A palavra “vitória” que se gritava em resposta às palavras de André Ventura encaixa perfeitamente naquilo que o Chega designou como uma “grande noite” eleitoral. Se é verdade que o líder do partido tinha colocado a fasquia tão elevada que disse que o objetivo era vencer, também é verdade que realisticamente esse nunca passou de um sonho. Por isso, os militantes só viam motivos para festejar.
Quando ainda não está totalmente fechado o resultado final, o Chega conseguiu passar de menos de 400 mil para mais de um milhão de votos; de 7,18% para mais de 18%; e de 12 deputados para pelo menos 48. Nas palavras do próprio André Ventura, “não se sabe como ficará esta noite escrita nas páginas da História de Portugal”, mas para já é a “noite que acabou com o bipartidarismo” — a mais repetida meta de André Ventura.
O Chega saiu vencedor em nove concelhos, foi o partido mais votado no círculo eleitoral de Faro e conseguiu ficar à frente da Aliança Democrática, apenas atrás do PS, em Beja, Portalegre e Setúbal. À exceção dos círculos eleitorais da emigração, o Chega só não elegeu em Bragança e tem hoje representantes em todos os outros distritos do país — em alguns tem tantos deputados eleitos como PS e PSD. Com este número de votos e de mandatos, André Ventura fez questão de transmitir a mensagem de que vai ser o adulto na sala e deixar tudo o resto aos ombros do PSD, afirmando estar disponível para formar uma “maioria absoluta” à direita.
“Tudo farei para evitar que o PS se mantenha no governo. Se o PSD não quiser, será uma escolha que o PSD fará e que poderá atirar o país para um cenário de instabilidade a breve trecho. Da nossa parte, haverá uma luta para haver estabilidade.” Depois de o dizer à chegada apenas com base nas projeções e de o reiterar no discurso de vitória quando os resultados já o permitiam, André Ventura foi tão longe que voltou a abrir a porta à possibilidade de um acordo de governo sem governantes do Chega. A “questão lateral” mantém-se lateral e o Chega está “disposto a sentar-se à mesa e negociar um acordo de governo”. Quem o ouviu à saída do hotel Marriott, em Lisboa, mais parecia estar a ouvir o André Ventura que, após a queda do Governo de António Costa vestiu o fato de estadista — que foi despindo ao longo dos meses seguintes e que deixou cair por completo com um discurso mais radical em campanha eleitoral.
Para Ventura, o Chega é a “peça central” do que se vai passar nos próximos tempos, por ter nas mãos a possibilidade de deixar que um governo minoritário do PSD sobreviva. Mas, apesar de “todo o esforço” que admite fazer para “evitar um governo do PS”, o presidente do Chega colocou limites: não aceita um acordo de incidência parlamentar, nem aceita não ser incluído numa negociação — já que o partido se tornou “fundamental” e pode “bloquear tudo”.
O Chega fará tudo, portanto, para conseguir um “acordo de governo” com o PSD — até lá, ainda não telefonou a Luís Montenegro, não tem “detalhes” para apresentar porque precisa de fazer contas à vida agora que viu a bancada quadruplicar e precisa de reunir com os órgãos do partido para tomar uma decisão definitiva. Saiu do púlpito e respondeu aos jornalistas antes de ter de ouvir Luís Montenegro garantir que cumprirá a palavra e que “não é não” — ou seja, que não conta com o Chega. Ventura foi insistindo que o resultado histórico nem sequer serve para o Chega se “vangloriar” e sim para “trabalhar”. E, por isso, está certo de que “amanhã” será iniciado “um caminho para criar um governo que dê estabilidade”.
Ao contrário do que fez durante toda a campanha, Ventura deixou cair totalmente a ideia de que PS e PSD são iguais e continuou a apelar a Luís Montenegro: “Acho que era legítimo a AD pedir maioria, fizeram-no, não conseguiram e o país deu uma mensagem clara: quer um governo com duas forças partidárias. Os líderes, no caso eu e Luís Montenegro, ou aceitamos a vontade popular ou cedemos aos nossos próprios caprichos e seremos responsáveis por isso.”
A pressão ao “analista” Marcelo que teve uma “lição de democracia”
A crítica da noite já vinha a ser construída desde sexta-feira, quando a manchete do Expresso noticiava que “Marcelo tudo fará para evitar Chega no governo” e o líder do Chega se queixou do “maior ataque de sempre a um partido político“. Desta vez, André Ventura criticou o Presidente da República por, afirmou, ter “procurado à última hora condicionar o voto dos portugueses”. Aos olhos do líder do Chega, os resultados foram a prova de que “o povo não se deixou contaminar”, respondeu que “quem escolhe o governo são os portugueses” e que foi dada uma “lição de democracia também a Marcelo Rebelo de Sousa”. No fundo, André Ventura não deixou passar a posição do chefe de Estado, mas quis ir mais longe para dar a garantia de que o Chega não vai abdicar do resultado eleitoral e o usará para pressionar Marcelo Rebelo de Sousa: “Os portugueses quiseram dar um governo dividido e disseram ‘construam um governo com estas duas forças’, é isso que tentarei fazer e os outros tomarão as suas ações.”
“Marcelo Rebelo de Sousa é um analista e acho que vai perceber o que os portugueses lhe quiseram dizer, está a acabar o mandato e espero que entenda a mensagem. Se não entendeu é porque não entendeu nada do que é a democracia em Portugal”, argumentou o presidente do Chega, que antecipou a conversa que terá com Marcelo Rebelo de Sousa quando o Presidente da República receber os partidos.
Ventura considera que o Chega permitiu “reduzir a extrema-esquerda à sua insignificância”, que conquistou “pouco a pouco o eleitorado de direita e centro-direita” e que estas eleições foram um “ajuste de contas” com um “país silencioso”. Sabendo que também o PSD tem interesse em manter o PS fora do governo, o líder do Chega quer ser uma solução à direita e acredita que os votos lhe dão esse poder.
O Chega esticou a mão ao PSD, quer ser parte da solução, quer entrar numa alternativa que, com os dois partidos, tem mais do que deputados suficientes para ser governo — mas ninguém quer andar de mão dada com o Chega. André Ventura sabe que o Chega continua isolado no espetro político, que nem numa noite eleitoral em que se provou que AD e IL não conseguem a maioria absoluta houve uma porta aberta, mas a narrativa está escrita e vai ser alimentada nos próximos dias por André Ventura. A curto prazo, a questão vai ser mesmo perceber o que fará o Chega se o “não é não” se consagrar — como foi prometido por Montenegro — e Ventura tiver de decidir sobre uma moção de censura e mais tarde sobre o Orçamento do Estado.