Índice
Índice
As estantes coladas às paredes tornavam aquele corredor tão estreito que era impossível duas pessoas cruzarem-se uma com a outra. Nas prateleiras, estavam sobretudo livros de meditação e de yoga e CDs com conteúdos pornográficos. A primeira porta que se encontrava, à esquerda, dava acesso direto ao quarto onde dormia Gregorian Bivolaru, mestre de yoga tântrico procurado pela Interpol. O romeno, de 71 anos, foi detido em Paris há pouco menos de duas semanas, a 28 de novembro, por suspeitas de sequestro, tráfico de seres humanos, violação e abuso da fragilidade de um grupo através de pressão psicológica ou física. Além de Gregorian Bivolaru, neste apartamento situado nos arredores da capital francesa foram também detidos outros 14 suspeitos, indiciados pelos mesmos crimes. Quando executava os mandados de detenção internacionais, a polícia francesa acabou por deparar-se também com 26 pessoas que classificou como vítimas de seitas.
Estas vítimas, mulheres, vinham de escolas de yoga espalhadas por cerca de 40 países e que fazem parte da rede do MISA — Movimento de Integração Espiritual no Absoluto, criado por Gregorian Bivolaru na década de 1990. Chegavam a este apartamento para se encontrarem com o mestre de yoga, a quem também chamavam Grieg. Foi neste apartamento que estiveram algumas portuguesas, alunas da escola de yoga Natha, em Lisboa, que pertence à prática de yoga que começou na Roménia, já no século passado. O Observador falou com duas destas mulheres, que acabaram por romper com o isolamento social a que foram conduzidas depois de anos de ligação ao movimento fundado por Grieg. Saíram, mas ainda hoje vivem com medo.
A viagem de Vera, sem telemóvel e sem documentos, e o regresso a Portugal com o trauma do que aconteceu
Vera (nome fictício), entrou para a Natha com a esperança de encontrar naquela escola a estabilidade que nunca tinha alcançado. Era jovem, tinha um passado marcado por um quadro de violência física e psicológica e viu no yoga uma oportunidade. O início correspondeu às expectativas, tendo vivido até “alguns dos melhores anos” da sua vida, conta ao Observador. As referências a Gregorian Bivolaru, recorda, eram constantes nas aulas de yoga tântrico. Afinal, ele era o mestre, com toda a sabedoria e experiência e, como mestre, os alunos das várias escolas queriam estar com ele e aprender com ele. O que não sabiam é que Gregorian Bivolaru só chamava mulheres à sua presença e que as iniciações – eram assim descritas as sessões de elevação espiritual – não eram mais do que sexo.
Os tais “melhores anos” da vida de Vera começaram a transformar-se num pesadelo no dia em que lhe disseram que tinha sido convidada pelo mestre para se encontrar com ele em França. “Diziam-me que era uma oportunidade dada a muito poucas, que era algo muito especial para ser iniciada e conhecê-lo. Disseram que me pagavam a viagem de avião para Paris, de ida e volta, e teria a estadia paga. Só tinha de ir”, relembra. Mas a viagem implicava outras condições logo à partida: ninguém podia saber onde estava, ia estar incontactável durante uma semana e ficava à sua responsabilidade garantir que a sua família e amigos fora da escola não tinham conhecimento de nada. “Disseram-me que eu tinha de resolver isto se quisesse usufruir da oportunidade e desligaram o telefone.”
À família disse que ia para um “retiro do silêncio”, para se “desconectar do telemóvel”, conectando-se com Deus, e foi para Paris “só com o bilhete na mão e um papel a dizer em que paragem de autocarro tinha de sair para depois esperar por alguém que ia aparecer”, conta. Vera estava com medo. Tinha medo de ficar sozinha num sítio que não conhecia e de não saber o que fazer, caso isso acontecesse. Meia hora depois de ter chegado a essa paragem, ouviu, finalmente, alguém dizer o seu nome. A voz era de uma mulher, que a encaminhou para um carro. “Tinha de usar uns óculos que estavam pintados por dentro com tinta para eu não ver nada, colocar um chapéu para não ser reconhecida e fechar os olhos para não ver o caminho”, descreve.
A justificação apresentada para o recurso a todas aquelas medidas era sempre a necessidade de proteger Gregorian Bivolaru, que “era procurado injustamente pela Interpol”. “Tínhamos de o proteger. Estas medidas eram para que ele continuasse em liberdade e nós pudéssemos continuar a ter o privilégio de o visitar.”
O carro levou esta jovem para uma primeira casa, onde as mulheres são habitualmente colocadas antes de serem levadas para o apartamento do romeno que continua, neste momento, detido. Nesta casa, Vera teve de entregar o passaporte e o telemóvel, para que não pudesse fugir, nem dizer a ninguém onde estava. E foi obrigada a repetir sete vezes um juramento que indicava que estava ali apenas pela sua vontade e, caso falasse com alguém sobre o que estava a acontecer, “era um ser larval” e teria a sua vida destruída. Mais uma vez, tudo isto foi feito com o argumento da proteção do mestre.
Vera encontrou ali mulheres de vários países, que dormiam em colchões, instaladas mais do que uma por cada quarto e que passavam o dia a fazer yoga e a “ver vídeos de testemunhos de raparigas que tinham visitado o Grieg e tido experiências maravilhosas e elevadas de amor puro”.
Alguns dias mais tarde, Vera foi levada para outra casa. Desta vez, um apartamento T0, onde também já estava outra jovem. Ficou ali durante dois dias. Depois, a espera acabou. “Tive de me vestir o mais sexy possível, ir para o carro outra vez com os olhos tapados, chapéu e casaco para me tapar.” Estava a chegar a sua vez. A hora em que, pensava Vera, ia evoluir espiritualmente graças aos ensinamentos de Grieg.
Vera nunca sabia onde estava, nem tem qualquer noção espacial ou temporal das viagens que fazia – não sabe se percorria muitos quilómetros, se a viagem de carro demorava 15 minutos ou meia hora. Já dentro da casa onde estaria Gregorian Bivolaru, esta jovem ficou num pequeno quarto, com outras três mulheres. Dormiam todas no chão, em colchões. À sua volta, mais estantes com livros sobre yoga e tantra. “Tínhamos de ler o mais possível para nos prepararmos para a iniciação, num dossier que explicava passo a passo as histórias e os fundamentos esotéricos e espirituais” e que explicava “a importância” de uma prática que Grieg seguia e obrigava as suas alunas a repetir: “Beber a urina do amante.” “Era o caminho para a imortalidade e a chave para a elevação”, recorda ainda Vera.
Os dias foram passando. Vera viu o mestre, que tem agora mais de 70 anos, apenas três vezes, durante cinco minutos. Ao longo daquele tempo de espera, tinha tarefas atribuídas, como limpar vidros e limpar os livros da casa. “Aquilo que eu achava que ia ser um tempo mágico para conhecer um guia espiritual e ter tempo com ele, que só iríamos fazer a iniciação se existisse amor e conexão entre nós, como nos ensinavam na escola em Lisboa, não aconteceu”, recorda. Tinha chegado a sua última noite — o voo de regresso estava marcado para o dia seguinte — e ainda não tinha sido chamada por Grieg. Vera estava irritada e também sentia medo, porque o “retiro de silêncio” que tinha descrito à família estava a acabar e ela tinha de entrar em contacto com eles. “Eu sabia que a minha mãe ia ficar preocupada e começar a procurar-me.”
Acabou por ser chamada poucas horas antes do seu voo, já durante a madrugada:
Tinha de beber um litro de água de seguida. Se vomitasse ou não bebesse tudo, tinha energias negativas dentro de mim. Claro está, com os nervos e a pressão, por vezes engasguei-me e tive de parar e ele começou a dizer ‘não vamos poder continuar assim, tens demónios a influenciar-te”.
Conseguiu beber a água toda e estava, assim, tudo pronto para dar início ao ritual, que começava com uma sequência de posições sexuais que já tinham sido ensinadas em Lisboa, em encontros secretos feitos em paralelo às aulas de yoga e que também funcionavam sob juramento. “Fizeram-nos jurar sobre uma bíblia nunca falar deles e só partilhar o conhecimento com um amante espiritualmente elevado para o iniciar”, acrescentou. Mas Vera não conseguiu fazer todas as posições na perfeição, Grieg “zangou-se” e disse que ficavam por ali, porque Vera ainda não estava preparada.
Comecei a chorar, falhar perante a entidade máxima da nossa escola, da minha família, era devastador, era o pior que me podia acontecer. E já o tinha visto a dar na cabeça a outras raparigas – ou por meterem as mãos juntas à frente do corpo numa posição normal, ou por não serem femininas o suficiente, ou por serem gordas e ele não fazia amor com mulheres mais gordas, tinham de emagrecer primeiro.”
O seu voo partiria dali a duas horas, estava em choque com o que tinha acontecido e foi então encaminhada para um carro, onde encontrou a sua mala e os seus documentos. Vera só queria ir embora. Afinal, tinha acabado de perceber que tudo o que era ensinado nas aulas, sobre consentimento e amor, não era colocado em prática: “Aquele homem, que nos dizia nas palestras online ‘não façam amor sem o conhecerem durante três meses e obriguem-no a provar que vos ama’, tinha acabado de fazer sexo comigo, tinha sido duro comigo, sem sequer ter uma conversa comigo.”
Vera chegou a Portugal com este segredo, que tinha de “guardar a sete chaves”, depois de repetir sete vezes que nunca contaria nada. Acabou por sair da escola de Lisboa pouco tempo depois.
Vera não foi a única a conhecer Grieg. “A memória mais forte é o cheiro a sexo que estava no quarto”
Nem todas as mulheres que fazem parte da escola Natha, em Lisboa, eram convidadas a visitar Gregorian Bivolaru. E o convite também não era feito logo no primeiro ano — fazia tudo parte de um processo. Mas Vera não foi a única portuguesa a conhecer o mestre procurado pela Interpol. Entre as várias mulheres que foram até Paris está Lara (também nome fictício), que teve uma experiência muito semelhante à de Vera. A descrição daquilo que acontece quando chegam ao aeroporto francês é, aliás, igual: entram num carro, não conseguem ver o caminho, também não se atrevem a espreitar, o medo começa a crescer, são levadas para uma casa e ficam sem documentos e sem telemóvel.
Os convites, como contam estas mulheres ao Observador, podem ser recusados, como, aliás, aconteceu. Mas, apesar de existir sempre a possibilidade de dizer que não, a reação de quem recebia essa resposta não era a mais favorável: “O Grieg vai ficar chateado contigo, está a dar-te uma oportunidade e tu não queres.”
Lara acabou por ir. Estava a passar por um momento difícil e talvez essa viagem fosse o desbloqueio de que precisava. Sentia que, ao ver e ouvir o mestre, todas as dúvidas que pairavam na sua cabeça desapareceriam. Mas, quando viajou para Paris, Lara também desconfiava daquilo que poderia acontecer, apesar de tentar, ao mesmo tempo, encontrar uma justificação para os medos que tinha. Esta desconfiança começou quando leu alguns testemunhos de antigos alunos do MISA, de vários países, que contavam as suas experiências num site dedicado exclusivamente a expor o que acontece nestas escolas de yoga.
“Sinto que sofri uma lavagem cerebral com toda a doutrina do yoga e do tantra, especialmente em coisas relacionadas com a sexualidade”, lê-se num dos testemunhos, sempre feitos de forma anónima. Outros referem, em relação às práticas de iniciação sexual, que “não há consentimento se a pessoa tiver medo de dizer não” e que foi “forçada a mentir e a inventar uma história sobre um retiro inexistente”, para poder ir a Paris – tal como fez Vera, na verdade.
— Fui mantida numa casa durante oito dias, sem televisão, sem rádio, sem telefone e sem internet, para que pudesse ser psicologicamente abusada e submetida a uma série de manipulações.
— Chamadas telefónicas para os pais eram permitidas uma vez por semana, através do telefone deles, monitorizado. Se fizesses qualquer referência ao yoga ou meditação, a chamada terminava.
— Fui levada (não convidada) a ficar nua enquanto tiravam fotos e faziam vídeos.
— Fui forçada a assistir a pornografia, juntamente com outros vídeos explícitos, que eu gostava de conseguir apagar da minha memória.
Estas frases estavam na cabeça de Lara, mas mesmo assim duvidava. “Achava sempre que podia ser mentira. Como não tinha passado por isso, não sabia”, explica ao Observador. Já em França, naquela que era a casa de transição, antes do encontro com Gregorian Bivolaru, ficou sem os documentos e sem o telemóvel, confirmando o que tinha lido nos testemunhos. E recebeu muitas prendas, incluindo CDs, que deveriam servir para mostrar a estas mulheres o poder de Grieg: “Era uma gravação super antiga, mas era a prova de que ele movia coisas com a mente.”
Esperou duas noites e acabou por ser chamada durante a madrugada – e foi nessa altura que as memórias das denúncias de antigos alunos se tornaram mais claras. Entrou na casa de Grieg, foi encaminhada para a porta que ficava do lado esquerdo daquele pequeno corredor e lá estava o mestre, dentro de “um quarto muito desarrumado, com livros empilhados no chão, DVDs no chão, que dava para perceber que eram pornográficos”. “Lembro-me de olhar para aquilo e pensar: mas que sítio é este? Como é que um mestre iluminado vive nestas condições?”
A única preocupação de Lara era falar sobre os seus problemas e tentar encontrar uma solução, e não concentrar-se na possível iniciação sexual. Mas não ficou convencida com os argumentos de Gregorian Bivolaru, começou a questionar as suas palavras e já só queria sair daquele quarto. A memória que guarda até hoje, e que lhe “causou mais nojo”, é “o cheiro a sexo”. “A memória mais forte é o cheiro a sexo que estava naquele quarto, tenho a certeza de que lá tinha estado uma rapariga antes. Aquilo deu-me um nojo tremendo”, recorda, numa das conversas com o Observador. E o aspeto de Gregorian Bivolaru causava também “uma certa repulsa”. “Ele estava descalço, as unhas dele eram gigantes, enrolavam. Lembro-me de olhar para aquelas unhas e pensar: o que é isto? Ouvia dizer nas aulas que, quanto mais yoga praticamos, mais bonitos nos tornamos, mesmo fisicamente. E ele não era nada disso.”
Conseguiu dizer que não queria fazer o ritual de iniciação naquela madrugada, mas como não queria contrariar o mestre, prometeu que ia pensar e voltou para a mesma casa nos arredores de Paris onde tinha sido colocada inicialmente. “Disse-lhe que não estava preparada, que agradecia muito o convite, mas que preferia não o fazer naquele momento. Só queria convencê-lo a deixar-me ir embora”, conta.
Foi embora, mas as mulheres que tratavam de todos os assuntos do mestre tentaram mostrar-lhe que seria um erro não aproveitar a oportunidade. Lara começou a ser cada vez mais assertiva. Estava, finalmente, convencida de que queria sair dali e de que, quando chegasse a Portugal, terminaria o seu caminho na escola de yoga tântrico. “Vocês não vão obrigar-me a ficar aqui, pois não?”, perguntava às mulheres, que acabaram por autorizar a sua saída. Antes disso, e antes de lhe serem devolvidos os documentos, foi obrigada a gravar um juramento igual ao que Vera repetiu sete vezes. A diferença era precisamente o vídeo, em que lhe diziam que não podia dar a entender que estava a ler um papel e que a sua postura não devia ser mecânica e devia, pelo contrário, parecer o mais natural possível.
A vida no Ashram, uma comunidade no meio da capital, onde viviam “à margem da sociedade”
Lara, Vera e outras mulheres que aceitaram contar as suas histórias ao Observador encontraram a escola Natha, em Lisboa, porque queriam apenas praticar yoga. Inscreveram-se no curso de yoga ou de yoga tântrico e, depois de alguns anos de aulas, estavam tão convencidas com o espírito de comunidade, tão embrulhadas no objetivo de chegar o mais longe possível na elevação espiritual que decidiram ficar a viver nas próprias instalações da escola, que abriu portas na capital em 2008, pelas mãos de um dinamarquês que fazia parte, segundo relatam antigos alunos, do núcleo mais próximo de Gregorian Bivolaru.
Mas o início na Natha é, pelas palavras de Lara, “muito cativante, porque as pessoas pareciam estar todas numa atmosfera de comunidade e de aprendizagem para tornar o mundo melhor”. Esta escola tem dois cursos – de yoga e de yoga tântrico – e os alunos podem estar inscritos nos dois ou apenas num. Há homens, mulheres, pessoas de todas as idades. Algumas turmas de primeiro ano, relatam outros antigos alunos, chegam a ter no início mais de 100 praticantes, sendo que o número vai diminuindo à medida que o grau de dificuldade aumenta.
E, à medida que o tempo passa, começam a aparecer ligeiros sinais. Mas estes sinais, se ignorados, transformam-se noutros mais evidentes, mas que vão sendo relativizados e justificados. Um exemplo: “As aulas tinham sempre uma componente prática, em que praticávamos as posturas de yoga, aprendíamos sobre cada uma das posturas. Mas depois também tínhamos uma parte teórica, em que iam sendo introduzidas ideias que, inicialmente, podiam ser um bocadinho mais difíceis de aceitar, mas que íamos começando a assimilar com o tempo. Logo no início, introduziam a ideia de ter vários parceiros sexuais, questionavam os ciúmes”. E outra prática que agora é vista por quem saiu como um sinal – mas que na altura nem sequer era questionado – passa pelos juramentos. “Começamos a fazer juramentos em aulas práticas que não têm nada de especial. Mas depois começamos a perceber que os juramentos começam com coisas simples e, quando são práticas mais questionáveis, já nem damos conta daquilo que estamos a fazer”, conta outra antiga aluna, Beatriz.
Todos os alunos querem evoluir espiritualmente. Mas esta evolução espiritual passa por ter, no caso das mulheres, “um determinado aspeto físico”. Não podiam ser demasiado magras, mas também não deviam ter excesso de peso, porque todos esses requisitos contavam para a tal evolução espiritual — e para pertencer ao grupo escolhido por Grieg para ir a França e estar na presença daquela figura, que se habituaram a idolatrar.
O tempo vai passando e alguns alunos e alunas ficam cada vez mais envolvidos naquela escola — que está registada como associação sem fins lucrativos e que não respondeu às questões enviadas pelo Observador até à publicação deste artigo. Alguns chegaram mesmo a deixar o seu trabalho, dedicando-se exclusivamente à escola, como é o caso de Beatriz.
Depois de alguns anos nas aulas de yoga, decidiu dar mais um passo e passou a viver no Ashram, o apartamento junto à escola, onde vivem os “yogis” — nome dado a quem pratica yoga. Este Ashram já teve morada na Avenida António Augusto Aguiar, mesmo no centro de Lisboa, tendo depois mudado para o Lumiar, onde agora está instalado. No início, tal como aconteceu com outros companheiros, Beatriz ainda mantinha a sua atividade profissional. Saía do trabalho e ia logo para a escola fazer o seu karma yoga, que é, no fundo, um trabalho voluntário – limpezas, refeições, preparação de eventos e todos os serviços relacionados com a escola. Mas acabou por deixar o seu trabalho e passou a dedicar-se exclusivamente à escola.
Todos os yogis que vivem no Ashram pagam uma renda, pagam também as aulas e nenhum recebe qualquer valor pelo trabalho prestado a favor da escola. E os quartos são divididos por quatro ou cinco pessoas. “Se eu não fizesse a prática de yoga todos os dias durante duas horas, ou falhasse alguma tarefa, começavam a fazer-me sentir culpada”, acrescenta Vera, que também passou pela experiência.
Todos nós vivíamos com medo de não seguir as regras à risca, com [um sentimento de] culpa se fizéssemos algo errado, porque isso significava que não éramos tão amadas, olhavam para nós como não merecedoras, como alguém que estava a arrastar o grupo para baixo a nível espiritual.”
O Observador tentou perceber junto do Ministério Público se a escola em Portugal foi ou está a ser investigada, mas também não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Grieg foi perseguido pelo comunismo na Roménia, foi expulso da Confederação Internacional de yoga e detido várias vezes
O caminho que Gregorian Bivolaru percorreu até a sua cara aparecer na pasta das pessoas mais procuradas pela Interpol é bastante longo, complexo e passa por vários países. Afinal, tem agora 71 anos, mas começou a fazer yoga em 1970, quando esta prática passou a ser proibida na Roménia, onde nasceu. Sete anos depois desse início no yoga, em 1977, foi condenado pela primeira vez a um ano de prisão por “posse e disseminação de material obsceno”.
Nesta altura, Grieg estava debaixo dos radares da Securitate (que significa precisamente segurança), a polícia secreta do regime de Nicolae Ceausescu, ao estilo soviético. Objetivo: eliminar opositores do regime, incluindo aqueles que praticavam yoga. Aliás, em 1982, a Securitate acusa-o de ser o líder do grupo de Meditação Transcendental na Roménia e foi, por isso, considerado um dos homens mais perigosos daquele país. Nesse mesmo ano, a Roménia determina, através de decreto, a proibição da prática de yoga. E é graças a esta lei que Grieg é detido dois anos mais tarde, em 1984. Fica sob custódia policial por “difusão ilegal de publicações místicas” e por “trabalhar como professor de yoga sem direito legal”, acaba por fugir e é detido dois meses depois e, dessa vez, é condenado a um ano e seis meses de prisão por ter fugido.
Pouco tempo depois, volta para a prisão e é internado, em 1989, no hospital-prisão de Poiana Mare, onde permaneceu durante pouco tempo. O governo de Nicolae Ceausescu cai e Gregorian Bivolaru é libertado. Com o fim do regime comunista na Roménia, Grieg vê uma oportunidade para espalhar as suas meditações e cria logo em janeiro do ano seguinte o MISA.
Mas nem o fim do comunismo nem a criação de um novo movimento mantiveram este homem longe da Justiça. Em março de 1997, a polícia romena entra em várias escolas fundadas por Grieg, faz buscas e, nessa altura, a Amnistia Internacional chegou até a emitir um comunicado sobre o excesso de força policial exercido durante as buscas.
As acusações relacionadas com crimes sexuais só chegam, no entanto, com o virar do século. Em 2004, é acusado pelo Ministério Público romeno por manter relações sexuais com menores, como está documentado em relatórios do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ainda nesse ano, soma mais um crime, de tráfico de pessoas, e acaba por fugir da Roménia para a Suécia.
Já na Suécia, é preso pouco depois de ter chegado, mas as autoridades recusam-se a extraditá-lo e, no ano seguinte, Grieg consegue mesmo obter asilo político, tendo adotado, aliás, o nome sueco de Magnus Aurolsson. Tinha 53 anos.
Todos estes processos judiciais, fugas e pedidos de extradição ditaram a expulsão do MISA, movimento que criou, da Federação Internacional de Yoga. É por isso que, em 2008, cria a sua própria federação, a Atman Yoga Federation e começam então a espalhar-se por vários países, incluindo Portugal, as escolas que seguiam a sua doutrina. Além da escola de Lisboa, há ainda uma no Porto.
Já com a sua federação criada, e mesmo fora da Roménia, começou a ser julgado à revelia no processo sobre os crimes de relações sexuais. Foi absolvido em primeira instância e na Relação, mas o caso foi até ao Supremo Tribunal de Justiça, que o condenou a seis anos de prisão, já em 2013. No total, este processo demorou nove anos e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu condenar a Roménia ao pagamento de uma multa de 1200 euros pela demora do julgamento.
Mas, apesar de ter sido condenado, as autoridades não sabiam em que país se encontrava, pois continuava em fuga, e só em 2016 conseguiram prendê-lo, quando Grieg tentou viajar para França com documentos falsos. É finalmente extraditado para a Roménia para cumprir a pena de seis anos e consegue sair em liberdade condicional um ano e dois meses depois. Volta a sair da Roménia e, logo em 2017, entra para a lista de pessoas mais procuradas pela Interpol pela prática de nove crimes, que incluíam tráfico de seres humanos e abuso sexual, praticados em França e na Finlândia entre 2006 e 2013.
Gregorian Bivolaru conseguiu esconder-se durante seis anos, possivelmente sempre em França, até ao final de novembro. Apesar de terem sido detidas 15 pessoas na operação de meados de novembro, apenas seis ficaram em prisão preventiva, incluindo Grieg.
Depois de ser detido, e depois de serem divulgadas muitas notícias que dão conta das relações das escolas de vários países com Gregorian Bivolaru, o MISA emitiu um comunicado, afastando qualquer ligação com o que aconteceu. No texto publicado depois no site da Federação criada por Grieg, é referido que a escola de França “é uma entidade independente, com a sua própria gestão e organização, embora faça parte da Atman”. “Como já estamos habituados, os media romenos estão a usar esta nova oportunidade para ‘desenterrar’ entrevistas sensacionalistas com ex-alunos do MISA – pessoas sem escrúpulos, desesperadas por atenção e dinheiro ou motivadas por vinganças pessoais”, lê-se no documento, que acrescenta ainda que Gregorian Bivolaru “tem sido alvo de campanhas dos órgãos de comunicação social, destinadas a desacreditá-lo, desde a década de 1990”.
Os antigos membros da escola de Lisboa que falaram com o Observador pediram todos anonimato. Não mostraram sinais de estarem “desesperados por atenção”. Mostram, sim, um medo notório de que os vídeos que foram “conduzidos” a gravar, nus, muitas vezes em atos sexuais explícitos, para poderem aceder ao núcleo mais próximo de Gregorian Bivolaru — e ao próprio líder da seita de yoga —, sejam usados contra eles por aqueles que continuam a fazer parte da instituição.
Na Roménia, o nome muda e juntam-se milhares de pessoas em agosto. Mas primeiro têm de mandar fotos em biquíni para dar a “conhecer a aura”
Há mais de 40 escolas associadas ao MISA espalhadas pelo mundo, abertas por discípulos de Grieg, mas a primeira abriu portas na Roménia, onde está a maioria do volume processual deste mestre. É também neste país que são feitos os batismos de quem quer supostamente conectar-se ainda mais com o yoga tântrico e dar mais uns passos naquilo que dizem ser a evolução espiritual. É também naquele país que são feitos os campos de meditação, todos os anos, em agosto, e onde se juntam milhares de pessoas na pequena vila de Costinesti, à beira do Mar Negro.
Para o batismo, mais uma vez, juntam-se “yogis” de todos os pontos do mundo, incluindo de Portugal. Foram vários os portugueses que quiseram batizar-se e receber do mestre um novo nome, que passaram a usar dentro da escola, depois daquela cerimónia. Beatriz, ao fim de alguns anos na escola e de convivência no Ashram, decidiu que queria ser batizada e foi até à Roménia. Os valores para participar na cerimónia dependem do país de origem – Beatriz pagou 300 euros; os alemães pagam habitualmente mais, o valor ultrapassa os 600 euros; e os romenos pagam menos de 200 euros.
Mas quem queria ser batizado não tinha de fazer apenas o pagamento. Era preciso enviar fotografias em biquíni, no caso das mulheres, e fotografias em cuecas, no caso dos homens. “Agora, parece de loucos, mas as fotos que tínhamos de enviar eram para, supostamente, conhecer a aura de todos os participantes e perceber a aura global”, explica Beatriz. Depois da aprovação, Beatriz recebeu o respetivo nome, vestiu-se de branco e viajou até à Roménia, onde foi batizada por um padre ortodoxo. Juntavam-se todos os anos várias dezenas de praticantes de yoga em igrejas ortodoxas ou em salas enormes arrendadas para aquele efeito.
A prática de enviar fotografias era comum em praticamente todos os eventos. Para ir a Costinesti em agosto também era obrigatório tirar fotografias – a que se juntava a obrigação de realizar testes de despiste ao HIV e à sífilis. Eram, portanto, recebidas milhares de fotografias. “Se, por algum motivo, tivesse alguma coisa na aura, não seria aceite”, conta Beatriz. E já lá dentro do campo de meditação, em alguns eventos “mais restritos”, era necessário voltar a enviar fotos e, em alguns casos, as fotografias tinham de ser tiradas sem roupa.
“Às vezes diziam: nesta tua foto, estou aqui a ver que o teu chakra no pescoço – que é o vishuddha chakra, sobre a pureza da pessoa – está meio desalinhado, não podes participar”, continua a explicar, para mostrar que este tipo de seleção gerava nos participantes um sentimento de competição. “Às vezes diziam: não podes porque estás gorda, tens de praticar uma espécie de penitência, tens de fazer um tapa, que é um comprometimento espiritual, em que durante 30 dias tens de fazer 50 minutos de meditação e três minutos de respiração.”
As participantes seguiam as indicações, em constante perseguição do objetivo, porque, mais uma vez, queriam evoluir espiritualmente. Algumas pessoas chegavam a ver a sua participação barrada em várias atividades dentro do campo, mas estas antigas alunas olham agora para esses momentos e a perceção é completamente diferente daquela que tinham na altura. Antes acreditavam que quem não era aceite não tinha uma boa aura, mas hoje, com o devido distanciamento, consideram que eram excluídas aquelas que poderiam, mais tarde, falar sobre o que acontece dentro das escolas. “O critério era sempre escolher as mais bonitas, e aquelas que ainda não estavam totalmente convencidas daquilo que se estava a passar ficavam fora”.
O campo funcionava como tantos outros: durante todo o mês de agosto, há muitas horas de meditação, muitos workshops, convívios, venda de livros, de suplementos alimentares e até de um “gel que diziam que protegia contra doenças sexualmente transmissíveis e que bastava usar isso” — tudo promovido pelo MISA. E existia também, mais uma vez, uma forma de dividir os participantes: “Havia uma casa em que só as mulheres escolhidas podiam entrar e todas as outras ficavam com inveja. Eram as escolhidas do mestre, tinham um programa especial. Cá para fora, o que passa é que elas foram aprender mais, vão evoluir mais rápido. Eram sempre as mais bonitas e diziam que a nossa beleza também está associada à evolução espiritual, porque o reflexo da nossa aura era todo refletido no nosso corpo”.
O evento privado dos campos de meditação, as fotografias nuas e os vídeos em orgias
No meio do campo de meditação de Costinesti há ainda espaço para um concurso: o Miss Shakti. Os requisitos são simples: só podem participar mulheres e estas têm de enviar fotografias sem qualquer peça de roupa. Candidatura aceite, tinham pela frente dez dias de espetáculos e dois programas – um público, para todos os participantes do campo de meditação, e um secreto.
No programa público, eram feitas apresentações de danças, posições de yoga, tudo ensaiado nos dias anteriores, “em micro biquínis que eram feitos para cair em palco”. Já no secreto, ninguém sabia o que ia acontecer, apesar de todos saberem que existia. “As pessoas sabem que há um programa secreto, mas não faz mal, porque são umas sortudas, foram escolhidas”, explica Beatriz.
As mulheres são então divididas em vários grupos e, tal como acontece para quase tudo o que é feito, têm de assinar acordos de confidencialidade, prometendo que não contam nada do que ali se passa, e um acordo que implica que todas as imagens feitas dentro daquele campo passavam a ser propriedade da escola. Numa primeira fase, todas as participantes são fotografadas nuas, mais expostas. “Estão 200 mulheres a permitir que isso aconteça, vais recusar?”, questiona outra antiga aluna.
Estas fotografias são tiradas numa sala à parte, onde as participantes se encontram à noite. Com tons vermelhos e dourados, o conforto do espaço é o suficiente para ninguém usar roupa. E as fases abertas ao público — outros participantes do campo de meditação — vão passando, as mulheres são eliminadas de acordo com a sua evolução espiritual e começam então os eventos do programa secreto, inaugurados com a chamada preparação para a noite.
Quando acontece esta preparação para a noite secreta, sobram pouco mais de 20 mulheres. Dentro da sala em tons de vermelho e dourado, o chão é forrado a plástico e há garrafas de água em todos os cantos. A música de “cariz sexual muito intenso” dá início a uma meditação em grupo. Estão todas com os olhos fechados. Quando os abrem, a luz é também em tons quentes e “estão no meio de uma orgia entre mulheres”, filmada pelos únicos homens presentes na sala – e cujas imagens são já propriedade do campo.
Passada esta fase, chega a noite secreta e podem assistir dois convidados escolhidos por cada uma das participantes. Continuam nuas e, desta vez, o espetáculo é feito em cima do palco e é aconselhado que cada uma dessas mulheres faça uma dança, ou chame outras para o palco e façam, no fundo, o que fizeram na noite de preparação, mas em palco. Mais uma vez: tudo é filmado, tudo é propriedade dos organizadores do encontro.
Beatriz usa uma formulação para explicar o funcionamento dos encontros mais privados que só pode ser verdadeiramente entendida depois de se perceber os anos de ligação destas mulheres à escola fundada por Gregorian Bivolaru e a formatação psicológica a que eram submetidas: ali, “ninguém é obrigada a nada, são convencidas a fazer”.
*Artigo corrigido a 11 de Dezembro, com a informação relativa às escolas ligadas a Bivolaru que existem em Portugal. Inicialmente, foram mencionadas três escolas, mas são apenas duas — Lisboa e Porto e não Loulé.