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Imagem de arquivo de "Viagem ao Sol" que mostra uma família portuguesa com uma criança austríaca
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Imagem de arquivo de "Viagem ao Sol" que mostra uma família portuguesa com uma criança austríaca

Imagem de arquivo de "Viagem ao Sol" que mostra uma família portuguesa com uma criança austríaca

"Viagem ao Sol", um documentário sobre o que é ser criança estrangeira em terra de um Estado Novo

"Viagem ao Sol", realizado por Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias conta os anos em que crianças austríacas vieram para Portugal no pós II Guerra Mundial.

Uma criança austríaca que quer ensinar a cozinheira portuguesa a ler. Uma miúda austríaca que recebe ananases de António de Oliveira Salazar. Crianças que são impedidas de brincar juntas em Évora por pertencerem a estratos sociais diferentes. Fileiras de miúdos e miúdas dispostas em filas, como se de um leilão se tratasse, à espera de serem escolhidas por uma família de acolhimento portuguesa. Um miúdo que tenta pedir manteiga noutra língua e acaba a dizer uma palavra nacional que podia muito bem ofender qualquer mãe. “Viagem ao Sol”, o primeiro filme que Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer, da produtora Kintop, assinam finalmente juntos, após tantos anos lado a lado, na vida pessoal e em trabalho, é, em primeiro lugar, um documentário sobre pequenos seres humanos a experienciar aquilo que só deveriam viver em adultos. A ideia de explorar as crianças que vieram da Áustria para Portugal no pós Segunda Guerra Mundial, numa missão coordenada pela organização sem fins lucrativos Cáritas e pelas pretensões propagandísticas do Estado Novo, já estava na calha há muitos anos.

[trailer oficial do filme “Viagem ao Sol” que se estreia esta quinta-feira nos cinemas nacionais]

A recolha de materiais de arquivo, de fotografias pessoais, de “bobines guardadas em caixas de sapatos há setenta anos sem serem abertas”, de extensas e duras entrevistas, deram origem a um precioso pedaço de história que mostra um Portugal tanto acolhedor como retrógrado. Um país salazarento, de castas, de figuras maternais e pais austeros, a quem foi “oferecida” a oportunidade de cuidar de meninos e meninas loiros chegados de um barco  com pouco mais do que a roupa que traziam vestidos. O filme, montado e editado entre 2016 e 2021 por uma equipa pequena e bilingue que acompanhou todo o processo, tem feito o seu percurso a nível internacional e chegou a competir no IndieLisboa e 2022, mas só agora chega às salas de cinema portuguesas. “Percebemos que as memórias destas pessoas estavam muito vivas, muito fortes. Momentos em que o adulto deixa de ser adulto e volta a ser a criança naquela situação, de abandonar a família e o país para viver noutro”, refere Susana de Sousa Dias em conversa com o Observador.

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No início dos inícios, quando a ideia estava presa a uma investigação de Ansgar Schaefer, produtor, co-fundador da Kintop e historiador — além de marido da realizadora –, com trabalhos ligados à emigração judaica para Portugal, a dupla ainda não tinha fechado a abordagem para “Viagem ao Sol”. Apesar de Susana de Sousa Dias ser o rosto visível da realização, com “Natureza Morta” ou “Luz Obscura”, foi Ansgar que empurrou a tal investigação para o princípio de um documentário. Tal como noutros trabalhos, o momento da recolha do material como as entrevistas foi feito com muita delicadeza. “Quisemos dar tempo às pessoas, estar abertos a tudo, conversas longas, ter espaço para as pessoas falarem”, conta a autora. Por outro lado, o historiador alemão conta que, apesar de existir um guião pré-preparado que ia sendo adaptando aos vários intervenientes, houve quem “já tivesse um discurso fortificado, de quem já tinha dado palestras sobre esta sua experiência”. “Mas quisemos ir além desse discurso, porque havia memórias de que as pessoas não se lembravam. Por exemplo, tivemos o caso de uma senhora que estava a viver com a avó durante a Segunda Guerra Mundial e ouviu um estrondo no prédio. Tinha sido um carril de comboios a explodir. Essa senhora, no momento em que estava a falar connosco, lembrou-se desse evento que tinha esquecido completamente. Foi preciso tempo para chegar às camadas mais profundas”.

São essas camadas mais profundas que fazem a diferença em “Viagem ao Sol”. Não é mais um documentário que replica a história ou que nos ensina factos até então desconhecidos. A não ser o facto de que poucos portugueses devem ter presente na sua memória que cerca de cinco mil crianças, com a vida desfeita pela guerra, aterraram em território nacional entre 1947 e 1952 nos resquícios da tragédia do Holocausto. O espectador é guiado pela voz-off de algumas das crianças, agora adultas, que viajaram para Portugal sem praticamente nada e sem sequer saberem o que era uma banana uma laranja, mostrada depois pelas famílias portuguesas, uma ironia doce criada dentro de um país pobre, analfabeto e fechado numa ditadura. O primeiro embate na chegada do barco em que homens e mulheres escolhem os miúdos austríacos, como se de um leilão se tratasse é recordado como uma experiência tanto traumática como ternurenta. As diferenças na cor de pele, as assimetrias sociais, a barreira da língua e o regresso para o abraço dos pais com uma nova família deixada para trás. É como se o espectador estivesse a recordar aquelas memórias guardadas no baú ao mesmo tempo dos protagonistas. “É uma espécie de terapia involuntária, um olhar que não está mediado, não é o de um investigador ou de um adulto só com memórias”, diz a realizadora. Já Ansgar, que ficou mais surpreendido com o que descobriu sobre o povo português neste filme do que Susana de Sousa Dias, acredita que apesar deste episódio ter menos impacto do que a guerra colonial ou o Estado Novo, pode ser mais importante do que se julgava. “Creio que poderá ter um grande impacto, é muito revelador da sociedade portuguesa. Ganha também importância atual por causa dos conflitos na Ucrânia ou na Faixa de Gaza. Não imaginávamos que o mundo estaria assim quando estávamos a trabalhar neste filme”, afirma.

Os dois autores têm dedicado parte da sua vida também ao estudo do que aconteceu em Portugal nessa altura dentro do país. Se para Susana de Sousa Dias a surpresa em “Viagem do Sol” foi de se perceber que nem as crianças austríacas tinham autorização para brincarem umas com as outras, para o investigador alemão foi o facto de existirem essa espécie de segregação social. “Estou cá há muito tempo, não estava à espera dessa divisão tão rigorosa entre estratos sociais em sítios como Évora ou Campo Maior. As crianças não se podiam misturar. Era difícil de imaginar. Parecia a aristocracia germânica do século XVIII. Temos o caso de uma miúda austríaca que tem um pai de acolhimento que lhe diz que tudo é dele, até os empregados, ligado à questão do património humano. Temos todas estas informações em primeira mão, de crianças que viveram isto e lhes ficou preso na memória durante décadas”, afirma.

Algumas destas crianças, já em adultas, regressaram a Portugal anos mais tarde. Outras nunca perderam o contacto com o país. Há até o caso de uma no filme que volta a ver a sua mãe de acolhimento, uma recordação que chega a parecer ficcionada. Nas entrevistas, há quem tenha guardado o vestido que usou na chegada à Portugal. Muitos dos entrevistados viram estas imagens pela primeira vez quando o filme foi mostrado na Áustria. “Desconheciam estas imagens. Têm oitenta anos e veem-se com oito. É uma experiência única”, diz Asgnar.

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