E esta hein?! Lembra-se do final das peças do Fernando na televisão? (sim, “a televisão”, aquele tempo em que ainda não há SIC nem TVI, só RTP = “a televisão”) Pois é, antes de dar espetáculo na RTP, esta peça é convidada para trabalhar na BBC, em Londres. É correspondente da 2.ª Guerra Mundial e está tudo dito quanto ao seu historial. Basta-lhe isto para ser mais que os outros, tipo Maradona. Acontece que Pessa é muito mais que isso. Está ele muito bem em Londres, na BBC, quando é convidado para uma cerimónia toda pipi num palácio x-p-t-o com a presença da Rainha Isabel II. Todos os convidados, sem exceção, são apresentados por um senhor x com um chapéu muito alto (não tão alto como o seu tom de voz) que debita o nome y. Quando chega a vez do nosso homem, ele olha para o cartão do convidado e solta um embaraçoso Fernando Piça. E esta hein?!
Vem isto a propósito do “e esta hein?!”. Quantas situações merecem um desabafo desses? Umas quantas, seguramente esta aqui, ó: ando tranquilamente pelas Avenidas Novas, às 8 e 47 da manhã no dia 11 do 11 de 2017, quando tropeço inadvertidamente numa página de jornal no meio do chão. Até aqui, vá, tudo bem. O problema é a notícia escarrapachada em todo o seu esplendor: “Vidigal entra na alta-roda para o Euro”. C’um caneco. É isso mesmo, um jornal de Março 2000 ali a esvoaçar como gente grande. E esta hein?! Esperamos umas horas e telefonamos ao dito cujo. No outro lado, seja lá onde for, Vidigal atende-nos com categoria e marcamos um almoço. Coincidência das coincidências (parte 2), a entrevista é publicada numa semana especial para o irmão treinador Lito Vidigal, entre a qualificação histórica para a meia-final da Taça de Portugal (5-4 nos penáltis ao Rio Ave em Vila do Conde) e a visita ao covil do leão, este domingo à noite. É mesmo caso para “e esta hein?!”
Vidigal, o que é feito?
Trouxe aqui um craque para se juntar a nós, é o meu filho David. Importas-te?
Ora essa, claro que não.
Passei a manhã no hospital, ele tem sinusite.
O almoço vai pô-lo fino, a ouvir histórias do pai.
Eheheheh. Vamos a isso.
Começamos pelo princípio.
Isso, uma sopa.
E agora, o princípio da carreira. Estiveste quantos anos no Elvas?
Dez, acho. Fiz toda a formação no Elvas, desde os infantis aos seniores. Cresci lá em todos os aspectos.
E ias aos jogos do Elvas?
Pois claro, fogo pá.
Ias mesmo?
Não perdia um, até porque o meu irmão mais velho jogava lá.
O …?
O Beto. Jogou com o Elvas na 1ª divisão.
Xiiiiii, isso já foi há que tempos.
Anos 80. Lembro-me bem de ver o Elvas a jogar na 1.ª. Aliás, ainda tenho jornais dessa época lá em casa. Houve uma época, não me lembro se a primeira ou a segunda, em que o Elvas estava em 5.º lugar à 10.ª jornada. No plantel, havia um negão ponta-de-lança chamado Bartolomeu. Marcou ainda uns 10 golos e estava na berra, claro. Quando o Elvas lhe quis renovar o contrato, os tubarões andavam atrás dele e ele ‘ah, não e coiso’. O Elvas então adotou uma postura mais séria e perguntou-lhe o que é que ele queria. “Um carro”, disse ele. E o Elvas, tiiiiiim, deu-lhe o carro. “Onde queres o carro?” E ele, “em casa”. Lá lhe foram levar o carro a casa, estacionaram-no à porta e ele passou essa tarde toda à janela da sala a olhar para o carro. A mulher dele: “Mas o que é que se passa? O que estás aqui a fazer? Então passaste aqui a tarde inteira a olhar para o carro.” E ele assim: “E agora, o que é que eu faço?” O gajo não sabia conduzir, ahahahahah.
Ahahahahah.
Se falasses com o meu irmão Beto, ele começava a contar-te histórias atrás de histórias sem parar. Uma outra, a propósito desse carro: fim de treino e o Bartolomeu, ainda sem carta, leva o meu irmão a casa. Para início de conversa, demora cinco minutos a sair do lugar. À entrada de Elvas, com aquelas muralhas todas, pauuuu, sinal vermelho na subida. Quando passa a verde, o gajo só acelerava sem sair do lugar. Já havia uma fila do caraças atrás, tudo a apitar e o carro já a vir para trás, até que o Beto puxa o travão de mão. Pimba, está armada uma confusão e aparece um taxista para resolver. Quando vê o Bartolomeu, muda logo de postura: “Ó Sr. Bartolomeu, então mas porque é que não disse logo? Quer que eu lhe ajude a tirar o carro?” Faça lá o favor, ahahahahahah. Só histórias do arco da velha.
Tinhas quantos anos nessa altura?
Ó pá, em 1986, uns 13/14.
E já só pensavas em futebol?
Uiiiii, aquilo era futebol o dia inteiro.
Onde?
Tínhamos o nosso estadiozinho, lá num terreno. Íamos às obras roubar uns barrotes, fazíamos as balizas e aquilo era tudo nosso.
Imagino.
Eram os Benfica-Sporting lá do bairro. Fizemos 40 anos há pouco.
Quando?
Na manhã do dia 24 de dezembro, reservamos sempre esse dia para o jogo. Já lá vão 40 anos, temos camisolas e tudo.
Nesse estadiozinho?
Esse já foi de vela, já tem casas em cima dele. Restam-nos as fotografias.
E quem costuma ganhar?
Antes, o Benfica. Os manos eram quase todos do Benfica e eles dominavam, mas agora equilibrou. Temos malta jovem do Sporting.
Então?
Há aí um que vai dar continuidade ao clube Vidigal, pá. É o nosso sobrinho, o André. Ele está na Holanda e é um dos melhores marcadores do Fortuna Sittard. Está a bombar, muito bom. Até já querem comprar acionar a opção de compra à Académica. Deixa lá ver o que a gente faz com aquilo.
Como é que tudo começou, a história do clã Vidigal?
Epá, o impulsionador foi o Beto, o primeiro a ser profissional. A partir daí, vimos que havia possibilidades de podermos seguir. Até as minhas irmãs jogaram futebol.
A sério?
Estou-te a dizer, jogaram no Elvense e na 1.ª divisão portuguesa, com todas as equipas boas, 1.º Dezembros e Boavistas desta vida. Foram tempos gloriosos, em que tínhamos tudo. Havia lá um senhor que patrocinava o futebol jovem e feminino do Elvas. Agora, o senhor lá vai lutando com dignidade, mas muita gente lhe virou as costas. Há um ano, fizemos-lhe uma homenagem na nossa quinta e o homem até chorou.
Como é que se chama?
Hernâni, Hernâni Santana. Ajudou-nos imenso naqueles tempos. Quando nós, iniciados, estagiávamos ou jogávamos em Lisboa, íamos para um hotel. Era categoria, o Hernâni.
Jogar em Lisboa devia ser uma aventura.
Oh, era uma festa. Fogo.
Sempre o mesmo hotel?
Ia variando. Lembro-me de um no centro de estágio do Jamor, bem giro. E de outro em Belém, uma pensão ali mesmo perto dos pastéis. Quando íamos para o Algarve, aquilo era espetacular: Portimão, Faro e por aí fora.
E ganhavam esses campeonatos?
O Nacional? Nem tínhamos hipótese, era uma diferença dos diabos. Se medíssemos o nível competitivo de A a D, o Sporting e o Benfica estavam no A e nós no D. Se não é o último, o distrito de Portalegre é dos últimos a nível competitivo. Há poucas equipas, sabes? E nós ganhávamos sempre e o ganhar sempre não faz de ti muito forte. Tens, pelo menos, de sentir resistência. Senão, não evoluis, não cresces e nós ganhávamos sempre por 14, 10 a zero. Lá no distrito, o Campomaiorense dava um bocado de luta, tal como o Estrela e o Desportivo de Portalegre. De resto. A verdade é que a minha geração atropelava tudo e todos.
A nível distrital?
Só. A nível nacional, era tramado.
Mas jogavam com Sporting e Benfica?
Sim, o Sporting dos Cananas, Figos e Peixes.
Jogavam no campo principal?
Nada disso, só nos anexos. Nós, os chonés, em Elvas, jogávamos no campo principal. Ahahahahah. Num relvado grande, para eles brilharem. Ainda não se pensava nisso.
Não havia aquela manha?
Nada. A ideia era receber o Sporting e o Benfica como artistas convidados em vez de os meter num pelado pequenino, onde nós conseguíamos defender bem.
Jogavas a quê?
Central.
Eras alto?
Só cresci a partir dos 17 anos e até fui objeto de estudo na Associação de Futebol de Portalegre.
Então porquê?
Havia avançados com mais 20 centímetros e eu, mesmo assim, ganhava-lhes todos os lances de bola aérea. Todos, todos.
Mas como é que é possível?
Era precisamente isso que eles diziam. Tem a ver com o timing do salto e também com a inteligência de não utilizares as mãos. Se as utilizas e o árbitro percebe, é falta contra nós. Agora, se tu subires antes e conseguires controlar com o teu peito as costas do avançado, tu não estás a utilizar as mãos e o árbitro não marca falta. Então, eu saltava primeiro e ganhava.
Continuas como central quando sobes aos seniores?
Acho que há uma evolução no último ano de júnior e passo a trinco.
Ainda te lembras da primeira época como sénior?
Chegou ao Elvas um treinador que era do Estoril e levou consigo uns dez jogadores do Estoril. Quando assim é, previlegia-se sempre o jogador de confiança, o do Estoril. Agora, eu nunca facilitei. Jogasse ou não, treinava sempre mais, mais, mais, no máximo. O gajo [treinador] tinha de ir para casa a dizer “é uma injustiça, o Luís tem que jogar”.
E então?
Entrei em todos os jogos com ele.
Quantos foram?
Cinco. As coisas não correram bem para ele, porque nós não ganhámos e entrou o Carlos Cardoso, que já tinha estado no Elvas, na 1.ª divisão.
Qual foi a diferença?
Continuei a titular e fez-me capitão.
Logo?
Não me lembro bem se foram semanas ou meses, sei que fui nomeado capitão de equipa aos 18 anos de idade. E em Dezembro, o Carlos Cardoso insistiu junto do Elvas para que renovasse o contrato comigo.
E renovaste?
Por dois ou três anos. Outra do Carlos Cardoso: como ele sabia da importância de uma alimentação saudável, impôs ao clube um restaurante para mim e o meu irmão Tonito, dois anos mais novo que eu. A partir daí, com uma alimentação controlada, começámos a voar.
Fazes quantos anos nos seniores do Elvas?
Dois.
[David esquece-se da sinusite e mete-se na conversa: bem-vindo] Em que divisão?
Segunda, vá. Havia três séries: norte, centro e sul.
E depois?
Depois vou para o Estoril.
Quem é que te leva?
Carlos Manuel. Foi ver um jogo nosso e o acordo fechou-se logo aí.
Por intermédio de quem?
Por acaso, fiz uma ligeira fratura na tíbia e estava no hospital durante a conversa entre o Carlos Manuel e o meu irmão Toni. Mas soube que o Carlos queria-nos no Estoril e o meu irmão, naquela coisa de menino e da educação, disse-lhe ‘epá, isso tem que tratar com os meus pais’, ahahahahah. E o Carlos não se ficou e perguntou-lhe onde estavam os pais. O Toni indicou e lá foi o Carlos falar com eles. Na altura, o meu pai estava um pouco doente e ele falou com a minha mãe. Por essa hora, já eu estava metido ao barulho e lembro-me perfeitamente da minha mãe perguntar-me se queria ir.
E tu?
‘Eu gostava’.
E ela?
‘Então ok, vão tratar bem do menino?’
E o Carlos Manuel?
‘Esteja à vontade que isso não é problema’.
E a tua mãe?
‘Então, tudo bem’.
E vocês?
Siiiga.
[David, bem-vindo mais uma vez] Estava em que divisão?
O Estoril tinha descido, estava na 2.ª. Saiu o Fernando Santos, entrou o Carlos Manuel.
Tu e o Toni viviam juntos?
Bem perto do estádio.
E que tal?
As primeiras duas semanas foram um sacrifício.
Então?
Para comer. Epá, fomos às compras e foi a semana inteira a comer arroz com croquetes, croquetes com arroz e rissóis com esparguete. Ahahahahah, não sabíamos fazer mais nada. Às tantas, soltámos o grito: “Éééé, alto lá, isto não é vida, temos que resolver esta questão”. Perguntámos então ao senhor que nos alugou o apartamento onde é que podíamos comer bem, de forma saudável e a um bom preço. Indicou-se o Sr. António, dono de uma tasquinha atrás da bancada central.
Serviu para vocês?
Beeeem, espetacular. Acho que pagávamos 2,50€ por refeição e era peixinho fresco e carninha da boa todos os dias. Comida caseira, espetacular, espetacular.
Imagino a diferença entre o futebol da 2.ª para a 1.ª?
Era um andamento diferente e foi bom ter um treinador que conhecesse a realidade, como o Carlos Manuel. Ele percebia a realidade de onde tínhamos vindo e isso também foi extremamente importante. Só que
Só que?
Antes mesmo de iniciar a época, o meu pai faleceu e foi duro para nós os dois longe de casa. Mas nunca deixámos que a coisa se misturasse com trabalho, embora muitas vezes o semblante não fosse o melhor.
Como é que vos correu essa época?
Sempre titulares e só não subimos na última jornada.
Uyyyyy. Então?
Felgueiras-Estoril, o Felgueiras de Jorge Jesus, Sérgio Conceição, Lewis e tal, lembras-te?
Claro.
Quando chegámos ao estádio, bateram no Carlos Manuel e mostraram-nos pistolas e facas. Pensávamos que ia morrer alguém.
Porra, e o jogo?
Ganhou o Felgueiras. Olha, o José Pratas, que já nos deixou, ficou todo cagadinho. Uyyy, comiam-no vivo se houvesse alguma bronca [pausa grande] Antigamente ainda havia dessas coisas.
Acabou a época e tu?
Saí para o Sporting.
Logo assim, sem mais nem menos?
Ahahahahah, logo assim. A verdade é que houve um jogo-treino entre Estoril e Sporting. Uyyyy, não ‘tás a ver, os Amunikes e Naybets vinham, batiam no menino e caíam. “Quem é este gajo pá?” Ficou no ar e, no final da época, o Carlos Manuel chama-me a casa dele.
Vem aí coisa?
Estava acompanhado de um agente e diz-me: “Tenho uma surpresa para ti, o Sporting está interessado em fazer contrato”.
Imagino-te.
Então bora, disse-lhe. E o Carlos Manuel todo preocupado com o contrato, se não queria saber disto ou daquilo.
E tu?
Eu não, só quero ir para o Sporting. Quero lá saber quanto é que é, quanto é que não é, isso depois logo se vê. Ahahahahahah. Na verdade, só comecei a discutir contratos em Itália, quando um napolitano armado em esperto disse-me uma coisa e, depois, em Paris, deu-me outra. Antes disso, queria lá saber. Estava no Sporting, pá.
Mudaste de casa, claro.
Ya, fui para Lisboa.
Onde?
Até encontrar uma casa, fui viver com o Lito, que estava a jogar no Belenenses. E dei-me muito bem, a minha vida melhorou.
Então?
Epá, o Lito é um artista na cozinha. Faz tudo bem.
O quê, por exemplo?
Tudo. Tudo é tudo. Aprendeu com a minha mãe e aprimorou com as minhas irmãs. Craque. Ahahahahah.
E esse Sporting, que tal?
Era uma equipa, mas faltava alguma identidade, digamos assim, para sermos verdadeiramente candidatos ao título. Aqueles problemas de sempre, os das divisões internas.
E tu, no meio de tudo isso?
Era um outsider, digamos assim. Era um menino do Estoril, que tinha jogado no Elvas dois anos antes. O Sporting perdeu alguns jogadores nesse Verão, como o Paulo Sousa para a Juventus, e fez também muitas contratações para aquela posição de 6. Há um episódio que demonstra a incerteza do meu início: no dia em que viajamos para estágio na Holanda e eu estou no estádio à espera de saber se vou ou não.
Então?
Como foram feitas muitas contratações, nem todos foram. Eu estou ali no vai-não vai, já com o plantel quase todo dentro do autocarro, e pergunta-me um diretor ‘então, está aqui a fazer o quê?’
E tu?
‘Não sei, estou a espera que me informem’. Foi assim mesmo.
E?
Lá chegou o ok do Queiroz. Cinco dias depois, só cinco dias, o Queiroz chama-me ao quarto dele e eu ‘fooooogo’. Abre-me a porta e diz-me ‘só para dizer que estou muito contente com o teu trabalho, que vais fazer parte do plantel, continua só a fazer o que tens feito até aqui’. Ahahahahah, o Carlinhos pá.
Que época é essa?
A que ganhámos a Supertaça ao Porto, em Paris.
Já com o Octávio?
Isso.
E o Queiroz?
Foi com o Real Madrid e quis levar-me.
Hein?
É uma história gira. Numa bela tarde de folga, estou com a esposa em Nápoles e toca-me o telefone. É um amigo meu, que é agente. “Olá Luís, está tudo bem? Queres vir a Madrid?”.
E tu?
‘Até ia, mas eu estou a trabalhar, não tenho a tua vida’.
E ele?
‘Não é para turismo, é para vires jogar’.
E tu?
‘Jogar? Mas jogar onde?’
E ele?
‘Para vires jogar aqui. Espera aí, vou passar-te a uma pessoa’. No segundo seguinte, fala o Queiroz com aquelas tangas habituais do pessoal da bola. ‘Então artista, esqueceste-te de mim pá? És jogador à minha custa, fui eu que te levei para o Sporting e não me dizes nada? Tás cheio de dinheiro.’ Ahahahahahah.
E tudo?
‘Ai o mister é que treina o Real Madrid e eu é que estou cheio de dinheiro?’
E ele?
‘Preciso de ti aqui pá.’
Uauuuuu. E tu?
Lembras-te da altura dos galácticos? Era só pessoal lá para a frente. O único gajo lá atrás era o Makélélé e ele tinha uma proposta do Chelsea.
Lembro-me disso, claro. Foi uma caldeirada.
Ele já estava cansado de Madrid e queria ir para Inglaterra, só que não estava fácil a negociação e o caraças. Então o Queiroz disse-me ‘olha, faltam cinco dias para fechar o mercado e estamos só aqui a resolver a questão do Makélélé; tu entretanto vens, ninguém vai saber de nada e quando eles se aperceberem, tauuuu, já foste apresentado.’
Cinco dias?
Cinco dias com a mala feita em Nápoles, à espera de um telefonema.
E?
Atrasa aqui, atrasa ali, o Makélélé briga, quanto é que pagam, o Chelsea paga, o Chelsea não paga. Fecha o mercado em Espanha, só que o de Inglaterra continua aberto. Ele sai uma semana depois e eu não vou para Madrid. Vê lá a confusão.
Xiiiiiii. E tu em Nápoles?
Ya, com o Nápoles na 2.ª divisão.
Jura?
Juro, o Nápoles na 2.ª. Agora imagina, Vidigal sai da 2.ª italiana para os galáticos. Era impressionante. Já viste a confiança do Queiroz em mim? Quando algum treinador gosta de nós, não há hipótese. É até ao fim.
Quando sai o Queiroz, como é a tua vida no Sporting do Octávio?
Tranquilo. Aliás, no tal 3-0 ao Porto em Paris, para a Supertaça, eu estou nos três lances do golo, com duas assistências e um penálti cometido sobre mim.
[David, genial, mete a colherada] Fizeste duas assistências?
O pai é que é discreto, pá. Os outros contam histórias e mais histórias, eu aqui na minha. Se alguém tivesse tido a oportunidade de ir para o Real Madrid, o mundo inteiro já sabia. Comigo, ninguém sabia. Nem tu. O pai não contou a história nem aos manos.
Então quem é que sabia? [David, o jornalista]
Só eu e a mãe.
O que mudou do Queiroz para o Octávio?
O discurso.
Mais incisivo?
É incisivo, mas a objetividade… É mais para o exterior e acho que o foco de um treinador tem de ser para o grupo de trabalho. É lógico, podes às vezes desviar a atenção, podes sair um bocadinho daquilo que é o normal, mas o Otávio não conseguia estar nem 100% com a equipa, nem 100% contra o mundo, porque precisava de alguns favores, da comunicação social. Um treinador e um presidente têm que saber gerir isto muito bem; não podes disparar para todo o lado, se não és comido vivo. Tu tens que dar uma aqui, buscar outra ali, tem que haver inteligência. Na altura do Porto, o Otávio podia fazer o que quisesse, mas depois vem para Lisboa e já não tem quem o proteja. É diferente e tens que usar outra estratégia. Aqui, em Lisboa, é uma coisa. Lá em cima, no Porto, é outra.
Porto. A tua estreia pelo Sporting é com o Porto, certo?
Ya, nas Antas. Sabes a que posição?
Nem ideia.
Lateral esquerdo, ahahahahah.
Como assim?
Lembras-te do Edmilson, aquele loirinho bem perigoso?
Claro, uma máquina. Depois ainda jogou no Sporting e foi campeão.
Esse mesmo. O Queiroz vira-se para mim e ‘tens que pará-lo, ele é muito perigoso’.
E tu?
Mister, eu não sou lateral-esquerdo.
E o Queiroz?
‘Tranquilo, confia’.
[David volta a dar que falar] E sabias jogar a lateral, fazer aquelas trocas?
Aahhhhhhhh, trocas? Quais trocas? Aquilo era só para defender, ‘tás a brincar? Se chegasse à linha de fundo e quisesse cruzar, caía.
E correu bem ou mal?
Correu, correu. Ahahahahah. Perdemos 2-1, mas correu, correu.
E o Edmilson?
Cagou-se todo.
Como era esse Sporting? Dentro do balneário, pergunto.
Muito bom grupo, tudo gente boa.
Havia camaradagem fora do relvado?
Muitas. Aliás, demais e hoje lamento um pouco. Eram todos amigos. Aquilo depois dos treinos era sem cerimónias, tipo ‘vamos almoçar?’ e, boooooom, já éramos uns dez ou mais. Íamos para o Pneus, ali em Bucelas, e o convívio era grandioso. Comíamos carne, mamávamos sangria e falávamos de tudo.
É o Sporting que se apura pela primeira vez para a Liga dos Campeões?
Eliminámos o Beitar na pré-eliminatória e foi extremamente importante pisar o chão de Jerusalém pela primeira vez. Sou cristão e é sempre um momento importante estar no lugar onde Jesus pisou. E há mais histórias. No ano seguinte, voltámos a Israel para jogar com o Maccabi Haifa e somos acordados durante a madrugada com a explosão de um carro mesmo à frente do nosso hotel. A coisa lá se resolveu com um ‘tranquilo, não há problema, isto é só uma coisa que já está a ser resolvida pela polícia.’
E histórias com adeptos? Como estiveste em Itália…
Em Itália, o problema é crónico entre adeptos e adeptos, entre adeptos e equipa. Só em Udinese é que não houve problemas. É uma paz de espírito, é o melhor lugar para se jogar futebol. É ‘allez Udine, allez Udine’ durante o jogo e, durante a semana, podes passar no centro da cidade. Volta e meia, lá aparece um gajo que quer um autógrafo ou uma fotografia. Em Nápoles, nossa senhora.
Tudo diferente?
É uma loucura. A minha mulher deixou de sair comigo e até eu comecei a sair menos vezes.
Porquê?
Não dava para sair. Ainda hoje, vou a Nápoles e é uma dor de cabeça. Vêem-me e é José bla bla bla. Agora, tanto dá para idolatrar como para o inverso.
O tal adeptos vs equipa?
Ya. E é duro, bem duro. Aquilo era agressões de meia-noite.
E tu?
Nada, digo-te. Agora, uma vez, seguiram o nosso capitão até casa, esperaram que ele saísse do carro para abrir a cancela do condomínio e pum pum pum.
Pum pum pum?
Armados com tacos de basebol, deram-lhe para valer. Aquilo meteu hospital, estilhaços de vidro e o caraças.
Porra.
É dose, amigo, é dose. Houve outro artista que foi jogar para o Nápoles, italiano e pago a peso de ouro. Chegou lá com uns quilos a mais, gordinho, e não jogava. Mas desfilava no seu Ferrari vermelho e tal. Um dia, entraram em casa dele, espetaram-lhe a faca aqui [Vidigal indica o pescoço] e disseram-lhe só isto ‘tu aqui tás no lugar errado, sabes quantas vidas tenho que viver para ganhar o que tu ganhas? E estou aqui a defender o meu clube e tu ‘tás aqui a fazer o quê: a passear de Ferrari? Não penses que vens aqui roubar o nosso dinheiro. Tens duas possibilidades: ou começas a pedalar ou vais à tua vida, desaparece daqui”.
C’um catano.
Sabes o que lhe aconteceu? Foi-se embora. Estávamos em dezembro, período de mini-férias e nem voltou em janeiro. Ahahahahah.
https://www.youtube.com/watch?v=Q2RJWAMDx0w
Tu apanhas o Edmundo no Nápoles?
Que animal, ahahahahahah.
Como era ele?
Epá, o Edmundo vivia num mundo à parte, não cheguei a perceber em que estado é que ele vivia. Era despassarado, capaz de um golpe de magia e, no segundo seguinte, virar o mundo do avesso.
Davas-te bem com ele?
Sempre na boa, cinco estrelas. Falávamos muito, até pela questão linguística. O Edmundo era capaz de falar com um diretor do Nápoles como se fosse um empregado do café da esquina.
E nos treinos?
Era um anjinho. Só que, de repente, parava-lhe o cérebro e dava um pontapé em alguém.
Apanhaste alguém parecido no Sporting?
Claro, tu sabes quem. Ahahahahahah. Vou dizer-te uma coisa: tanto ao Edmundo como ao Sá, falta-lhes lá alguma coisa, só que o Sá é muito mais imprevisível. O Edmundo é aquilo e tu pensas ‘é um gajo desligado, pode-lhe acontecer a qualquer momento. O Sá tinha coisas de me deixar a pensar ‘este gajo não existe’. O gajo discutia com o sol, discutia com a relva, discutia com o vento. Mas discutia mesmo. Se falhasse um golo no treino, olhava para o sol e gritava ‘o que é esta merda pá? Só comigo, se fosse outro não estavas aí’. Ahahahahahah. No estágio, calhava dividir o quarto com ele volta e meia.
E então?
Estamos num estágio, só homens, e vou à casa de banho para urinar. Estás a ver o barulho que fazes? O Sá dizia-me “fosgass oh Vidigal, tenho que estar aqui a levar com o teu mijo, caraças?” e eu ‘O que é que queres que eu faça? Queres que mije para dentro de uma garrafa ou quê?’ Ahahahahah. Ouve, ele dizia-me aquilo chateado, mas chateado mesmo, não era aquela coisa de palhaçada.
https://www.youtube.com/watch?v=z2H2E43Bg84
Jogaste mais anos na 1ª divisão italiana do que na 1.ª portuguesa.
Verdade.
Só que antes de ires para Itália, apanhaste um treinador italiano no Sporting.
O Materazzi.
Como é que foram essas semanas intensas de italiano?
Pá, foram difíceis. Foram difíceis porque ele queria expressar-se e nós nem sempre apanhávamos a expressão. Lembro-me de um caso bem específico em que ele queria que fôssemos mais malandros, mais espertos no que diz respeito a enganar o adversário e enganar o árbitro. No fundo, ser vivo. E ele falava em cattiveria e nós nada. Cattiveria é um bocadinho isso, ser malandro, bandido. O único desse plantel do Sporting que tinha experiência de italiano era o Ayew, pelo passado no Lecce, mas nem ele sabia o que era cattiveria e andámos ali às voltas com aquilo. Só muitos anos depois, na final do Mundial-2006, quando o filho dele leva a cabeçada do Zidane é que percebemos ‘ah, era isto que o gajo queria dizer.’ Ahahahahahahah.
…
Foi pouco tempo com o Materazzi, cinco semanas ou isso. Cinco semanas em que aprendemos muito, atenção. Acho que a comunicação falhou, mas a pré-época com ele deu-nos bagagem para o título de campeão, sabes?
Então?
Foi uma pré-época dura, muito difícil. Foi do caraças, o que vi de colegas a vomitar e a desmaiar nem te conto.
Conta, vá lá.
Foi nas Caldas da Rainha. Primeiro ponto, a alimentação. Chegámos ao estágio e almoçámos que nem uns reis, como sempre. Buffet, como sempre: carne, peixe, sobremesas, frutas, doces, tudo à descrição. O gajo olhou para aquilo e estranhou mas nada. Ao jantar, outra vez o buffet. Aí, o gajo olhou e perguntou ao doutor se era assim todos os dias. Como a resposta foi positiva, o gajo passou-se, como quem diz ‘é pá, mas eu tive a trabalhar e estão a estragar o trabalho já? Isto não pode ser, assim não vamos a lado nenhum, não faz sentido estarmos a trabalhar, mais vale irmos de férias todos, comemos e bebemos e depois vamos jogar’. Nós habituados ao estilo à lagardère, entre comida e refrigerantes, tivemos de abrandar.
Imagino.
O pior de todos que já apanhei era o Zeman, no Nápoles. O Zeman matava-nos a treinar e depois racionava a nossa comida. O que vinha para a mesa era tudo doseado, x gramas de carne, x gramas de peixe e por aí fora. Se como pasta, não como pão. Muita fruta e doces só sem creme.
Nesses treinos do Sporting, tu vomitaste alguma vez?
Eu não, fui sempre um animal. E também era cattiverio e, acima de tudo, conhecia-me muito bem. Só assim é que fui capaz de jogar com uma rotura dos cruzados durante os 90 minutos do Holanda-Portugal de qualificação para o Mundial-2002.
Chiça.
Ya. Quando cheguei a Nápoles, fui operado e só voltei a jogar essa época em março. Daí que tenha falhado o Mundial-2002, aquele que fomos eliminados à primeira, num grupo com EUA, Polónia e Coreia do Sul.
Julgava que te tinhas lesionado num Nápoles-Juventus.
Nãããããã, esse é o jogo anterior ao Holanda-Portugal. Curiosamente, encontro-me com o Van der Sar, guarda-redes dessa Juve, à porta do controlo anti-doping. Três dias depois, um Van der Sar vs Vidigal em seleções. Foi em Roterdão e é um jogo com história.
Conta, sem medos.
O meu companheiro de quarto foi o Pauleta e ele estava inquieto.
Porquê?
‘Oh Vidigas, ‘tou lixado. O Tóliveirinha chamou-me ao quarto dele e, fogo, encostou-me à parede. Disse que eu estava aqui por favor e que, por ele, nem metia cá os pés. Só que vai dar-me uma última oportunidade e vou jogar amanhã. Se não correr bem, nunca mais.’ Só estratégias à Porto, ‘tás a ver?
E depois?
Perguntei-lhe se acreditava em Deus e ele disse que sim. Orei por ele. “Senhor, tranquilize o coração do Pedro e tal, que amanhã ele tenha a oportunidade de fazer um bom jogo.”
E o Pauleta?
O homem faz-me a assistência para o 1-0 do Conceição e marca-me o 2-0. E, repara, ele não estava a jogar no Deportivo. O titular era o Makaay, curiosamente holandês. O Makaay espirrava e era golo. O Makaay tropeçava e era golo. [Vidigal olha para a frente, olha para trás, tudo vazio e cá vai disto] O Makaay peidava-se e era golo, ahahahahahahahah. O Pedro queixava-se ‘fogo, holandês d’um piiiiiiiiiii’. O Makaay era lixado, mas a partir daí, olha, o Pedro nunca mais parou: Bordéus e PSG.
Deixa-me voltar atrás, mais uma vez.
Ahahahahahah.
Ri-te, ri-te, a culpa é tua. Entrelaças as histórias.
Ahahahahahah.
Aquele Sporting 1999-2000. Vocês, jogadores, sentiam no ar a saída do Materazzi?
Epá, sim, percebia-se. Num clube grande, as notícias saem, os nomes aparecem e percebes o desgaste. Infelizmente, o homem saiu. E foi uma surpresa a chegada do Inácio.
Que tal?
Ele chamou a responsabilidade dos jogadores, desresponsabilizou o Materazzi pelos maus resultados, apelou ao profissionalismo e ao espírito de sacrifício. Mexeu um bocadinho com o orgulho dos jogadores. No fundo, aquelas coisas que os velhos sabem de ginjeira porque experimentaram ao longo da vida. O Inácio, como jogador de Sporting, Porto e seleção, sabia o que era necessário para dar a volta e fez com que a partir dali as coisas acontecessem de forma quase natural. Não trouxe nenhum toque de magia, mas foi suficiente para nós arrancarmos dali para uma época maravilhosa.
O que aconteceu?
Há coisas que acontecem por acaso. E, por acaso, estou ligado a essa mudança, num 1-0 ao Campomaiorense. É meu, o golo a cinco minutos do fim. Num jogo horrível em Alvalade, em que o Campomaiorense até tem mais oportunidades de marcar que o Sporting, é o Luís, o improvável Luís, quem faz o golo. A partir daí, tudo mudou. Pá, eu não gosto de falar em sorte no futebol, não gosto porque a sorte dá um trabalho do caraças, como dizem alguns, mas o Inácio tirou proveito desse momento. É simples: se não ganhássemos ao Campomaiorense, teríamos ficado a não sei quantos pontos e teria sido a mesma coisa de sempre, as dúvidas dos adeptos, as dúvidas sobre o treinador novo, as dúvidas sobre o valor da equipa.
Equipa essa que começava em Schmeichel e acabava em Acosta.
Dois monstros do futebol, já trintões. Mas até os monstros têm as suas fragilidades, sabes? Lembro-me bem da chegada do Beto Acosta. Ele tinha um problema de saúde por resolver e o próprio Sporting estava assim-assim. As coisas não estavam a correr propriamente bem e os golos não apareciam. Como eu ainda andava solteiro, era o primeiro a chegar aos treinos e o último a sair. Como o Beto não tinha trazido a família para Lisboa, também passava muito tempo em Alvalade e era costume cruzarmo-nos. Ele cheio de dúvidas, tipo ‘como é possível não fazer golos aqui, quando já fiz na Argentina, em França e em Espanha; como é possível?’, e era, mais novo, sem tanta experiência, a tranquilizá-lo.
Como?
Motivação, tipo “Tu fizeste golos aqui e fizeste golos ali, tu vais fazer golos também em Portugal; é um momento menos bom que estás a viver, mas vais ver que é uma questão de te adaptares, conheceres bem o clube e os teus colegas”. Felizmente, as coisas aconteceram mesmo e a amizade ainda hoje se mantém.
E o Schmeichel?
O Peter Schmeichel? Todas as notícias do Vidigal relativamente à possibilidade de ingressar num clube inglês foi sempre cortesia do Schmeichel. Digo-te, o Schmeichel ficou entre aspas fã do Luís Vidigal. Sempre gostou do Luís Vidigal e propôs o meu nome a vários clubes ingleses, entre Arsenal e Manchester United.
E então?
A coisa acabou por não se concretizar, porque saí para Itália. Agora, o Schmeichel era um monstro. O melhor de tudo era que não se achava vedeta. Simplesmente, não havia aquela separação entre o campeão europeu e o resto. Nada disso. Pelo contrário, íamos juntos almoçar um grande bacalhau a uma tasca. Foram tempos do caraças, bem bons.
Esse Sporting do Inácio podia ter feito a dobradinha?
Podia.
O que falhou?
A festa do título foi demais. Não foi fácil controlares-te ao fim de uma seca de 18 anos. Na nossa cabeça, não estava o chip do ‘ainda temos a Taça de Portugal para jogar.’ Quer dizer, ganhámos 4-0 no Vidal Pinheiro e, de repente, vês o país inteiro, para não dizer o mundo inteiro, de verde e branco. Pá, foi uma coisa que dificilmente se voltará a ver. Foi ver gente na berma da autoestrada com bandeiras e cachecóis. Na berma da autoestrada, vê bem. Berma. Foi uma coisa extraordinária, foi ter que dividir o plantel p’ra conseguir dar atenção a todos os sportinguistas, porque o estádio estava à pinha, a praça da câmara estava cheia e o marquês estava a transbordar.
É um ano sensacional: és campeão nacional pelo Sporting e jogas o Euro-2000.
Verdade, foi épico.
Correu-te bem o Euro-2000?
Nem por isso, aqueles primeiros 20 minutos. Ahahahahahahah.
O que pensaste quando a Inglaterra faz 2-0?
Logicamente, vamos ser goleados.
E virámos para 3-2.
Porque a consciência acaba por tomar conta de ti e começamos a olhar uns para os outros. Quer dizer, tínhamos do meio-campo para a frente jogadores como Figo, Rui Costa, João Pinto e atrás quase todos estavam a passar a melhor fase das carreiras. Pelo meio, uns miúdos como eu e o Nuno Gomes. Olhas para a malta e pensas melhor, tipo ‘vamos lá reorganizar isto’. Vem o 2-1, depois o 2-2, finalmente o 3-2. Não é um milagre, é, isso sim, muito trabalho, muito sacrifício. Depois 1-0 à Roménia do Hagi e o 3-0 à Alemanha.
Tu jogaste nesse 3-0?
Entrei nos minutos finais. Entrei para a festa, ahahahahah.
Como é que estava o Sérgio Conceição nesse dia?
Ele sempre se soube controlar, sempre foi inteligente. É logico que há uma euforia, fazer três golos ao Kahn é de homem. Mas aquilo que mais me ficou até nem foi a alegria do Conceição, foi a cara dos alemães. Eles estavam doentes, cegos, queriam comer-nos vivos. A primeira medida que tomaram depois desse Europeu, que pouca referência se fez a isso, foi enviar um faxe à federação portuguesa a marcar um jogo particular para a desforra. Ahahahahah.
Nos quartos-de-final, aparece a Turquia.
Já é a eliminar e isso traduz-se em alguns cuidados. Marcamos de cabeça e eles falham um penálti, defendido pelo Vítor. Vamos meio cagadinhos para o intervalo. Na segunda parte, o 2-0 é cedo e já estamos com a cabeça nas meias-finais.
Segue-se a França.
Sabes, nós íamos para os jogos na boa e dizíamos “uii, hoje vamos levar poucas vamos”. Com a França então, ‘tás a ver? Era uma super França, campeão do mundo em 1998 e com uma geração fantástica. Marcámos primeiro, eles empataram e o Zidane marca de penálti durante o prolongamento.
Antes do Euro-2000, qual a tua carreira na seleção?
Antes do AA, faço os Jogos Olímpicos Atlanta-96. Sou o único português totalista. Eliminámos a França dos Trezeguets, Candelas e Pires dessa vida nos quartos-de-final.
E mais?
Houve cenas do caraças nesses Jogos. Um dia, estou muito bem no quarto, com o Beto, do Sporting, e ouço as notícias na televisão: ‘Paquistanês desvia um avião da Ibéria aérea não sei o quê’. Depois, até se veio a saber que o gajo nem era terrorista, só queria pedir asilo porque estava a ser perseguido lá pelos não sei quantas. E eu para o Beto: “fogo, já viste isto? Mais um maluco, estes gajos, bombas e o caraças”.
E o Beto?
‘Mas para onde, onde?’
E tu?
‘Desviou o avião para os EUA, Miami’. Sabes onde é que estávamos?
Miami?
Ya, Miami. Estou a olhar pela janela do hotel e vejo o avião. Estávamos mesmo perto do aeroporto e eu a ver a notícia ao vivo, em primeira mão. Aquilo lá nos EUA era uma coisa: mesmo nós, jogadores, éramos farejados pelos cães antes de entrarmos para os autocarros da equipa. Mesmo à Estados Unidos.
Eliminamos a França e, depois, nas meias-finais?
Apanhámos com a Argentina dos meninos.
Quem?
Era o Simeone, era o Zanetti, era o Ortega, era o Claudio López, era o Sensini, era o Crespo, era o Gallardo. Uma equipaça. Empatámos com eles na fase de grupos e fomos eliminados nas meias Na final, o Amunike vingou-se por nós. Foi dele o 3-2 decisivo. Craque, o Amunike. Era um bicho, um campeão nato.
Perdemos com a Argentina mas ainda jogamos o 3.º e 4.º lugares.
Esquece, esquece, 5-0 com hat-trick do Bebeto. Quem era o seu companheiro de ataque? Ronaldo fenómeno. Esquece. Esse jogo só tem uma história gira.
Claro que tem.
No final do jogo, o Aldair pede-me para trocar de camisola. De repente, quase a coxear, o velhote do Zagallo chega-se ao pé do Aldair e tira-lhe a camisola das mãos.
O quê?
‘Essa é para mim’, diz o Zagallo.
E o Aldair?
‘Ò mister, como é que é para você?’
E o Zagallo?
‘Não, não, número 13 tem que ser para mim’. E ele lá ficou com o meu número 13. Não sei porquê, se calhar coleciona camisolas 13.
E o Aldair?
‘Ok, o mister é que sabe’.