Em Portugal viviam-se ainda os primeiros anos de democracia quando, a 5 de setembro de 1977, os cientistas da NASA lançavam, a partir do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, aquela que viria a ser a mais longa missão espacial da história: a Voyager. A bordo de duas pequenas sondas (uma lançada em agosto e outra em setembro), além dos numerosos instrumentos de medição e câmaras que serviam para cumprir o objetivo primordial da missão — fotografar e estudar Júpiter e Saturno — seguia a primeira mensagem oficial do planeta Terra destinada a eventuais civilizações extraterrestres: dois discos de cobre com sons de apresentação do planeta e do Sistema Solar.
Nessa época, Ilídio Lopes, então com 12 anos, já sonhava tornar-se astrofísico. A sua memória de criança, como a de tantos outros da sua geração, estava já marcada por duas datas fundamentais: a chegada de Neil Armstrong à Lua, em 20 de julho de 1969, e o 25 de abril de 1974. O lançamento da Voyager não foi um evento tão mediático como a chegada à Lua, sobretudo porque “era mais uma missão no espaço”, lembra ao Observador o astrofísico e docente do Instituto Superior Técnico, especializado em astrofísica teórica, cosmologia e física solar. No entanto, quarenta anos e muitas reprogramações de missão depois, Ilídio Lopes não tem dúvidas: “Se me perguntar quais os acontecimentos científicos mais importantes do ponto de vista sociológico e científico, a par da chegada à Lua, este é um deles”.
Tudo começou com uma oportunidade que não podia ser desperdiçado: um alinhamento de planetas no Sistema Solar que só ocorre a cada 176 anos e que permitiria, através do aproveitamento dos campos gravitacionais de cada um, percorrer a maior distância possível com recurso ao mínimo de energia. Se o objetivo fundamental da missão científica era modesto (chegar a Júpiter e a Saturno), a verdade é que em pouco tempo a viagem foi reprogramada e visitou mais dois planetas — Urano e Neptuno. E depois continuou em frente. Quando as sondas chegaram ao final do Sistema Solar, tiraram o retrato de família com todos os planetas e desligaram as câmaras, para poupar energia. Hoje, as sondas já ultrapassaram os limites da heliosfera (o campo de influência do Sol) e entraram no espaço interestelar — a Voyager 1 já está a 21 mil milhões de quilómetros da Terra.
Mesmo não havendo grandes dúvidas de que estamos perante uma das missões mais importantes da história em termos de progresso científico, talvez o aspeto mais célebre da missão esteja mais perto da ficção científica do que da ciência. Ao mesmo tempo que trabalhava nas sondas, a NASA encarregou o cientista Carl Sagan de preparar uma mensagem para colocar no interior de cada uma das naves. Assim, as duas Voyagers partiram para o espaço profundo com um disco de ouro no seu interior, respetivo gira-discos e agulha, onde se podem ouvir sons naturais da Terra, saudações em 55 línguas (incluindo o português) e até música de Bach e Mozart. O objetivo? Apresentar o planeta Terra e a cultura humana a quem se cruzar com as naves.
Um alinhamento único em 176 anos
Muito antes de a Voyager se tornar no ícone da exploração espacial, o projeto chamou-se “Mariner Júpiter/Saturno 1977” e não tinha pretensões de aguentar quatro décadas. “Quatro ou cinco anos e acabava”, lembra Ilídio Lopes. Com o objetivo de estudar aqueles dois planetas gigantes, onde nenhuma sonda tinha chegado até então, o projeto foi montado em apenas cinco anos. “Hoje, nenhuma missão é preparada em tão pouco tempo, o que mostra que a ciência era feita de uma forma totalmente diferente nesta altura”, sublinha.
Mas a rapidez com que o projeto foi preparado explica-se pela descoberta que motivou o planeamento da missão. Em 1965, os cientistas da NASA tinham feito as contas e chegaram a uma conclusão: no final da década de 70, os planetas do Sistema Solar estariam alinhados de tal maneira que seria possível, pela primeira vez, enviar uma sonda que, usando os campos gravitacionais dos planetas, pudesse visitar os quatro planetas gigantes. Tal alinhamento só se repetiria dali a 176 anos.
“Tal como os navegadores portugueses, no século XV, usaram o vento para navegar gastando o mínimo de energia possível, também aqui se fez o mesmo. Isto não é novo. É usar o conhecimento profundo da física e do funcionamento do Universo que nos rodeia, aliá-lo à tecnologia de que dispomos e otimizar aquilo que podemos fazer”, explica o astrofísico português.
O que as sondas fizeram foi aproveitar os campos de gravidade de cada planeta para se movimentarem gastando o mínimo de combustível possível, saltando de planeta em planeta “como se andassem a saltar entre pedras num lago”, compara Ilídio Lopes. “Basicamente, a sonda dirigia-se a um planeta e entrava no seu campo gravitacional, começava a circular em torno dele e o ângulo em que entrava permitia-lhe sair do campo do planeta em direção ao planeta seguinte.”
O mesmo sistema viria a ser usado pela sonda Ulisses nos anos 90 para se conseguir libertar do plano elíptico dos planetas do Sistema Solar e observar o Sol a partir do topo. “O que eles fizeram foi enviar a nave rumo a Júpiter, que é o planeta mais largo e mais acima do plano elíptico. A sonda foi com um ângulo tal que saiu do campo gravitacional de Júpiter para fora do plano das órbitas dos planetas do Sistema Solar”, lembra Ilídio Lopes, que acompanhou aquela missão de perto, por ser relativa à sua área de especialização. “Quando temos um grau de tecnologia limitado, temos sempre essa tendência, e ainda bem, para compreender o funcionamento do Universo à nossa volta e aproveitá-lo. Foi isso que eles fizeram na Voyager e ainda hoje é isso que se faz na maioria das missões espaciais”, recorda o astrofísico, sublinhando que a tecnologia daquela época “faria rir qualquer telemóvel de hoje”.
Por isso, com um alinhamento de ouro prestes a acontecer, não havia tempo a perder. Os primeiros cálculos relativos ao alinhamento planetário datam de 1965, mas a equipa teve de esperar até 1 de julho de 1972 para a NASA aprovar a missão, com objetivos pouco ambiciosos: passar perto de Júpiter e Saturno. Em dezembro do mesmo ano, os cientistas responsáveis pela missão reuniram-se pela primeira vez na Caltech, na Califórnia, e definiram que a sonda teria de partir em 1977 para aproveitar o alinhamento. Tinham cinco anos para construir e testar o projeto.
Foi mais do que suficiente. Em 1977, as duas sondas estavam prontas a partir. Nesse ano, a missão foi rebatizada e passou a chamar-se Voyager: a primeira a partir foi a Voyager 2, a 20 de agosto, às 14h29, abrindo caminho para o lançamento da Voyager 1, às 12h56 de 5 de setembro do mesmo ano. No dia seguinte, a Voyager 1 enviava a sua primeira fotografia, uma imagem histórica da Terra e da Lua.
Dois anos depois, a sonda cumpria o primeiro objetivo da missão: revelar novas informações sobre Júpiter. Foi a 9 de março de 1970 que a Voyager 1 se aproximou do planeta gigante para revelar pela primeira vez muitas das informações que hoje os astrónomos dão por garantidas como a existência da lua Io ou a composição da Grande Mancha Vermelha. No ano seguinte, a nave chegou a Saturno e capturou as imagens do planeta dos anéis que ainda hoje fazem parte do nosso imaginário do Sistema Solar. Foi a Voyager 1 que descobriu Atlas, Prometeus e Pandora, três das luas de Saturno, além de mostrar pela primeira-vez uma atmosfera em torno de Titã, a principal lua do planeta.
Em três anos, o objetivo da Voyager 1 estava cumprido. Tinha fotografado os dois planetas gigantes propostos pela missão e começava a dirigir-se para fora do Sistema Solar. A Voyager 2, que tinha sido lançada antes, mas com uma velocidade menor, veio atrás e passou novamente pelos dois planetas para recolher mais elementos. “O objetivo primordial era observar aqueles dois planetas gigantes. Mas o sucesso dos dois primeiros é de tal maneira grande que eles decidem continuar a explorar o Sistema Solar. Ainda tinham energia nas sondas e por isso pensaram: ‘Porque não aproveitar e seguir para os próximos dois planetas?’”, comenta o astrofísico Ilídio Lopes.
A missão complementar coube à Voyager 2 — a primeira nave já se dirigia para lá do Sistema Solar. Em 1986, passou por Urano, revelando praticamente toda a informação que hoje temos sobre o sétimo planeta, de que nunca uma sonda se tinha aproximado. As imagens da Voyager 2 revelaram 11 luas e os dados registados mostraram que Urano é o planeta mais frio do Sistema Solar, com -214ºC de temperatura. Depois de enviar os dados para a Terra, a sonda seguiu para Neptuno, o seu último objetivo. No ano seguinte, a NASA viu-se forçada a aumentar o tamanho dos pratos das antenas de Madrid, Camberra e Califórnia, os três centros responsáveis por captar o sinal enviado pelas sondas Voyager. É que já os aparelhos já iam tão longe que o sinal rádio tinha dificuldades em chegar à Terra.
Foi em 1989 que a nave chegou finalmente a Neptuno, onde descobriu seis luas, os anéis e os geisers da lua Tritão. Depois de enviar as imagens, a nave desligou as câmaras fotográficas e iniciou a saída do Sistema Solar, para poupar energia para os outros instrumentos de medição. No ano seguinte, a Voyager 1, que entretanto se tinha aproximado dos limites do Sistema Solar e que ainda tinha as suas câmaras em funcionamento, tirou as derradeiras fotografias da missão: o “retrato de família do Sistema Solar”, uma inédita série de fotografias em que são visíveis Vénus, a Terra, Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno.
“O que tornou a missão fantástica foi tudo aquilo que estava para lá do plano”
Foi desta forma quase romântica que os cientistas pensaram em dar por terminada a missão Voyager. No início da década de 90, as duas sondas já tinham percorrido todo o Sistema Solar e enviado informações inéditas e preciosas sobre os planetas gigantes. “Houve um progresso absolutamente fundamental durante aqueles anos na área da planetologia. Aquilo foi um período fantástico. Imagine o que foi uma década em que tínhamos grandes acontecimentos científicos, que faziam parte do imaginário da ficção científica, quase todos os meses”, recorda Ilídio Lopes.
“Como em qualquer missão pioneira, todas as informações que a Voyager enviava eram novidade. Isso é que é extraordinário. Há que ter noção de que nunca um objeto construído pelo Homem foi tão longe, e por isso tudo o que sabemos, todas as imagens que temos, de muitas partes do Sistema Solar, só são possíveis por causa da Voyager”, conta o astrofísico.
Mas a missão não ficaria por ali. O gasto de energia das duas sondas tinha sido substancialmente reduzido com o desligar das câmaras fotográficas e os outros instrumentos continuavam a enviar informações fundamentais, nomeadamente no momento da saída da heliosfera, que é “basicamente toda a região que é influenciada por campos magnéticos e partículas que vêm do Sol”. Ora, as sondas Voyager têm sistemas de medição de campos magnéticos e a 25 de agosto de 2012 registou uma queda abrupta nos níveis de radiação solar. Tornava-se oficialmente no primeiro objeto construído pelo Homem a entrar no chamado espaço interestelar, “onde o que domina já não são as radiações solares, mas sim as partículas que vêm das outras estrelas”.
Ainda hoje as informações que chegam à Terra a partir das duas sondas Voyager são preciosas. Contudo, Ilídio Lopes não perspetiva que, nos próximos tempos, a NASA se aventure numa missão do mesmo género. “Não será uma das apostas para já, no meu ponto de vista, apesar de eu não estar familiarizado com todas as missões espaciais. Temos de nos lembrar que a missão Voyager durou este tempo todo de forma acidental, não estava previsto. O objetivo deles era apenas estudar Júpiter e Saturno”, destaca.
“O que tornou a missão Voyager tão fantástica foi tudo aquilo que estava para lá do plano”, afirma o astrofísico, que considera “óbvio que vamos ter, no futuro, missões que nos vão surpreender com muito conhecimento e que algumas delas vão ultrapassar claramente os limites do que conhecemos ou do que nos propomos fazer”. “Neste momento, estamos na fase de desenvolver tecnologia para viajarmos no espaço. Para ir e voltar de Marte, por exemplo. Essa é um dos grandes objetivos que irão dominar a próxima geração”, garante Ilídio Lopes.
Uma mensagem para o espaço em nome de toda a Humanidade
Apesar de estar “especialmente interessado” nos avanços científicos e tecnológico que a missão Voyager trouxe aos estudiosos da astrofísica, Ilídio Lopes não esconde o seu fascínio pela dimensão social da missão. A missão “é pioneira e simbólica em várias dimensões”, nomeadamente na mensagem enviada para o espaço nos “Golden Records” e no bilhete de Jimmy Carter, então presidente dos EUA, colocado no interior da nave.
“É impressionante a mensagem coletiva que enviamos a partir da Terra. Não nos esqueçamos de que estávamos no período da Guerra Fria e apesar desse período conturbado, conseguimos unir-nos. Os seres humanos perceberam que havia mensagens importantes. Somos cidadãos do planeta e isso é mais importante do que as divisões que nos separam”, destaca o cientista.
Os dois discos — de cobre, revestidos a ouro — foram preparados por uma equipa liderada pelo histórico físico Carl Sagan e destinam-se a apresentar o Sistema Solar, a Terra e a civilização humana a uma eventual civilização extraterrestre que intercepte a sonda. “Claro que a probabilidade de haver mesmo alguém que encontre esta mensagem no espaço é inferior à de, na Terra, encontrarmos uma mensagem enviada por um náufrago numa garrafinha de vidro no meio do Oceano”, admite Ilídio Lopes. “A importância disto é mais pela mensagem de nós perante o espaço do que propriamente a probabilidade de chegar a algum lado. É a união, o espírito coletivo da Humanidade a aventurar-se pelo desconhecido.”
A enquadrar os discos de ouro foi enviada esta mensagem de Jimmy Carter, então presidente dos EUA: “Este é um presente de um pequeno mundo distante, uma prova dos nossos sons, da nossa ciência, das nossas imagens, da nossa música, dos nossos pensamentos e dos nossos sentimentos. Estamos a tentar sobreviver ao nosso tempo para que possamos chegar ao vosso. Esperamos que um dia, depois de termos resolver os problemas que enfrentamos, possamos juntar-nos a uma comunidade de civilizações galácticas. Esta gravação representa a nossa esperança e determinação, e a nossa boa-vontade para com um vasto e espetacular Universo”, lê-se na nota.
A esmagadora maioria do espaço dos discos foi usada para gravação de sons. Logo a abrir a gravação estão saudações em 55 línguas, incluindo a língua portuguesa. Depois, foram gravados no disco vários sons naturais da Terra, como o vento, ondas do mar, pássaros a cantar, ou trovões, mas também um conjunto de sons humanos, como o da utilização de ferramentas, o batimento cardíaco ou o som de um beijo. Por fim, há uma secção musical com obras dos mais conceituados compositores da história da Humanidade, como Bach, Beethoven ou Mozart. O disco inclui ainda um conjunto de imagens que vão desde um mapa da localização do Sistema Solar a fotografias da vida na Terra, de cidades e da anatomia humana.
“Esta missão é muito singular por isto mesmo. Não apenas fez avançar o conhecimento científico como desafiou a nossa perceção do Universo. Fascina-me imenso do ponto da vista da sociedade, porque tenho a convicção de que se os seres humanos tivessem um maior e mais profundo conhecimento do Universo teriam uma relação muito diferente e muito mais pacífica entre eles”, remata o astrofísico. “Impressiona-me também imenso a imagem da Terra que é tirada já ao longe, até é uma ideia do Carl Sagan, que na sua perspetiva humanista, pede que seja tirada uma fotografia do planeta. É um pequeno ponto azul ao longe, faz-nos pensar na importância de cuidar do planeta, na fragilidade da Terra.”
Quarenta anos depois, as naves Voyager continuam a sua missão. À medida que se aproximam do fim da energia, vão desligando gradualmente os sistemas. É a missão espacial mais longa da história, aquela que passou por mais planetas e aquela que mais informações inéditas enviou para a Terra, mudando definitivamente o conhecimento que a Humanidade tem do Universo desconhecido. Durante 40 anos, tem passado relativamente despercebida — apesar de ser autora da maioria das imagens do espaço que habitam o nosso imaginário. Para o astrofísico Ilídio Lopes, a História irá guardar um lugar de honra para a missão. “A importância da Voyager só será plenamente reconhecida dentro de muitos anos, quando olharmos para trás e percebermos tudo aquilo que só sabemos por causa dela.”
Artigo corrigido às 11h12 de 5 de setembro: a temperatura de Urano é de -214ºC e não de -353ºC, como referido anteriormente.