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Não é que Vladimir Putin se tenha permitido a viajar além das fronteiras russas desde que as tropas do Kremlin invadiram a Ucrânia. Mas desde esta tarde que se o Presidente da Rússia apanhar um avião para o exterior (para mais de 150 países no mundo) o mais provável é ser detido pelas autoridades no destino.
O futuro do líder russo foi traçado esta sexta-feira, quando o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de detenção contra Vladimir Putin por suspeitas de crimes de guerra relacionados com a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia.
O governante russo junta-se assim a nomes como Muammar al-Gaddafi ou Omar al-Bashir na lista de líderes mundiais na mira do Tribunal Penal Internacional. A condenação é pouco provável — só cinco casos em dezenas chegaram a bom porto — e pode inflamar ainda mais a guerra na Ucrânia. Mas é um passo importante que o Observador analisa agora em 14 pontos.
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O que está na origem desta decisão?
A Câmara de Instrução II do Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de detenção contra Vladimir Putin, Presidente da Rússia, por alegadamente ser responsável por um tipo de crime de guerra em particular: a deportação e transferência ilegais de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para território russo desde 24 de fevereiro de 2022. “É proibido, por lei internacional para as forças ocupadas, transferir civis do território onde vivem para outros”, defendeu Piotr Hofmański, presidente do tribunal.
De acordo com o comunicado de imprensa emitido esta sexta-feira ao início da tarde, há “motivos razoáveis para acreditar” que Vladimir Putin cometeu estes crimes “por meio de terceiros” e por “falhar em exercer um controlo adequado sobre os seus subordinados civis e militares que cometeram os atos”.
Há mais pessoas com mandados de detenção?
Sim: a russa Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa, também é suspeita de ter estado envolvida na deportação e transferência ilegais de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para território russo desde 24 de fevereiro de 2022. Mas a sua participação terá sido diferente da de Vladimir Putin, acredita o Tribunal Penal Internacional.
De acordo com o comunicado, Maria Lvova-Belova tem “responsabilidade criminal individual” pelos crimes em causa e terá “cometido os atos diretamente, em conjunto com outros ou através de terceiros”. Aliás, numa reunião com Vladimir Putin que foi tornada pública em meados do mês passado, Maria Lvova-Belova revelou que tinha adotado uma criança de Mariupol: “Agora sei o que significa ser mãe de uma criança do Donbass. É difícil, mas amamo-nos. Acho que podemos lidar com qualquer coisa”.
Mas o que é um mandado de detenção?
De acordo com o próprio Tribunal Penal Internacional, um mandado de detenção é uma ordem emitida para prender alguém suspeito de ter cometido um dos crimes previstos no Estatuto de Roma. O mandado é emitido para garantir que a pessoa seja julgada, não obstruir a investigação ou para impedir que continue a praticar os crimes de que é acusado ou outros relacionados.
A emissão de mandados de detenção pelo Tribunal Penal Internacional está previsto no Artigo 58.º do Estatuto de Roma, que diz que, “a todo o momento após a abertura do inquérito, o juízo de instrução poderá, a pedido do procurador, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa”. Mas, para isso, é necessário que haja duas condições prévias. Em primeiro lugar, a existência de “motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal”. Em segundo lugar, a detenção é necessária para “garantir a sua comparência em tribunal”, “garantir que não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a ação do Tribunal” ou “impedir que a pessoa continue a cometer esse crime”.
Como é que o Tribunal Penal Internacional tomou esta decisão?
O Tribunal Penal Internacional invocou precisamente o Estatuto de Roma para justificar a emissão destes mandados de detenção contra Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova. Este é o tratado internacional que criou o tribunal, em 1998, e que estabeleceu os termos das leis que se aplicam aos Estados-membros — que são, neste momento 123, incluindo Portugal. Os artigos mencionados no Estatuto de Roma são complementares às jurisdições penais nacionais.
Estes são os artigos que constam nos mandados de detenção contra Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova:
Artigo 8.º, número 2, alínea a) e sub-alínea vii. Define que a “deportação, transferência ou a privação de liberdade ilegais” é um crime de guerra porque é uma violação grave às Convenções de Genebra.
Artigo 8.º, número 2, alínea b) e sub-alínea viii. Define que também são crimes de guerra “outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais” que não estejam diretamente mencionados nas Convenções de Genebra, nomeadamente “a transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa; ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território.
Artigo 25.º, número 3 e alínea a). Declara que “será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal” quem “cometer esse crime individualmente, em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja ou não criminalmente responsável”.
Se as deportações acontecem há mais de um ano, porque é que o mandado só foi emitido agora?
Os crimes que Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova são suspeitos de terem cometido já estão a ser praticados há mais de um ano, desde 24 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas invadiram a Ucrânia e abriram guerra naquele território. Mas o mandado de detenção foi emitido agora depois de uma análise aos requerimentos que chegaram à Câmara de Pré-Julgamento II do tribunal a 22 de fevereiro de 2023 — a dois dias do primeiro aniversário do conflito armado, ou seja, há menos de um mês.
Quais são os casos concretos de crime de guerra de que Putin é acusado?
Não se conhecem os detalhes dos casos que a acusação — neste caso, o procurador do Tribunal, que recebeu denúncias de 43 países — enviou para os juízes e que motivaram a emissão destes mandados de detenção. Aliás, quase todas as informações oficiais disponíveis a propósito destes documentos baseiam-se no que consta no comunicado de imprensa publicado esta sexta-feira pelo próprio Tribunal Penal Internacional.
Esse comunicado também explica porque é que os casos não podem ser consultados: os dados relativos aos mandados vão manter-se sob sigilo “para proteger as vítimas e as testemunhas e também para salvaguardar a investigação”. Ainda assim, o Tribunal Penal Internacional entendeu que a existência dos mandados de detenção, o nome dos suspeitos e os crimes pelos quais estão a ser acusados devia ser tornado público porque “é do interesse da justiça”. Mais do que isso, as autoridades admitem estar cientes de que, como os crimes em causa ainda estão a ser cometidos, a não divulgação dessas informações “pode contribuir para prevenir a continuação da prática de crimes”.
Entretanto, Karim Ahmad Khan, procurador do Tribunal Penal Internacional, explicou em comunicado que centenas de crianças ucranianas foram retiradas de orfanatos e das próprias casas, onde viviam com as famílias, e levadas para a Rússia. Muitas delas foram depois colocadas no sistema de adoção do país.
Como reagiu a Rússia?
Maria Lvova-Belova, a comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa que foi alvo de um mandado de detenção a par de Vladimir Putin, disse à RIA Novosti que via na iniciativa do Tribunal Penal Internacional uma “apreciação” do trabalho da Comissão.
“É ótimo que a comunidade internacional tenha apreciado este trabalho para ajudar as crianças do nosso país. Que não as deixamos em zonas de guerra, que as resgatamos, que criamos condições para elas, que as rodeamos com pessoas carinhosas”, desvalorizou Maria Lvova-Belova, assegurando que vai continuar o regime que está a desenvolver no gabinete do Kremlin.
Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, também já tweetou sobre o assunto e até acrescentou um emoji à mensagem: “O Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra Vladimir Putin. Não há necessidade de explicar onde é que este papel deve ser usado”, disse o russo no Twitter, utilizando a seguir uma ilustração de papel higiénico, desvalorizando assim as consequências práticas da emissão deste documento.
Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, considerou até que “as decisões do Tribunal Penal Internacional não têm qualquer valor para o nosso país, incluindo do ponto de vista legal”. É assim porque “a Rússia não coopera com este organismo”: apesar de ter assinado o Estatuto de Roma em 2000, nunca o ratificou, tal como os Estados Unidos e a China, por exemplo. Em 2016, a Rússia abandonou-o por completo.
O porta-voz do Kremlin descreveu o mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional sobre o Presidente russo como “ultrajante” e “inaceitável”, sublinhando que a Rússia não reconhece a jurisdição do organismo. Qualquer decisão do tribunal é “nula e vazia”, reforçou Dmitry Peskov, segundo a Sky News. Questionado sobre se o líder russo teme viajar para países que reconheçam a autoridade do TPI, o porta-voz recusou responder. “Não tenho nada a acrescentar ao assunto”, afirmou.
E a Ucrânia, o que disse?
O Presidente da Ucrânia já reagiu ao anúncio do Tribunal Penal Internacional de emitir uma mandado de captura do líder russo. Nas palavras de Volodymyr Zelensky, esta é uma “decisão histórica, da qual partirá a responsabilidade histórica”.
“O chefe do Estado terrorista e uma outra responsável russa tornaram-se oficialmente suspeitos de crimes de guerra. A deportação de crianças ucranianas é a transferência ilegal de centenas de crianças para o território russo”, afirmou Zelensky no habitual discurso diário, publicado na conta de Telegram. O líder ucraniano disse que “seria impossível” levar em frente esta “operação criminosa” sem as indicações dos altos cargos russos, incluindo do Presidente Putin.
Mykhaylo Podolyak, conselheiro do presidente da Ucrânia, considerou que “o mundo mudou” com a emissão dos mandados de detenção contra Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova — “é só esperar”. “É um sinal claro para as elites da Rússia sobre o que acontecerá com elas e que nada será como antes”, disse o braço direito de Volodymyr Zelensky, adivinhando “o começo do fim” da Federação Russa “na sua forma atual e no cenário mundial”: “É um procedimento legal claro”. Andriy Yermak, chefe de gabinete da presidência ucraniana, considerou numa publicação efetuada no Twitter que a emissão destes mandados de detenção “são só o início”.
Andriy Kostin, procurador-geral da Ucrânia, defendeu que “o mundo recebeu um sinal de que o regime russo é criminoso” e de que “a sua liderança será responsabilizada”. “Os líderes mundiais pensarão duas vezes antes de apertar sua mão ou sentar-se com Putin à mesa de negociações”, escreveu ele no Twitter, acrescentando: “A Rússia está literalmente a destruir o nosso futuro. Faremos o possível para trazer as crianças para casa e responsabilizar todos os perpetuam estes crimes horrendos”.
Dmytro Kuleba, ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, também aplaudiu a decisão do Tribunal Penal Internacional e assegurou que “os criminosos internacionais serão responsabilizados pelo roubo de crianças e outros crimes internacionais”: “As rodas da justiça estão a girar”, considerou o governante numa mensagem deixada nas redes sociais.
O Presidente do Parlamento ucraniano, Ruslan Stefanchuk, também reagiu. “É um grande passo para restaurar a justiça global”, escreveu na conta oficial do Twitter. “O mundo nunca vai apertar a mão a alguém que começou uma guerra brutal na Ucrânia”, acrescentou.
Portugal já se proferiu sobre este assunto?
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, descreveu a decisão do Tribunal Penal Internacional de emitir um mandado de captura do chefe de Estado russo como o “início do processo de aplicação do direito internacional”. Em declarações aos jornalistas, Marcelo disse que é uma “realidade importante” no contexto da invasão da Ucrânia pela Federação Russa.
O juiz Filipe Marques, ex-presidente da associação europeia de magistrados MEDEL, explicou em declarações à agência Lusa que “não há condições de execução” do mandado de detenção de Putin: isso só seria viável com uma mudança de regime na Rússia.
“Em termos práticos não vejo este mandado a ser executado, a não ser em caso de mudança de regime político ou de queda de Putin e do Governo russo, numa tentativa de normalizar as relações com o Ocidente, de dizer ‘nós estamos dispostos a entregá-lo’. O que também acho muito difícil que venha a acontecer. Mas que é importante, nem que seja só em termos simbólicos, é”, disse Filipe Marques.
O que significa isto para a guerra na Ucrânia?
Piotr Hofmański, presidente do Tribunal Penal Internacional, diz ter consciência do impacto que estas iniciativas podem ter numa escalada da guerra na Ucrânia — algo para que Ryan Goodman, professor de Direito na Universidade de Nova Iorque, alertou em entrevista à CNN Internacional. Ainda assim, para o especialista, “os russos podem perceber que esta é outra razão pela qual Putin não pode continuar a servir o seu país”.
Mas “somos um tribunal”, defendeu o presidente da instituição: “Temos plena consciência de que não estamos a agir num vácuo político. Mas não podemos estar a considerar as consequências políticas”, disse em entrevista à Reuters.
Com este mandado de detenção, Putin não poderia ir à Alemanha numa visita oficial?
Nem todos os países assinaram o Estatuto de Roma, pilar do Tribunal Penal Internacional, por isso as suas regras só são válidas nos países que aceitaram segui-las. Ora, a Alemanha é um dos estados-membros do Estatuto de Roma — por isso, se Vladimir Putin for ao país, mesmo que seja numa visita oficial, será detido pelas autoridades alemãs.
Em teoria, isso não se aplica necessariamente se for a outros países que não assinaram o Estatuto de Roma, exceto se as autoridades nacionais declararem que aceitam o apelo do Tribunal Penal Internacional. Entre os países que não são signatários das regras-base do Tribunal Penal Internacional estão os Estados Unidos e a China, por exemplo. Por isso, se Vladimir Putin visitar Xi Jinping em Pequim, não será detido pelas autoridades chinesas por conta deste mandado de detenção.
Mas há dois pontos a ter em conta. Não só dois terços dos países assinaram o Estatuto de Roma, como, entre os 43 países que encaminharam denúncias sobre a situação na Ucrânia ao tribunal, alguns não eram signatários da lei por detrás do Tribunal Penal Internacional — como é o caso dos Estados Unidos. Ao fazê-lo, acabam por aceitar as consequências da investigação a essas mesmas denúncias — nomeadamente a emissão de mandados de detenção. Portanto, se Vladimir Putin for a algum desses país, o mais provável é ser detido.
O que se sabe sobre a deportação de crianças ucranianas para a Rússia?
Até agora, e de acordo com o governo ucraniano, estão a ser investigados mais de 16 mil casos de deportação forçada de crianças — mas os números reais podem ser ainda maiores, alertou Andriy Kostin. O procurador-geral da Ucrânia revelou nas redes sociais que o Tribunal Penal Internacional já recebeu mais de 40 volumes de arquivos de casos concretos de deportações ilegais de crianças, o que totaliza já mais de 1.000 páginas de evidências da prática desse crime de guerra.
Putin já foi acusado de outros crimes. Também vai haver mandados relacionados com eles?
São casos que ainda estão a ser investigados — e que, sim, podem culminar na emissão de mais mandados de busca contra Vladimir Putin. Isso mesmo foi explicado pelo presidente do Tribunal Penal Internacional, Piotr Hofmański, à Reuters: “Obviamente não significa que seja o fim da situação dos processos. Os casos podem ser expandidos. Novas alegações podem ser formuladas pelo procurador com base nas informações recolhidas”, disse, adiantando que a evolução desses processos “ainda está nas mãos do procurador”.
Que outros líderes foram alvo de mandados de detenção por parte do Tribunal?
Nos países sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, que aceitaram os termos do Estatuto de Roma para este caso em particular, são raros os casos bem sucedidos de cumprimento de mandados de detenção por crimes de guerra. Aconteceu apenas cinco vezes, incluindo com Dominic Ongwen, ex-comandante de uma das brigadas do grupo guerrilheiro “Lord’s Resistance Army”, do Uganda; Thomas Lubanga Dylo, líder da União dos Patriotas Congoleses; e Ahmad al-Faqi al-Mahdi, membro de uma milícia tuaregue, a Ansar Dine.
Entre os líderes mundiais que, além de Vladimir Putin, já foram alvo de mandados de detenção por parte do Tribunal Penal Internacional Omar al-Bashir, antigo Presidente do Sudão, e o ex-líder líbio Muammar al-Gaddafi.