Não fala português mas está em todas as sessões do Congresso de Jornalistas, onde o encontrámos, rodeado de estudantes ávidos de falar com alguém que anda nesta vida há quase meio século. Vai pedindo a quem “tem paciência” que o ajude a traduzir o que se está a passar e traduz, no Google Translate, as histórias que saem nos jornais portugueses para entender um pouco mais sobre o país onde ensina os Elementos do Jornalismo aos alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Acha que os portugueses são “extremamente cultos” e “todos escritores”. Está otimista em relação ao futuro da profissão de jornalista porque “não é possível exercer sem o estar”. As suas histórias preferidas não são necessariamente aquelas que mostram um lado e o outro mas sim as que abrem uma janela para dentro da “ambiguidade dentro de cada pessoa”.
A maioria dos diretores que falaram neste painel a que acabamos de assistir não preconizaram nem o fim do bom jornalismo, nem tão pouco se focaram nos constrangimentos ao exercício da profissão. Também considera existirem razões para estarmos otimistas em relação ao futuro?
Sim, considero. Em primeiro lugar começamos a ver o fim da deterioração do modelo de negócio. As pessoas estão a conseguir estabelecer estratégias que funcionam. Nós fomos a única indústria da história a passar a oferecer o nosso produto gratuitamente. Ao contrário do que se diz, muitos jornalistas anteciparam a migração e estiveram lá quando o público se começou a dirigir à internet. Eu sempre rejeitei essa ideia de que os jornalistas foram apanhados “a dormir ao pé do interruptor”. O que aconteceu foi que a publicidade para a internet não resultou.
Vai funcionar?
Não sei. A comunidade jornalística pode ajudar a resolver, mas não somos especialistas. Esse é o papel da comunidade de anunciantes e eles ainda não sabem o que é que funciona.
Já escreveu que, apesar de a esmagadora maioria dos leitores do New York Times estarem na internet, 87% do lucro com publicidade ainda vem do papel, menos de 15%, portanto, vem de publicidade online. Como explica esta incongruência?
As agências de publicidade conseguem atingir um grupo demográfico específico na internet através da análise aos registos dos leitores. Podem fazer pontaria a grupos com certos interesses, idades, etc. O problema é que não há modelos de publicidade que funcionem. Não há muita publicidade eficaz na internet. As agências encontram o seu público específico e depois atiram-lhes com banners ou com gifs saltitantes ou post-its ao lado dos artigos, que não funcionam. Os anunciantes querem comprar espaço dentro dos vídeos que os jornais publicam, como se fossem spots publicitários, então os jornais andam a fazer vídeo porque as agências lhe pedem e não porque há procura da audiência por esse tipo de conteúdo.
Voltando às razões para estarmos otimistas, dizia à entrada para esta entrevista que as notícias falsas podiam ser uma coisa boa. Como?
Pela primeira vez, talvez por causa das eleições americanas, o público começa a entender os perigos da informação falsa e a valorizar a que é verificada. Estamos a distinguir melhor que o que a Tia Marta disse no Facebook não é o mesmo que aquilo que uma marca respeitada de jornalismo publicou. O que os jornalistas têm que fazer é provar ao público que uma peça com pés e cabeça é melhor do que o outro conteúdo que anda por aí.
Se pesquisar sobre os problemas no jornalismo, em primeiro lugar aparece a precariedade laboral mas logo depois aparece o problema da credibilidade.
Temos que utilizar o “click bait” com muita moderação. Fazemos isso com histórias que não são notícia, numa tentativa de atrair público para essas e talvez para outras que estejam no nosso site. Outro problema é que, no telemóvel especialmente, é difícil para a audiência distinguir entre uma notícia e uma análise, entre uma análise e uma opinião. Noto isso nos sites, os três géneros estão intercalados, conforme um ranking de popularidade. Não estão num contentor e é difícil para o público distinguir. Nós contribuímos muito para isso, para esta falta de credibilidade, e é fácil de solucionar – é só pôr uma legenda visual.
Já há notícias que dão conta do perigo potencial de espalhar notícias falsas como…
Como no caso do Paquistão e de Israel!Em que o Paquistão, pelo Twitter, ameaçou retaliar uma ameaça que Israel nunca fez! Eu acho que a poluição na internet é agora um problema de segurança nacional. É preciso uma discussão muito séria.
Estamos a falar de ministros da defesa a discutir… no Twitter…
Sim, parece chocante, mas agora temos o Presidente-eleito dos Estados Unidos a conduzir toda a sua política internacional no Twitter! Isto é de loucos!
O líder de um dos países mais importantes do mundo diz publicamente que não confia nos media. Se ele não confia nos media e diz, não está a autorizar a que as pessoas façam o mesmo?
Eu vou discordar. É terreno muito ambíguo. Estou a entrar na cabeça dele e não posso. Eu acho que ele confia nos media. Ele sempre confiou nos media e soube usá-los muito bem para seu benefício. O que eu acho é que ele não gosta dos media. Parte da razão é que ele confia nos media para fazerem o seu trabalho. Mas sim, dá autorização às pessoas para que também desconfiem dos meios de comunicação, isso é verdade.
Acha que Trump tem utilizado esse rótulo de “notícias falsas” para desacreditar as notícias que lhe são desfavoráveis?
É isso mesmo. Trump e o movimento ultra-conservador na América, mas não só eles, têm feito precisamente isso. Em muitos casos eles já se apropriaram dos factos, mas agora estão a roubar também a linguagem, dizendo que uma história é “notícia falsa” sempre que não gostam do seu conteúdo. Isso provoca uma erosão ainda maior na credibilidade dos media de massas. Todos os ataques podem assim ser defendidos por Trump como “ataques partidários” ou “campanha para me denegrir”.
O site Nieman Lab, que publicou algumas das grandes tendências para 2017, afirmou que uma delas seria a constante verificação dos factos, com a criação de secções focadas na transparência das notícias. Como é que isso se faz?
Se estivermos, por exemplo, a escrever uma história sobre segurança nacional, é preciso dizer, logo no início da história, porque é que estamos a fazer esta história, quais os nossos motivos, se achamos que as pessoas podem interpretá-la como uma história irresponsável, se estamos a roubar segredos de Estado, etc. É muito importante que os jornalistas estejam dispostos a explicar porque é que estão a perseguir aquele assunto. É preciso transparência acerca dos nossos motivos, mas também sobre o processo que o jornalista utilizou para chegar lá. Por exemplo: “entrevistei 50 pessoas” ou “passei uma hora a falar com esta pessoa” ou “escolhi esta pessoa e não aquela, por esta razão”. Precisamos de o fazer logo, e não esperar que alguém se queixe e depois enterrar isso na página 22, nas “cartas ao editor”. A verificação não devia ser uma moda, ainda bem que se está a tornar uma “cena”.
E esses mecanismos também começaram a ser mais utilizados agora, nas eleições, ou já eram?
O fact-checking começou nos Estados Unidos mais ou menos há uma década, mas espalhou-se com força agora. Considero que os jornalistas precisam de entender como verificar as suas histórias, talvez para os forçar a olharem para o seu trabalho. Uma coisa é falarmos de verificação assim como uma coisa vaga, outra coisa é dar instrumentos para isso. Quando olhamos para histórias, especialmente sobre política, apercebemo-nos que, por exemplo, têm imensas fontes anónimas. Não há muita transparência. As pessoas podem julgar o conteúdo, não sabem quem são as fontes.
Considera que, ainda que possa parecer estranho, este furacão à volta de Trump tornou os jornalistas um pouco mais exigentes com o seu trabalho? E o público também?
Eu acho que tudo isto é muito bom, a sério. Isto das notícias falsas, que é mau, pode vir a revelar-se numa coisa muito boa para o jornalismo, porque há uma obsessão em verificar as coisas. Pode ser que se comece a pensar assim sempre, não só nesta fase, porque as notícias falsas têm ou podem ter consequências sérias. Quase 60% dos americanos acham que as notícias falsas são um problema, ainda que 25% tenha admitido partilhá-las, sem saberem, ou sabendo que eram falsas. Há uma análise assustadora sobre as notícias partilhadas no Facebook, que mostra que o top 10 das notícias falsas de 2016 foi partilhado 60% mais do que o top 20 das histórias verdadeiras dos media tradicionais.
Mas, ao mesmo tempo, há uma pressão enorme para publicar as coisas o mais rápido possível.
O que eu vejo como o principal problema é a rapidez exigida ao jornalista. Eu venho da televisão. Nós estávamos mais habituados a essa pressão. Agora os jornais também fazem isso. Os jornais costumavam entregar tudo ao mesmo tempo, numa espécie de pacote, agora é por incremento, e algumas coisas saem sem a informação toda, claro. O outro problema é o volume. Vejo milhares de sites nos quais, pressionados pelo Google Analytics ou outro programa qualquer que analisa as tendências na internet, escolhem temas a dedo, que vão de encontro a essa “necessidade” das audiências e cria-se uma espécie de “jornalismo-túnel”. Isto acontece quando um jornal pega numa história feita por outro meio de comunicação e publica. E depois dizem que verificaram a história, porque verificaram a fonte. Não. Temos que verificar o conteúdo. O problema não é ir buscar as notícias, é não acrescentar nada, não verificar, não procurar melhorar. A consistência de quase tudo o que publica é finíssima.
O jornalismo ainda é um serviço público, quando não temos já um público mas milhares deles?
Podemos continuar a ter serviço público para cada um desses públicos, mas não para todos. Dou-vos um exemplo de um tipo de público: o amor de uma mãe pelo seu filho, é um público gigante, que se estende a todo o mundo, é uma verdade universal.
Qual é o propósito do jornalismo nesta era da internet? Continua a ser informar, ou é mais entreter, ou é o lucro?
O que eu pergunto em primeiro lugar aos jornalistas que entrevisto é “qual é o propósito da tua profissão?”. E eles dizem que o propósito é oferecer ao público a informação que eles precisam, para fazer boas decisões sobre as suas vidas, as suas comunidades, os seus governos. Se a qualidade da decisão das pessoas está a decrescer, porque nós damos má informação, ou a informação é menos robusta, então isso é mau para a democracia, é mau para os negócios, produz líderes pobres, decisões públicas mal informadas e por aí fora. É uma bola de neve. Se as pessoas se aperceberem de que as notícias falsas são tão comuns hoje em dia, que começam a pesar nas decisão das pessoas, produzindo más decisões, maus políticos, então o público vai exigir que se faça alguma coisa acerca disso.
Que regras há para o bom jornalismo?
Hoje sabemos, por exemplo, que uma história que seja original, que demonstre esforço do jornalista, que não seja uma cópia ou uma espécie de segunda versão de uma outra coisa, tem muito mais valor junto do público. Esforço é igual a sucesso comercial. O público aprecia o esforço, a originalidade, o conteúdo próprio, as marcas fortes, e reconhecem um bom conteúdo quando o vê. Isto significa utilizar melhores fontes, mais perspetiva, mais dados, mais reportagem, mais “sair do cubículo”.
E chegámos ao problema dos vínculos laborais, da precariedade, da falta de recursos para contratar pessoal, etc. Algumas intervenções no Congresso falam de salários baixos e contratos precários. A situação é mesmo má ou pode ser contornada?
Há um problema com os jovens e com os freelancers. O que está a acontecer no mundo do jornalismo é que os freelancers estão a trabalhar cada vez mais sem uma rede de segurança. Costumava ser possível estarmos todos numa redação, tirar dúvidas, passávamos o nosso trabalho por outros colegas e depois havia uma edição séria, às vezes a três ou mais níveis. Agora, mesmo que estejas numa redação, provavelmente estás num cubículo, muitas vezes publicas diretamente na internet. Não há muitas regras no jornalismo, é uma profissão, mas não somos médicos com um código de conduta restrito; ou temos um código mas não falamos muito dele, trabalhamos isolados. O jornalismo era uma aprendizagem, havia pessoas que nos treinavam. Os jornalistas precisam de desenvolver a sua lista de coisas que não estão preparados para fazer.
Isso de ir contra o que nos mandam fazer não é difícil, quando há tão poucos empregos disponíveis?
Sim, isso é um enorme problema. Temos que resolver isto, porque se não resolvermos, os jornalistas vão abandonar a profissão. O jornalismo é um ato de consciência e há coisas que ninguém está, nem deve estar, preparado para fazer. A nossa consciência dita aquilo que sai para o público.
E como é que é ensinar em Portugal? Como é que são os seus alunos?
Os portugueses são muito apaixonados, são muito cultos, são todos escritores, ou todos querem ser escritores. Confiam muito no jornalismo ainda, e isso é muito bom. Na América já não acontece.
Não sei se viu um episódio do Last Week Tonight, com o John Oliver, em que ele brinca com a situação de um jornalista que está a tentar expor a corrupção na câmara municipal local e a redação está maluca com um vídeo de um gato que se parece muito a um guaxini. Estamos a escolher o caminho mais fácil, mas errado, e será que, se estamos, podemos voltar atrás?
Será que damos ao público o que eles querem ou que eles precisam? E quem somos nós para decidir? Sim, são tudo perguntas pertinentes. Eu acho que as pessoas querem uma variedade de coisas. Por vezes, os jornalistas têm que simplesmente publicar o que os restantes sites estão a dar, já falamos disso. E pede-se aos jornalistas que escrevam com uma voz “forte”, com um ângulo “chocante”. Se virmos como eram os jornais há 100 anos, eram só anúncios de coisas que o governo tinha planeado fazer. Depois, no início do século XX, desenvolveu-se um conceito muito importante: o contentor, no qual cabiam notícias, desporto, notícias do mundo, banda desenhada, e tudo isto era parte de um jornal diário entregue à porta. Já se reconhecia aí a importância de haver variedade. Hoje em dia, está-se a atirar tudo à parede, depois olha-se para a performance online, ou aquilo que ficou “colado à parede” e se o esquilo voador é o mais popular, vamos publicar mais vídeos de esquilos.
Então, o caminho é a especialização?
É isso. Os meios de comunicação têm que escolher alguns tópicos e devem tentar tornar-se muito bons na cobertura desses assuntos. Antigamente, as pessoas dirigiam-se a um jornal, ou a uma rádio, ou a uma televisão, porque era uma marca na qual eles confiavam. Hoje, 75% das pessoas já só acede diretamente à história, via Facebook por exemplo. A história tornou-se a marca. Então a história tem que ser boa. As pessoas chegam às histórias pelos motores de busca, porque querem informação específica sobre um determinado assunto. O problema é que a primeira coisa que os jornais fizeram, quando os orçamentos começaram a ser cortados, foi despedir os especialistas, precisamente as pessoas que podiam garantir um acompanhamento minucioso de assuntos que as pessoas não entendem à primeira e servir as audiências-nicho.
Nós ainda somos os guardiões da democracia? Ainda metemos medo aos políticos?
Steve Coll, que foi editor do Washington Post e agora é reitor da Columbia University, disse que uma das coisas mais importantes que o jornalismo perdeu foi o seu poder dissuasor. Os repórteres “chatos como o raio”, que todos os dias se sentam nas reuniões da câmara municipal e que, mesmo que não escrevam coisa nenhuma durante semanas, os políticos sabem que há ali alguém que os está a ver. É assustador que tenhamos perdido isso. As pessoas vão sempre ver o primeiro-ministro a falar, ou o Presidente. Mas o que estamos a perder são as notícias sobre as decisões tomadas ao nível local, que nos afetam mais.
Um problema que surgiu agora com esta questão de questionar tudo o Donald Trump diz é o processo de desresponsabilização do jornalista. Apercebemo-nos que estamos a citar alguém que está a mentir mas só à posteriori. E mesmo assim defendemo-nos com aquela frase: “Mas eu citei corretamente”. Como é que isso se resolve?
Sim, desde que abras aspas estás safo. Mas não estás. É um problema enorme. Essa é a diferença entre os factos e a verdade dos factos, é isto que os jornalistas têm que entender. Temos a citação transcrita corretamente, mas paramos aí? Fazemos o erro de ir buscar uma citação que diga uma coisa e depois vamos procurar o outro lado, e procuramos sempre um que fique o mais longe possível da primeira opinião. Pronto, temos uma história equilibrada. Em primeiro lugar, emolduramos a história pelos seus extremos, e deixamos de fora o meio, que é onde a maioria das pessoas se encontra. Esta informação não é útil às pessoas para tomarem as suas decisões. Duas posições extremadas não é um equilíbrio. As histórias mais interessantes são sobre as pessoas mais ambivalentes, com dúvidas dentro delas e que estão a tentar resolver-se. Isso cria uma tensão e isso é muito interessante.
Numa época de cortes, como se financia o jornalismo de investigação?
Há dois pontos importantes. O primeiro é que olhamos para o jornalismo de investigação de uma forma polarizada, há o que é investigação e o que não é. Isso não ajuda. Todas as histórias são, de alguma forma, investigações. Os estudos dizem-me que cada bocadinho extra de informação que pesquisamos para uma história, aumenta o número de leitores. Mas nem todas as histórias merecem os mesmos recursos, há que escolher. Os custos são enormes. Mas estas histórias mudam o mundo, como foi o caso do Boston Globe com a história das violações perpetradas por padres.
Vivemos mesmo numa sociedade pós-verdade?
É demasiado cedo para podermos dizer. Quero acreditar que não e que os factos ainda importam. A ironia é que temos mais facilidade em verificar coisas hoje, há as imagens de satélite, os arquivos online. A tecnologia dá-nos imensas ferramentas, mas o problema, entre aspas, é que a democratização do processo de edição significa que a seleção das notícias que era feita pelos jornalistas acabou.
Algumas pessoas diriam que isso é uma coisa boa…
Mas é. É a democratização dos meios. Mas há uma linha ténue entre um grupo e uma manada de linchamento. Costumávamos ser donos da distribuição: fazíamos o jornal, era impresso na cave e era entregue nos quiosques e às pessoas que o assinavam. Controlávamos três áreas da produção de notícias. Agora não controlamos nada além do conteúdo. Entende a importância disto?