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ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Violação, abuso de menores, droga. Os outros crimes de Christian Brueckner, o novo suspeito do caso Maddie

Aos 17 anos já se sentava no banco dos réus por abuso sexual de crianças, em 2019 foi julgado na Alemanha por violação de uma mulher de 72 anos no Algarve. Agora está a ser investigado no caso Maddie.

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Sentado perante o Tribunal de Braunschweig, na Alemanha, Christian Brueckner ia folheando uns documentos enquanto disparava repetidamente nomes de ex-namoradas. Insistia para que os juízes as ouvissem como testemunhas, para que lhes pudessem garantir como a sua vida sexual foi sempre normal. Queria, assim, ter provas suficientes para mostrar que, por essas razões, não podia sido ele a violar uma mulher de 72 anos, em setembro de 2005, na Praia da Luz, no Algarve. Eloquente e concentrado, o alemão de 43 anos passou parte do julgamento a interromper as testemunhas que ali foram responder às perguntas dos juízes para chamar-lhes mentirosas, como relata o jornal local Braunschweiger Zeitung. Raramente ficou em silêncio e, mesmo depois de ouvir a sentença de sete anos de prisão pela violação, respondeu: “Se eu o tivesse feito, teria apanhado 10 anos”.

É por este crime que o alemão agora suspeito de raptar e matar Madeleine McCann se encontra a cumprir pena. Foi condenado a 16 de dezembro de 2019 — quase 15 anos depois da data de um crime que aconteceu em Portugal, prescreveu e acabou julgado na Alemanha. Mas a vida ligada ao crime começou muito antes, tinha apenas 17 anos e o sonho, que partilhava com a namorada de então, de deixar a Alemanha e emigrar. Acabou por escolher Lagos, em Portugal. “Nós não sabíamos nada sobre Portugal. Fomos para Lagos porque gostamos muito do nome“, contou durante o julgamento mais recente.

Quem é o homem que a polícia alemã acredita que terá matado Madeleine McCann?

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Tenha sido por acaso ou não, certo é que foi em Lagos que Christian Brueckner continuou a fazer engrossar o seu registo criminal. Esta quarta-feira, no comunicado em que a polícia alemã anunciava as suas suspeitas, era já avançado que, no Algarve, o alemão faria biscates para ganhar dinheiro, mas também estava referenciado por pequenos roubos, em hotéis por exemplo, e por tráfico de droga.

Ao que o Observador apurou — e como à data os registos da GNR ainda não estavam informatizados —, é difícil traçar-lhe um rasto criminal. Na base de dados do Ministério Público, no entanto, não consta qualquer processo em seu nome, apenas cinco pedidos de colaboração judiciária no âmbito de dois processos: um processo de 2005, que acabou arquivado em Portugal, mas que prosseguiu na Alemanha — o da violação da mulher norte-americana de 72 anos; e um processo aberto em 2007, arquivado um ano depois e reaberto em 2013, sem, no entanto, qualquer novo arguido — o processo Madeleine Mccann.

Christian Brueckner é agora suspeito formal do desaparecimento e homicídio da criança inglesa. O seu registo criminal, porém, é muito mais vasto ainda e conta com, pelo menos, 17 entradas por crimes cometidos ao longo de mais de 16 anos, segundo documentos de tribunais alemães e portugueses consultados pelo Observador e que podem vir a ser fundamentais na resolução do mistério do desaparecimento de Maddie.

O casal McCann não tem desistido de procurar a filha, mesmo recorrendo a investigadores privados

AFP via Getty Images

Sentou-se no banco dos réus com 17 anos. Saiu da prisão, começou a traficar droga e veio para Portugal

O primeiro contacto que Christian Brueckner teve com a justiça aconteceu em 1994. Nesse ano, enfrentou pela primeira vez um julgamento. Tinha 17 anos, era ainda um jovem e já respondia por abuso sexual de crianças. Nesse ano, o tribunal distrital de Würzburg condena-o a dois anos de prisão, dos quais só acabaria por cumprir uma parte. A punição não o reabilitou. Após cumprir a pena, mudou-se da Baviera para o norte do país, onde se envolveu em tráfico de drogas e em roubos, escreve a revista alemã Der Spiegel.

Poucos anos depois, já em 1999, chega a Portugal pela primeira vez, na companhia da namorada. “Tínhamos uma tenda connosco e fomos acampando”, contou ao tribunal. Chegado ao Algarve, o jovem casal conheceu outros alemães, que arranjaram empregos para os dois, mas Christian Brueckner planeava começar o seu próprio negócio, conta o jornal Braunschweiger Zeitung.

"Se eu o tivesse feito [violado uma mulher de 72 anos], teria apanhado 10 anos"
Christian Brueckner durante julgamento em 2019

À data com cerca de 22 anos, o jovem acabaria por não abrir qualquer negócio nem tão pouco parecia sustentar-se do emprego que os alemães lhe tinham arranjado. As testemunhas ouvidas no tribunal, no processo de violação de uma idosa  relataram que Brueckner chegou a ter problemas com a polícia por roubar gasolina e outros bens. “Provavelmente entrou num ou outro apartamento através de janelas abertas. Mas ele nunca falou comigo diretamente sobre os ganhos que fazia”, contou uma testemunha, explicando que ela própria também nunca quis saber mais sobre isso, relata o jornal Braunschweiger Zeitung.

Nos anos que se seguiram, entre 1999 e 2007, o alemão viveu numa casa a pouco mais de três quilómetros do Ocean Club, o aldeamento turístico na Praia da Luz onde a família McCann estava a passar férias quando a criança desapareceu. Durante esses onze anos de vida no Algarve, passava “alguns curtos períodos na Alemanha”, segundo adiantou a polícia em comunicado.

"Nós não sabíamos nada sobre Portugal. Fomos para Lagos porque gostamos muito do nome".
Christian Brueckner durante julgamento em 2019

Em 2005, agrediu, violou e roubou uma idosa de 72 anos na Praia da Luz

Eram cerca de 22h30 quando Christian Brueckner entrou, de cara tapada e com uma cimitarra (uma espada de lâmina curva) de cerca de 30 centímetros de comprimento, na casa de uma norte-americana, então com 72 anos, na Praia da Luz — a cerca de um quilómetro do local onde vivia. Aproveitando o facto de a porta do pátio estar aberta — era setembro e ainda estava calor —, o alemão entrou e foi encontrar a idosa no escritório, a escrever uns emails. A vítima vivia sozinha desde que o seu marido morrera, em 1998. Pouco pode fazer para se defender. Durante cerca de 15 minutos, Brueckner amarrou, amordaçou, agrediu, violou e roubou a mulher, descreve a acusação alemã.

O caso só chegaria a um tribunal muitos anos depois — na Alemanha e não em Portugal, onde nunca foi identificado qualquer suspeito e o caso acabou por prescrever. À data do julgamento, em dezembro de 2019, Christian Brueckner tinha já cerca de 40 anos e a sua vítima 86 — razão pela qual não pôde viajar dos Estados Unidos, onde vive agora e para onde se regressou após o crime. No seu lugar, foi um inspetor da polícia alemã relatar o que a mulher norte-americana lhe dissera: explicou que não conseguiu reconhecer o suspeito porque, na altura, ele estava com a cara tapada — apenas conseguiu perceber que era musculado e falava mal português, relata o Braunschweiger Zeitung.

O suspeito terá vivido nesta casa até 2007, no Algarve

D.R.

O inspetor também relatou, com as palavras da vítima, como o crime teria ocorrido. Segundo essa memória, depois de a intercetar no escritório, Christian Brueckner empurrou-a para o quarto, onde a amordaçou, amarrou e vendou com utensílios que, acredita, teria trazido consigo. Depois do abuso físico e sexual, o suspeito ainda lhe pediu dinheiro. A mulher foi à cozinha com ele e deu-lhe entre 80 e 100 euros que tinha na carteira. Depois, o agressor levou-a até à casa de banho e pediu-lhe para se acalmar. Só passado alguns minutos, e quando Christian Brueckner já tinha deixado a casa, é que pediu ajuda a um vizinho e chamou a polícia.

A justiça alemã acabaria por poder apoiar-se em mais do que o relato da vítima: a prova mais importante para condenar Christian Brueckner foi um cabelo encontrado nos lençóis da cama mulher norte-americana e que as perícias forenses identificaram como sendo do arguido — algo que o alemão contestou durante o julgamento. Brueckner alegou que o pelo poderia ter sido levado por um dos gatos da casa, com quem já tinha interagido. Disse que passava sempre por eles quando ia a caminho da praia. Os investigadores, porém, não tiveram dúvidas de que o cabelo pertencia ao arguido.

Esse foi um dos elementos que seguiu de Portugal, quando o caso foi aberto na Alemanha. Porque é que nunca foi resolvido em Portugal? Ao que o Observador apurou junto de fonte da Polícia Judiciária, a queixa da mulher norte-americana levou, de facto, à abertura de um inquérito no Algarve. Mas, sem suspeitos ou caminhos para a investigação, o processo acabou por prescrever. “Na altura, a investigação era feita de uma forma completamente diferente, tudo evoluiu nos últimos anos”, explicou a mesma fonte.

As provas recolhidas no local foram, no entanto, preservadas. E em 2017 voltaram a sair do arquivo, por poder haver um suspeito. Todos os elementos foram enviados para a Alemanha — que considerou poder julgar o caso, apesar da prescrição em Portugal — e a confirmação da correspondência entre o cabelo encontrado na cama da vítima e Christian Brueckner fez o resto.

Esta é a autocaravana onde terá vivido depois de sair da casa onde viveu no Algarve

D.R.

Christian volta à Alemanha e é novamente acusado: droga e pornografia infantil

Entre o crime de 2005 e a condenação de 2019, porém, o cadastro de Brueckner conta várias outras histórias. O comunicado da polícia alemã divulgado quarta-feira dá conta de que, entre entre 2007 e 2017, o arguido tanto estava no Algarve como na Alemanha. E entre o verão de 2007 e a primavera de 2008 foi apanhado dez vezes, ora a vender, ora a comprar droga na Alemanha. Até ser acusado e condenado, em 2011, a um ano e nove meses de prisão por tráfico de droga, com pena suspensa.

Três anos depois, novo processo. Em 2014, o suspeito está também na Alemanha, em Braunschweig, quando volta a ser acusado, agora de crimes de exploração sexual de crianças e pornografia infantil, que preveem uma pena até dois anos de prisão. Mas antes de qualquer julgamento voltou para Portugal. À data — explicaria já em 2019, no processo da violação de uma idosa — trabalhava muito, das “sete da manhã às 20h00”, e teve um esgotamento. A relação que tinha com a namorada falhou e decidiu voltar para o Algarve.

O processo, porém, não parou — e foi o que originou a extradição de Portugal para a Alemanha. Em agosto de 2016, com Christian Brueckner ausente no estrangeiro, o Ministério Público de Hannover decidiu emitir um mandado de detenção europeu para o obrigar a cumprir uma pena de um ano e três meses de prisão por exploração sexual de crianças e pornografia infantil. O pedido chegou às autoridades portuguesas, mas só a 12 de junho de 2017 o suspeito seria ouvido pelo Tribunal da Relação de Évora sobre a sua entrega às autoridades alemãs. “De forma voluntária e expressa”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso, não se opôs à sua própria extradição, mas levantou uma objeção importante: não renunciou ao princípio da especialidade, ou seja, aceitou ser extraditado apara a Alemanha apenas ao abrigo daquele processo, e não de quaisquer outros que pudessem estar pendentes ou em investigação.

A extradição foi decidida no mesmo 12 de junho de 2017 e cumprida 10 dias depois.

Maddie estava a dormir num quarto com os irmãos gémeos e os pais estavam a jantar fora de casa quando desapareceu

HO/EPA

O último dia em Portugal e o dia em que fala de Maddie

A última vez que Christian Brueckner esteve em Portugal terá sido a 22 de junho de 2017, dia em que, no Aeroporto Internacional de Lisboa, foi entregue pelas autoridades portuguesas às autoridades judiciárias da Alemanha, no âmbito da execução do mandado de detenção europeu para cumprimento da pena de um ano e três meses de prisão por exploração sexual de crianças.

Um mês antes, ainda no Algarve, um episódio ligá-lo-ia a um outro crime de que só agora passou a ser suspeito — e ao da idosa norte-americana que continuava, nessa altura, por resolver.

Em maio de 2017 assinalava-se o 10.º aniversário do desaparecimento de Madeleine McCann da casa onde passava férias com os pais e os irmãos gémeos, num aldeamento da Praia da Luz. As imagens a recordar o caso terão passado na televisão de um bar onde Christian Brueckner estava, já embriagado. E terá sido aí que o agora suspeito se denunciou, segundo os jornais alemães. Disse a um amigo que sabia tudo sobre o crime e depois mostrou-lhe um vídeo de uma violação. O amigo comunicou o caso às autoridades e a PJ foi para o terreno procurar casos de violação por resolver, até que encontrou o da americana de 72 anos, que vivia a um quilómetro da casa do alemão. Desde essa altura, a palavra “Maddie” não mais saiu da mira dos investigadores.

De volta à Alemanha, Brueckner cumpriu a pena de prisão de um ano e três meses por completo. E enquanto cumpria essa pena, as autoridades alemãs tentavam aumentar-lhe o tempo na prisão. Em março de 2018 há um novo contacto com o Tribunal da Relação de Évora. É que, entretanto, o Tribunal Regional de Braunschweig tinha revogado a suspensão da pena por tráfico de droga que lhe tinha sido aplicada pelo Tribunal de Comarca de Niebull, e ele teria que cumprir pena não só pelo crime de pornografia, mas também pelo tráfico de droga. Para isso, porém, era preciso que o princípio da especialidade — a regra pela qual o arguido não poderia ser perseguido judicialmente por outro caso que não aquele que originou a sua extradição — fosse afastado.

A comunicação entre os dois países é lenta, até porque as autoridades portuguesas tiveram de enviar cartas rogatórias para a Alemanha para ouvir a posição do próprio Christian Brueckner. O impasse arrasta-se tanto que Brueckner acaba por ser libertado a 31 de agosto de 2018. Teoricamente, com a obrigação de apresentar-se uma vez por mês às autoridades alemãs durante cinco anos — o que não aconteceu.

Quem é o homem que a polícia alemã acredita que terá matado Madeleine McCann?

Terminou pena e foi para Itália. Ali houve novo mandado de detenção

Era um homem livre, mas sem grandes condições. Segundo os jornais alemães, depois de ter cumprido a pena pelo crime de exploração de menores, e enquanto a justiça alemã esperava por autorização para o prender de novo para cumprir a outra pena por tráfico de droga, Christian Brueckner passou algum tempo na rua, sem casa. “À noite dormia no banco do parque, escoltado por polícias, foi stressante”, contou o próprio em tribunal quando foi julgado por violação.

Entre os dias 18 ou 19 de setembro desse ano, menos de um mês depois de ter saído da cadeia, viajou para a Holanda e, depois, para a Itália. Mas as autoridades alemãs tinham-no debaixo de olho e emitiram um novo mandado de detenção, desta vez dirigido às autoridades italianas. E é com este mandado europeu que é detido um mês depois, a 18 de outubro, e enviado de novo para a Alemanha, para cumprir mais um ano e nove meses de prisão.

Nesta altura, as relações entre as polícias alemã e portuguesa eram já mais estreitas, por causa da movimentação de uma série de alemães no Algarve. E perante a tal confissão de Christian Brueckner a um amigo, num bar, a PJ estava já a fazer um levantamento dos crimes sexuais que tinham ficado por resolver na zona da Praia da Luz, onde Maddie desaparecera e onde o suspeito teria estado por essa altura. Encontraram então a violação da mulher de 72 anos que tinha ficado por resolver até prescrever, enviaram material biológico (um cabelo) recolhido na altura pela GNR para a Alemanha e identificaram o autor do crime: o cabelo pertenceria a Brueckner, apesar de ele dizer que não.

A sua posição não evitou a acusação pelo ataque à norte-americana no Algarve. O julgamento só terminaria no tribunal da comarca de Braunschweig em dezembro de 2019, com uma pena total fixada em sete anos de prisão.

Nesse cúmulo jurídico já se incluía a pena por tráfico de droga, pendente desde 2011. Mas só um mês depois, a 21 de janeiro de 2020, o Tribunal da Relação de Évora autorizaria que o arguido cumprisse também esses um ano e nove meses de prisão, com efeitos a partir de fevereiro. Um “detalhe” que acabou por suspender o caso.

Este carro chegou a estar em seu nome, mas, um dia depois do desaparecimento de Maddie, o registo foi mudado

D.R

Sentença por violação poderá vir a ser suspensa por causa de imbróglio jurídico

É esse um dos argumento a que a defesa do suspeito se está a agarrar, tentando a suspensão do processo, cuja pena estará já cumprida em dois terços a partir de 7 de junho. Para tomar uma decisão sobre se Christian Brueckner podia ter ficado preso no âmbito deste processo, quando a detenção foi feita por mandado de detenção por crime diferente (violando o princípio da especialidade), a justiça alemã pediu em abril um parecer ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

“À noite dormia no banco do parque, escoltado por polícias, foi stressante”
Christian Brueckner durante julgamento em 2019

Uma semana antes de 7 de junho, altura em que poderia ser ponderada uma libertação, as autoridades policiais decidiram divulgar as suspeitas que também recaem sobre ele, naquele que será o seu próximo processo: o alegado rapto e homicídio da criança britânica desaparecida em 2007 do Algarve, Madeleine McCann. Uma investigação que em Portugal está a ser feita no inquérito então aberto na altura do desaparecimento — e que no último ano voltou a levar inspetores da PJ ao terreno.

E que se sabe agora dispor de algumas informações que, a serem confirmadas, poderão levar à resolução do caso: como o número de telefone que Christian Brueckner usava à data, o número que lhe ligou numa chamada de meia hora na noite do desaparecimento, uma autocaravana, um carro e a casa onde viveu, perto da Aldeia da Luz. Elementos que as polícias alemã, portuguesa e também inglesa (por envolver cidadãos britânicos) esperam que possam vir a resolver o mistério de 2007.

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