucedida, provoca a irrelevância da própria obra. Podemos encontrar um chão comum na inadaptação; no entanto, se a resposta do autor passa por criar o seu mundo, este é um mundo que na verdade está vedado a quem o lê e que o torna, por isso mesmo, irrelevante para os outros. Muita da ficção contemporânea sofre deste mesmo mal, do excesso de ficcionalidade. Como que se alheia da realidade para contar história, fantasias, que podem surgir de uma insatisfação mas que se tornam apenas bizarrias singulares, cromos de coleção.

A angústia dos grandes escritores vem mais, parece-nos, do reconhecimento de que estão presos a esta realidade a que não se conseguem adaptar do que da inadaptação. Isto é, do reconhecimento de que, para escrever, o escritor precisa daquilo que rejeita – o pacto com o demónio já está feito e é impossível de quebrar. É verdade que em García Márquez não parece haver esta consciência, e que se pode viver em Macondo com a ilusão de que de facto se venceu Deus e se criou a ficção completa; é, neste sentido, um mundo algo ingénuo, que vive contente consigo próprio, na ilusão de que conseguiu matar o mundo criado por Deus e afastar o seu fantasma, livrando-se da lógica, das relações causais mais comuns, apropriando-se do sobrenatural, transformando as relações sociais. Contudo, de cada vez que se afasta da realidade, o mundo de García Márquez perde em importância; e de cada vez que se aproxima, perde em clareza, porque parece não perceber como está preso a ele.

 
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