[Este trabalho foi originalmente publicado a 24 de março de 2023 e é republicado agora a propósito da morte de António Lobato, conhecida esta sexta-feira.]
Naquele momento, de banho tomado e vestido com as roupas do próprio governador da Guiné portuguesa, António Lobato acreditou que os tempos de provação tinham mesmo chegado ao fim. No Palácio do Governador, para onde foi levado pelo motorista de António de Spínola, que o tinha convidado para almoçar, foi tratado com deferência e admiração. Mais do que isso: Spínola teve até o cuidado de lhe emprestar roupa quente, para tornar mais suportável o novembro em Portugal, onde não aterrava desde 1962.
“Mandou ir buscar a gabardina e uma camisola branca de gola alta e disse-me: ‘Agora vais para Lisboa, é inverno. Podes ficar com a camisola, mas a gabardina vais levar a minha casa, à minha mulher’”, recorda o piloto ao Observador. “Depois, foi ao armário e deu-me dois copos do Palácio do Governador da Guiné. Ainda os tenho”, continua a contar, para depois se levantar da poltrona e ir à sala ao lado buscar as relíquias.
Ao todo, foram 26 os militares portugueses que a operação Mar Verde resgatou, mas António Lobato era o mais graduado de entre eles. E, de longe, o que mais tempo tinha passado em cativeiro, preso pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde) a 22 de maio de 1963 e libertado a 22 de novembro de 1970, exatamente sete anos e meio depois. Aliás, o sargento Lobato era o único mencionado nas comunicações secretas trocadas durante a operação: “Tenho bordo 26 prisioneiros incluindo Sargento Lobato”, pode ler-se numa delas, enviada às 9h10 daquele dia 22, um domingo.
[Ouça aqui o primeiro episódio da série de podcast “O Sargento na Cela 7”. A história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]
Ainda a operação militar não tinha chegado ao fim e já Lobato era levado ao Orion, o navio-comandante, onde estava Alpoim Calvão. Foi lá que lhe serviram a primeira refeição digna desse nome após mais de sete anos a comer arroz — e que, sem surpresa, quase lhe provocou uma congestão. “Deram-me um bife que era uma coisa monstra, comi aquilo num instante, senti-me mal, mas mal a sério. Já não estava habituado a digerir aquelas coisas.”
Uma vez na ilha de Soga, para onde regressou toda a frota envolvida na missão, António Lobato também foi o único a ser recolhido de helicóptero, enviado pela Força Aérea Portuguesa e pilotado por um colega, com quem ainda hoje mantém contacto, o capitão Ricardo Cubas. Os outros seguiram de barco para a ilha de Bolama, e foi lá que entraram no avião que haveria de voltar a juntar o grupo na base de Bissalanca, em Bissau.
No dia 26 de novembro, quinta-feira, aterraram todos em Lisboa, eram umas 20h da noite. Nessa altura, a missão especial de inquérito enviada pelo Conselho de Segurança da ONU já estava em Conacri e o Presidente Sekou Touré continuava a apontar o dedo aos “mercenários portugueses” que, acusava, tinham conduzido o ataque — mas Portugal continuava (e continuaria sempre) a negar qualquer envolvimento na operação.
De regresso a Portugal, Lobato achava que ia finalmente ver a mulher e os pais. Mal sabia o piloto que o tempo de cativeiro afinal ainda não tinha chegado ao fim.
Preso novamente, agora à guarda de Portugal
Com uma equipa de reportagem da agência France Presse às voltas em Lisboa, à procura dos prisioneiros, António Lobato e os outros 25 entraram num autocarro militar no aeroporto da Portela e andaram durante mais de uma hora às voltas, na companhia de um coronel do Exército e de um inspetor da PIDE-DGS, que em nenhum momento lhes revelaram o que ia acontecer a seguir.
Só quando o autocarro parou à porta do Forte de Catalazete, em Oeiras, é que os prisioneiros perceberam que estavam detidos outra vez. Agora, com direito a colchões, lençóis e outras mordomias, mas, ainda assim, presos, sem autorização para abrir as janelas sequer. “As janelas e as portas estavam trancadas, e as luzes sempre acesas. Fiquei ali preso mais uma semana, mas pelo menos o PIDE tinha indicações para ir buscar tudo aquilo que eu quisesse. Se lhes pedisse um cabrito, era um cabrito que traziam”, recorda Lobato, hoje com 84 anos.
Era lá que estavam quando, no dia 29 de novembro, domingo, os jornais portugueses fizeram manchete com a notícia de que, na véspera, os militares portugueses presos em Conacri tinham conseguido evadir-se e chegar à fronteira com a Guiné Bissau. “Aproveitaram-se da confusão criada pelos incidentes políticos que têm sido apresentados como ‘invasão’”, escreveu o Diário de Notícias, a partir do comunicado difundido pelo governo em Bissau.
E foi lá que se mantiveram mais alguns dias, até que finalmente Lobato recebeu instruções para dar a entrevista que os libertaria a todos — desde que assinassem vários documentos a garantir que nunca quebrariam o sigilo e que, se alguém lhes perguntasse, diriam sempre que o Estado português não tinha tido nada a ver com a fuga. “O diretor da segunda divisão do Estado Maior da Força Aérea, o coronel Moreira, foi a Catalazete e pediu-me para ter calma. ‘Amanhã ou depois sais daqui, mas tens de inventar uma fuga e de ir à televisão dizer que fugiste’. O José Mensurado entrevistou-me na RTP, na presença do secretário de Estado da Aeronáutica, do ministro da Defesa, do ministro do Ultramar e mais outro qualquer. Não me lembro do que disse! Mandaram-me inventar uma fuga, e eu inventei uma fuga”, ri-se o piloto, mais de 50 anos depois.
Só depois da entrevista — gravada, não fosse o sargento fugir ao combinado —, é que António Lobato, então com 32 anos, pôde finalmente encontrar-se com os pais e a mulher, Maria dos Anjos, que estavam à sua espera no Estado Maior da Força Aérea, então na Avenida da Liberdade.
Pela primeira vez em sete anos, seis meses e uma semana estava livre. Mas ainda estava longe de recuperar a vida que tinha deixado em suspenso no dia em que aterrou de emergência num campo de arroz na Guiné Bissau.
Uma carta para Marcello Caetano e uma ameaça de “porrada”
De regresso à casa dos pais, em Sante, no concelho de Melgaço, António Lobato e Maria dos Anjos mataram saudades. E esperaram, durante meses, por um telefonema de Lisboa que nunca chegou.
Resgatado da prisão em Conacri e já cansado de dar voltas pela região, com o Triumph descapotável de dois lugares que tinha comprado entretanto, com dinheiro do pai, o piloto estava pronto para voltar ao trabalho na Força Aérea. Mas o Estado Maior mantinha-se em silêncio e as novas ordens tardavam em chegar.
Sem nada a perder, escreveu uma carta, “curta, de cinco ou seis linhas”, e pôs-se a caminho da capital, para a entregar em mãos ao destinatário. “Fui à residência do Marcello Caetano e disse que queria falar com o senhor Presidente do Conselho. Disse quem era e o segurança disse logo que sabia perfeitamente quem eu era — na altura, toda a gente me conhecia, interpelavam-me na rua, era uma chatice”, recorda. “Como Marcello Caetano não estava, deixei a carta e voltei para Melgaço.”
Resultou: no dia seguinte, logo de manhã, tinha o coronel Moreira ao telefone, a mandá-lo apresentar-se “imediatamente” em Lisboa. Depois de lhe ter dado uma primeira descompostura, por ter tido a ousadia de escrever diretamente ao Presidente do Conselho, o então diretor da segunda divisão do Estado Maior da Força Aérea mandou-o subir ao gabinete do Chefe do Estado Maior, o general Tello Polleri.
“Estava à minha espera, com a porta aberta. Quando entrei começou a vociferar: ‘Eu dou-lhe uma porrada!’ (porrada é um castigo na linguagem de caserna). Disse-lhe que podia dar-me as porradas que quisesse, virei costas e desci”, recorda o rebelde António Lobato, uma vez mais entre risos.
Nesse dia, voltou para Melgaço com um cheque de 100 contos, uma ninharia, tendo em conta os anos passados em cativeiro, e a garantia de que, na semana seguinte, o problema estaria resolvido — isto se não voltasse a escrever ao Presidente do Conselho.
E assim foi: depois de passar em todos os testes médicos e psiquiátricos, António Lobato esteve uns dias em Tancos, a “fazer um refrescamento de aviões”, e voltou a entrar num cockpit. “É como andar de bicicleta, não se esquece. Igualzinho”, garante o piloto, que entretanto foi colocado na unidade de Sintra, mais uma vez a dar instrução — e descobriu uma das grandes vantagens (talvez uma das únicas) de ter sido feito prisioneiro durante tantos anos numa prisão tão miserável como a de Kindia.
“As pessoas tinham receio de se dirigir a mim e eu decidi que ia aproveitar a parvoíce delas. Fazia aquilo que queria. Em Sintra havia seis tipos de avião, e cada piloto só podia voar em dois tipos diferentes, mas eu voava em todos e ninguém me dizia nada. Até deixei crescer um bocado o cabelo, saía para fora do boné, mas durante muito tempo ninguém teve coragem de me dizer para o cortar, para dar o exemplo aos miúdos.”
Um almoço com o “amigo” Nino e o adeus aos aviões
Em 1973, de cabelo cortado, já este estado de graça tinha acabado, António Lobato aceitou um convite para fazer uma comissão civil nos Transportes Aéreos de Cabo Verde, voltou ao continente africano — e experimentou, pela primeira e última vez, a aviação comercial, que, continua a dizer, “não é bem voar”.
Em Cabo Verde, onde viveu até 1975 com Maria dos Anjos, reencontrou-se com alguns dos guerrilheiros do PAIGC que anos antes o tinham mantido prisioneiro. “Em 1975, já eu tinha os miúdos, um com 1 ano, outro com 6 meses, certo dia, na Cidade da Praia, na avenida principal, aparece um grupo de cinco ou seis pessoas. Olhámos uns para os outros e reconhecemo-nos logo, eram chefes da guerrilha, só me lembro do nome de um deles, era o Xuxo. Abraçámo-nos todos e ainda estivemos um bocado à conversa”, revela o piloto.
“Os civis dificilmente entenderão que dois contendores em guerra, um de um lado da barricada, outro do outro, são inimigos naquele momento e matam-se uns aos outros, mas depois de aquilo acabar podem até tornar-se grandes amigos. Porque ambos conheceram os males da guerra”, tenta explicar. “Eles não se mataram por serem inimigos uns dos outros, mataram-se a cumprir um determinado dever que lhes incutiram. Mas, depois de as guerras acabarem, não se odeiam. A gente na guerra não odeia o inimigo. Não é por ódio… É isso que é muito difícil de entender.”
Foi por isso mesmo que, em 1999, quando o então Presidente guineense Nino Vieira o convidou para almoçar, António Lobato não pensou duas vezes. Ao longo de um par de horas, conversaram e recordaram os tempos em que um tinha estado à guarda do outro. Dias depois, quando fez check-out do Hotel 24 de Setembro, a funcionar no local onde décadas antes tinha sido a messe dos oficiais portugueses em Bissau, o piloto descobriu que a sua estadia já tinha sido paga — nada menos do que pelo primeiro Presidente da República da Guiné Bissau.
“Depois, quando perdeu o mandato, fugiu da Guiné e veio para Portugal, os jornalistas perguntaram-lhe se tinha cá alguém conhecido e ele respondeu: ‘Tenho um amigo, o Lobato!’”, continua a recordar. “Isto não cabe na cabeça de ninguém, mas para ele eu era um amigo, um conhecido.”
[Ouça aqui o segundo episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. Uma história de guerra, de amor e de uma operação secreta.]
Aquilo que mais gostou de fazer na vida foi de pilotar aviões — voar. Mas, nessa altura, António Lobato já tinha tomado “uma das decisões mais difíceis” da sua vida e pedido a passagem à reserva.
Abandonou a Força Aérea no início dos anos 1980, desencantado com a situação política do país, e preparou-se para ficar em casa, a descansar. Não resultou: nos anos que se seguiram, foi desafiado, primeiro, para abrir uma empresa na área da construção civil; e, depois, para assumir um cargo na direção geral da Publimedia, do grupo Sojornal, de Francisco Pinto Balsemão, onde ficou até 1994, ano em que finalmente se reformou.
Nem por isso parou: aos 57 anos, publicou “Liberdade ou Evasão”, o livro que escreveu a contar a sua história de cativeiro e que em janeiro de 1996 foi a segunda obra de não ficção mais vendida do país, logo a seguir a “O Ponto Azul-Claro”, de Carl Sagan.
Quando falou com o Observador, com 84 anos, António Lobato continuava a viver com Maria dos Anjos. A cicatriz na testa, que há exatamente 60 anos lhe foi aberta em dois, com um violento golpe de catana, estava mais ténue, mas continuava lá. É uma marca de vida como outra qualquer, numa história que, não se cansava de dizer, “não tem nada de especial”. Como se fosse normal ter sido mantido prisioneiro durante mais de sete anos, ter sido libertado por uma operação secreta ou ter andado aos abraços com os carcereiros escassos anos após o resgate.
“Já pensei nisso várias vezes: se pudesse voltar atrás, o que é que eu faria de diferente? E sinceramente não vejo o que poderia modificar”, era como respondia à pergunta da praxe.
Convidado a olhar para trás uma última vez, para tentar perceber, para lá das cicatrizes, que outras marcas lhe deixaram os sete anos e meio que passou à guarda do PAIGC, numa prisão infecta na Guiné Conacri, António Lobato nem pestanejou: “Fizeram com que características que já cá estavam se desenvolvessem ainda mais. Deram-me uma estabilidade tão grande que, se estivermos aqui sentados e rebentar uma bomba aqui ao lado, eu fico na mesma”.
Apesar de não podermos dar garantias sobre a hipotética explosão, a verdade é que num dos dias de verão que o Observador passou na casa de António Lobato, em entrevista, deflagrou um incêndio mesmo ali à porta, numa zona de pinhal — e o piloto reagiu efetivamente como se nada fosse.
Enquanto a jornalista do Observador tentava não entrar em pânico, salvar o carro das chamas e chamar os bombeiros — tudo ao mesmo tempo —, o piloto voltou, a passo, para o interior da propriedade, regressou minutos depois com uma mangueira e, de forma impassível, extinguiu o fogo. Quando a ajuda finalmente chegou, só teve de assegurar a fase de rescaldo. “Nas situações mais críticas, eu faço tudo instintivamente e não falha nada. Só quando acaba a desgraça é que caio em mim e fico cansado, quase exausto, mas enquanto houver essa coisa para fazer, faço tudo certinho, sem pensar. Isso é meu. Mas lá, na prisão, talvez tenha aperfeiçoado ainda mais.”
“O Sargento na Cela 7” é uma série com seis episódios para ouvir no site do Observador, na Rádio Observador e também nas habituais plataformas de podcast e no Youtube. O guião e as entrevistas são de João Santos Duarte e Tânia Pereirinha. A sonorização e pós-produção áudio são de Diogo Casinha.