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No tempo em que os poetas moldavam o mundo, Pablo Neruda comprou uma casa em Las Gaviotas, uma aldeola costeira no Chile, que renomeou, qual delegado governamental, de Isla Negra. Dito e feito, até hoje, a cem quilómetros de Santiago, permanece a Isla Negra. Neste mesmo cenário ermo, cercado de rochas negras, Víctor Jara refugiou-se da anarquia que assolava o Chile, um campo de batalha entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, com atentados terroristas ao gosto do freguês. Nos primeiros dias de setembro de 1973, o músico compôs uma canção contemplativa, o manifesto de outro poeta que moldou o mundo, até ao seu último dia:
“Yo no canto por cantar
ni por tener buena voz,
canto porque la guitarra
tiene sentido y razón.
Tiene corazón de tierra
y alas de palomita,
es como el agua bendita
santigua glorias y penas”
Esta é uma canção de verdade, esclarece, não é fama passageira, é do fundo da terra, de quem morre a cantar. Os versos proféticos de “Manifiesto” são assombrosos — numa semana, o músico deixou a Isla Negra e estava de volta a Santiago, encarrilhado com outros cinco mil chilenos para um dos episódios mais tenebrosos da história do país: as prisões, torturas e execuções arbitrárias no Estádio do Chile.
O golpe de estado aconteceu no dia 11 de setembro, o exército bombardeou a La Moneda, a residência oficial do presidente, Salvador Allende, eleito democraticamente pela população chilena. As notícias chegaram a Portugal a conta gotas: o Diário de Lisboa alertava que, “o presidente Allende anunciou pela rádio que um setor da Marinha de Guerra chilena se revoltou contra o Governo de Unidade Popular”; mais tarde, confirmam um “golpe militar” e o suicídio de Salvador Allende. “O general Augusto Pinochet, comandante do exército, presidiu a sessão e os observadores pensam que ele é o chefe máximo do novo regime.”
A prisão de Víctor Jara no Estádio do Chile foi particularmente perversa: foi naquele recinto que, três anos antes, o músico celebrou a vitória do Primeiro Festival da Nueva Canción, que consagrou a música popular chilena; e mais, Victor Jara cresceu ao lado do Estádio do Chile, no bairro Los Nogales. Em 1973 era um dos músicos mais conhecidos do país, apoiante público de Salvador Allende e foi imediatamente reconhecido pelo exército na entrada do estádio. Durante dias, Jara foi brutalmente torturado e mutilado. Estima-se que tenha morrido no dia 16 de setembro; o corpo foi encontrado num terreno baldio com 44 balas e 56 fraturas.
Há 50 anos morreu um músico e nasceu um mártir. O assassinato do cantor é indissociável da ditadura militar e nestes dias medita-se a herança pesada do regime de Augusto Pinochet. No mês passado, concluiu-se um processo judicial de décadas, a corte suprema chilena condenou sete ex-militares pelo rapto e homicídio de Víctor Jara, sendo que um dos responsáveis, o general Hernán Chacón, suicidou-se com a polícia à porta; e no início do ano, especialistas forenses determinaram que Neruda morreu envenenado. A ditadura militar está longe de ser um assunto resolvido: ainda esta semana, Pablo Larraín estreou na Netflix “El Conde”, protagonizado por um Pinochet vampiro que suga a sociedade chilena. “Não à impunidade”, declarou o realizador em Veneza. No centro destas reflexões está Víctor Jara, com uma nova biografia do historiador Mario Amorós — La vida es eterna: Biografía de Víctor Jara; e as celebrações do Festival Arte Y Memoria Víctor Jara no Estádio Chile, que hoje se chama Estádio Víctor Jara.
Cantor de protesto, revolucionário, encenador, folclorista ou comunista. Os epítetos são legítimos, mas ao longo destes cinquenta anos a imagem redentora do mártir dissipou o percurso do homem e compositor brilhante, o transformador de tradição em língua corrente, que elevou a canção chilena a património da humanidade. Quem foi Víctor Jara?
O sucesso improvável do pobre campesino
Víctor Jara nasceu, à falta de melhor palavra, um camponês. A descrição exata é campesino, um homem do campo profundo chileno, de carreiros e superstições. Os pais eram trabalhadores braçais submetido aos caprichos de latifundiários, de pele preta e mãos calejadas — “La piel se me pone negra/ Y el sol brilla, brilla, brilla”; enquanto o pai descomprimia na bebida, a mãe abrigava-se na guitarra e nas cantigas. “Quando era ainda muito pequeno ouvi os homens tocar guitarra na minha aldeia. Às vezes, minha mãe cantava com eles. Não consegui esquecer essas imagens da infância”, recordou. A mãe era mapuche, a principal etnia indígena chilena, gente mística, crente no domínio das pedras e das montanhas, do sol e da lua. As primeiras canções de Víctor Jara retratam esta vivência campesina em Lonquén, a sul de Santiago:
“Cuando el sol se inclinaba,
Lo encontré,
En un rancho sombrío,
De Lonquén,
En un rancho de pobres,
Lo encontré,
Cuando el sol se inclinaba,
En Lonquén”
A vida era pesada, mas Víctor Jara não conhecia outra, era um miúdo feliz. A segurança familiar desmoronou subitamente, quando um acidente com água a ferver levou a irmã mais nova de urgência para Santiago; a família mudou-se definitivamente para a capital, agora eram pobladores, mais um punhado de pobres nas barracas de Los Nogales. Na cidade, a desigualdade social era gritante, como mais tarde escreveu, numa caricatura dos aristocratas de Barrio Alto, a região chique de Santiago: “Las casitas del Barrio Alto/ con rejas y antejardin/ una preciosa entrada de autos/ esperando un Peugeot.”
Uma tragédia nunca vem só: a mãe morreu de ataque de coração e o jovem entrou num estado de profunda incerteza e desamparo, que culminou em dois anos de reclusão no seminário. Não se fez dali um padre, mas a sucessão de calamidades e a contemplação sacra seriam determinantes para o homem de consciência política, um cantor de voz magoada, o profeta dos rebeldes e aflitos.
A salvação do ex-seminarista, de volta às ruas de Los Nogales, foi o teatro. Na década de cinquenta conheceu uma companhia de pantomima, testou a arte dramática e decidiu inscrever-se numa escola de teatro, onde viu pela primeira vez a britânica Joan Turner, a bailarina que seria a sua mulher até ao final da vida. O romance começou quando, meio envergonhado, Jara confessou que lhe tinha composto uma canção de amor — “Paloma quiero contarte”. Na escola também conheceu o dramaturgo Alejandro Sieveking, os dois fundaram uma companhia de teatro e Jara assumiu a encenação. O sucesso foi repentino, uma das primeiras peças, “Ánimas de día claro o La remolienda”, ainda é um clássico do teatro chileno; o encenador fez digressões pela Europa e América Latina e foi convidado para dirigir o departamento de teatro da Universidade do Chile.
O sucesso do encenador escondia uma contradição que nunca foi resolvida: o intelectual universitário em oposição ao humilde campesino, de ascendência indígena. A guitarra era a ligação emocional às suas raízes, não sabia ler música, rabiscava em lenços de papel cifras incompreensíveis e compunha espontaneamente, sobretudo canções autobiográficas. Enquanto percorreu o Chile como encenador, conheceu os mineiros mapuche de cobre e nitrato e aprendeu os instrumentos tradicionais como o zampoña e o charango. “Nunca imaginei que as canções que a minha mãe cantava fossem folclore genuíno. Então descobri que investigar folclore era muito mais fácil do que pensava. Bastava senti-lo. Estar dentro dele.”
O guerrilheiro da nueva canción
No centro de Santiago, Rua Carmen 340, era uma agitação de alunos e professores universitários barbudos, Marx e Che na ponta da língua, regados a vinho e empanadas. Isabel e Ángel Parra, filhos da célebre cantora Violeta Parra, abriram o bar La Peña de Los Parra para darem a palco a uma nova música chilena; assim como a mãe, queriam resgatar a canção tradicional, mas com algum nervo e malandrice para engatilhar a juventude. Os investigadores de folclore abraçaram a causa do La Peña de Los Parra, enturmavam-se em bandas como os Cuncumén e Quilapayún, que pretendiam derrubar o imperialismo musical norte-americano que dominava as rádios e editoras discográficas.
O encenador, que volta e meia era membro dos Cuncumén, tornou-se presença regular no palco do La Peña de Los Parra. Inicialmente, não havia qualquer plano de uma carreira musical, mas Jara não se contém, as canções brotam com uma facilidade assustadora, até o ato ordinário de enrolar cigarros ganha contornos metafóricos. O primeiro single, “La Cocinerita”/ “El Cigarrito”, foi um inesperado sucesso de vendas, naturalmente seguiu-se o álbum de estreia, Víctor Jara, que não revelou mais um folclorista, sequer um mero cantor de protesto, mas um músico que engoliu e transformou a tradição, um cronista da vida em todas as suas dimensões, da alegria à tristeza.
O primeiro impacto é a voz. Ouçam “Te recuerdo, Amanda”, o registo é afetuoso, convence-nos pela meiguice, quem canta assim não nos pode querer mal, que venha a tal revolução do proletariado. A canção ilustra uma cena de fábrica: dois operários apaixonados aproveitam os únicos cinco minutos de êxtase, até tocar a sirene, de volta ao trabalho. A melodia escorre serena, com a naturalidade de um rio, com o descanso da neve na Cordilheira dos Andes. Este é o segredo de Víctor Jara: apesar da clara intenção ideológica, as canções ultrapassam a política, são intensamente terrenas e pessoais. “Te recuerdo, Amanda”, por exemplo, foi composta em Londres, imediatamente depois de saber, por carta, que a sua filha Amanda foi diagnosticada diabética.
O rebuliço do La Peña de Los Parra culminou em 1969, no Estádio do Chile, o Primeiro Festival da Nueva Canción. A organização da Universidade Católica chumbou a presença dos Quilapayún, considerados excessivamente políticos, mas Jara trocou-lhes as voltas e levou os amigos como a banda de apoio; a canção a concurso, “Plegaria a un labrador”, era um grito às armas carregado de pathos, uma Grândola chilena: “Levántate y mírate las manos/ Para crecer, estréchala a tu hermano/ Juntos iremos unidos en la sangre/ Hoy es el tiempo que puede ser mañana”. No final, venceu “Plegaria a un labrador” e “La Chilenera” de Richard Rojas, e acima de tudo, venceu o Chile. O festival foi o tiro de partida para a canção moderna chilena.
A festa foi curta. Três meses depois da Nueva Canción, que colocou Jara e os colegas em rotação nas rádios, uma intervenção policial na cidade de Puerto Montt, sul do Chile, interrompeu a farra. Uma comunidade de campesinos ocupou um terreno e foi corrida a tiro e gás lacrimogéneo; o guerrillero Jara entrou de imediato em ação, compôs “Preguntas por Puerto Montt” e deu nome aos bois: “Usted debe responder/ Señor Pérez Zujovic/ ¿Por qué al pueblo indefenso/ Contestaron con fusil?” — Zujovic era o ministro da Administração Interna. O caldinho estava preparado para mais um álbum urgente, Pongo En Tus Manos Abiertas…, onde a cantiga era entregue a quem precisar:
“Pongo en tus manos abiertas
mi guitarra de cantor
martillo de los mineros
arado del labrador”
“Um artista, se for um autêntico criador, é um homem tão perigoso como um guerrilheiro”, refletiu Víctor Jara. “Porque o seu poder de comunicação é muito maior.”
O renascimento de um herói popular
O Chile estava profundamente dividido: de um lado, a direita conservadora, dos católicos aos militares; do outro, os camaradas de Salvador Allende, o político da Unidade Popular que conciliou uma união da esquerda. Na campanha presidencial de 1970, a nueva canción marcou a posição: os músicos são a favor da eleição de Allende, de tal forma que Jara dedica-se a tempo inteiro à cantiga política — é desta altura a popular propaganda “Venceremos”. A Unidade Popular venceu as eleições e cumpriu sem tardar um ambicioso programa de nacionalizações que arrepiaram os EUA, o principal credor do Chile.
O governo de Allende libertou o músico, que apresentou enfim uma proposta completa da canção chilena: o misticismo indígena, a oração católica, o lirismo jocoso pagão, as melodias orelhudas pop da miudagem e a folk de intervenção norte-americana, aqui adaptada ao trabalhador campesino ou mineiro. O primeiro álbum pós-eleição, Canto libre, com a banda Inti-Illimani, abre esta proposta a todas as geografias latino-americanas: a peruana “Inga”, a argentina “Canción Del Árbol Del Olvido” ou a porto-riquenha “Lamento borincano”. O tom é menos arisco, mais meditativo; a percussão marca o passo em “Caminando, Caminando”, um mantra infinito, uma estrada sem fim e sem lugar, entre cítaras e flautas andinas:
“El verso es una paloma
Que busca donde anidar
Estalla y abre sus alas
Para volar y volar”
No álbum seguinte, El Derecho De Vivir En Paz, de 1971, a canção título homenageia Ho Chi Min, o líder vietnamita marxista-leninista, em plena Guerra do Vietname; não surpreende o comunismo, mais um hino vermelho vermelhão, surpreende o órgão e a guitarra elétrica, a injeção de juventude na sisuda canção de protesto. Jara era um cantor da nova geração, mas era também um compositor intemporal, um criador de mitos; vejam “La Partida”, o arpeggio desajeitado do charango, aquele instrumento que de percorrer tanta estrada está sempre desafinado — alguém acredita que esta canção fantasmagórica tem um tempo e um lugar?
Um ano antes do golpe militar, em 1972, o encenador Víctor finalmente colaborou com o compositor Jara: o álbum conceptual La Población narra a jornada da população de Herminda de La Victoria, que ocuparam um terreno baldio e construíram as suas próprias casas — o músico visitou a região de viola e gravador às costas. O resultado é surpreendente: entre as entrevistas quase documentais, o ex-seminarista reza pela terra em “Herminda de la Victoria” ou compõe uma belíssima tonada, com a voz de Isabel Parra, que abre ao som de um galo despertador.
Era evidente a progressão do músico Víctor Jara, começou de viola a tiracolo e imaginou um universo imenso, canções que habitam uma América Latina onírica, que pairam algures entre as cordilheiras. Mas a realidade, ali em baixo nas ruas de Santiago, contrariou brutalmente o sonho do compositor. Em 1972, um jovem filiado à Unidade Popular foi abatido no meio da rua por um franco-atirador que estava no telhado da sede do Partido Democrata Cristão — “Cuando voy al trabajo” foi a resposta a este assassinato. No mesmo ano, meses antes do golpe militar, o músico era um dos organizadores da receção apoteótica a Pablo Neruda após receber o Prémio Nobel da Literatura; no palanque, o poeta interrompeu o clima de festa: atenção, uma guerra civil está ao virar da esquina. O discurso pessimista não podia ser mais profético, a própria festa era no Estádio do Chile, em breve, o cemitério da democracia.
O corpo de Víctor Jara foi reconhecido, cravejado de balas, por um transeunte. Víctor Jara ressuscitou logo no primeiro dia. A notícia espalhou-se rapidamente pelo Chile, pela América Latina, pelo resto do mundo. Um ano depois da morte, neste distante Portugal, José Jorge Letria escreveu “O canto arma de Victor Jara” e o 25 de Abril santificou o mártir: as canções chilenas conviviam amigavelmente com José Afonso ou José Mário Branco; um grupo de músicos de Coimbra intitulou-se de Brigada Víctor Jara; e a imprensa dedicou páginas ao “herói popular”, até então um completo desconhecido em Portugal. Era o nascimento do mártir.
Portugal foi um dos países que editou Víctor Jara após a sua morte: o seu álbum póstumo, Manifiesto, proibido de circular no Chile, foi editado em Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha, Venezuela, Equador e México. Uma das suas últimas canções, “Vientos Del Pueblo”, gravada no tumultuoso ano de 73, era mais uma fatídica profecia, uma canção oráculo que descreve uma terra dividida, manchada de sangue. “Não me assusta a ameaça”, garante, afinal, são os ventos do povo que o chamam, esta garganta vai cantar pela eternidade:
“Vientos del pueblo me llaman
vientos del pueblo me llevan
me esparcen el corazón
y me aventan la garganta
Así cantará el poeta
mientras el alma me suene
por los caminos del pueblo
desde ahora y para siempre”