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Como se tornou Humberto Delgado líder da oposição em Portugal?

Marcello Caetano conta nas suas Memórias, referentes à época em que foi ministro de Salazar, que este reagiu aparentemente sem preocupação aos boatos que no início de 1958 começaram a surgir sobre Humberto Delgado. Acabado de regressar de Washington, onde tinha sido representante de Portugal na NATO, Delgado manifestava intenções de se apresentar, nesse ano, como candidato independente à Presidência da República. A tranquilidade do habitualmente desconfiado Presidente do Conselho baseava-se no longo passado do general como servidor do regime.

Humberto Delgado nasceu em 1906. Era por isso um jovem oficial quando se dá o golpe de estado de 28 de Maio de 1926, no qual participa. Torna-se logo a seguir um entusiástico apoiante do Estado Novo, tendo publicado em 1933 um livro, Da Pulhice do Homo sapiens, onde fazia rasgados elogios ao “grande homem Salazar”.

Era verdade que, por vezes, Salazar recebia dele cartas demasiado desabridas para aquilo que era normal nos seus colaboradores. Como esta, em 1946, quando ainda nem era general: “Ora eu sirvo incontestavelmente V. Exa. com respeito, alta admiração […] e até dedicação pessoal apesar da quase permanente frieza de V. Exa.; mas confesso que não sei servir com medo ou subserviência […].”

Contudo Delgado tinha sido dos primeiros dirigentes da Legião Portuguesa e comissário-adjunto da Mocidade Portuguesa, além de que desempenhara missões importantes, por exemplo como representante nas negociações secretas para a cedência de bases nos Açores ao Reino Unido. Tinha estado até na origem da criação da TAP e era nessa altura diretor-geral da Aviação Civil. Aliás, recebera pouco antes, em novembro de 1957, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Avis.

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Os avisos de Caetano tinham no entanto razão de ser, como iria provar-se nos sete anos seguintes. O General Delgado tinha regressado de Washington transformado, era um homem muito diferente daquele que Salazar conhecera e com quem tinha trabalhado.

A personalidade era a mesma, impetuoso, por vezes insensato, como veio a provar-se no futuro, mas agora o seu fascínio deslocara-se do salazarismo, que lhe parecia não conseguir vencer o atraso e se ter deixado dominar pela rotina (“Salazar está velho, está gasto, está fora de moda!, confidencia a Caetano), para o modelo de sociedade que o tinha seduzido nos EUA (como desabafou Salazar ao seu ministro da Defesa, Delgado “voltou estragado dos EUA”). Depois da permanência nos EUA desenvolveu um projeto: reformar os Estado Novo substituindo Salazar.

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Como se transformou o “General sem medo” num fenómeno de popularidade?

Era norma da oposição aproveitar os raros períodos eleitorais (no caso das eleições para a presidência da República apenas de sete em sete anos) para fazer campanha contra o regime, organizando comícios e distribuindo propaganda, com discursos relativamente formais dos candidatos e dentro das limitações que lhe eram impostas. Um pouco antes do dia das eleições os candidatos desistiam. Era isso que tinha acontecido nas presidenciais anteriores com Norton de Matos (em 1949) e Quintão Meireles (em 1951 em resultado da morte do presidente Carmona) e era previsível que o mesmo viesse a acontecer em 1958.

É aqui que Humberto Delgado surge como um fenómeno inesperado. Não só profere uma frase surpreendente, que iria ficar célebre, como garante que vai até ao fim, até ao dia das eleições.

A frase célebre foi proferida a 10 de Maio de 1958, numa conferência de imprensa no café Chave d’Ouro. A uma pergunta do jornalista Lindorfe Pinto Basto, da agência France-Press“Sr. General, se for eleito Presidente da República, que fará do Sr. Presidente do Conselho?” – Humberto Delgado respondeu: “Obviamente demito-o!” Tal afirmação, que será banal no discurso político atual, era impensável na época para a maioria dos portugueses. Prova disso é a reação de satisfação dos defensores do regime: uma declaração daquelas liquidava Delgado em termos eleitorais porque “o País não tolera que se toque em Salazar”.

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A garantia de que ia até às urnas (o que criava desde logo enorme expectativa sobre os resultados que pudesse vir a ter) e a coragem de afrontar directamente Salazar, aliados a um discurso empolgante (demagógico, segundo os apoiantes do regime) vão despertar um entusiasmo como nunca tinha existido em eleições anteriores.

Delgado corre o país, atingindo recantos onde não era habitual ver-se um candidato a presidente mas onde a sua fama já tinha chegado, o que lhe garante sempre banhos de multidão, acompanhados de confrontos com a polícia. Frequentemente atravessa cidades, vilas e aldeias a pé, num inédito estilo de campanha inspirado no que tinha visto nos EUA.

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Tal como Salazar, também a oposição inicialmente desconfiou deste antigo colaborador do regime. O PCP, que chegou a pensar ser a candidatura de Delgado resultado de um conluio entre Salazar e os serviços secretos americanos e ingleses para dividir a oposição, vence a desconfiança e dá-lhe o seu apoio a 30 de Maio, no “Pacto de Cacilhas”. Em plena campanha os apoios abrangem assim um leque que vai desde os comunistas aos antigos nacional-sindicalistas, passando naturalmente pelo centro, ou seja, pelos monárquicos e pelos velhos republicanos. O “furacão Delgado” acabou não só por surpreender o regime como a quebrar rotinas entre a oposição, indo ao encontro das suas melhores expectativas: dezenas ou centenas de milhares de apoiantes nas ruas.

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Delgado teria ganho as eleições se não existisse fraude eleitoral?

A convicção de muitos opositores dessa época de que, sem fraude, Delgado teria vencido as presidenciais de 1958 baseia-se provavelmente na dimensão das manifestações de apoio durante a campanha eleitoral. Segundo estimativas apresentadas numa publicação das edições “Avante” posterior ao 25 de abril, só as manifestações do Porto e de Lisboa terão tido em conjunto 500.000 participantes. Ora os resultados oficiais das eleições atribuíram apenas 234.026 votos (23%) ao general contra 750.733 (75%) para o almirante Américo Tomás, candidato do Governo. Como seria possível que os apoiantes de Humberto Delgado tivessem “desaparecido” no dia das eleições?

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Para responder a esta perplexidade é preciso ter em conta o que era a realidade eleitoral em Portugal naquela época. Os cidadãos maiores de 21 anos seriam, em 1958, cerca de 5,5 milhões mas destes apenas 1,4 milhões estavam recenseados. Cerca de ¼, portanto, dos adultos.

O número de cidadãos recenseados era muito baixo. A própria mecânica do recenseamento condicionava o perfil dos votantes e o seu baixo número: muitos cidadãos eram recenseados a partir das relações enviadas pelas comissões de freguesia e outros serviços do Estado. Naturalmente quem não fazia parte deste universo do recenseamento oficioso podia requerer o seu recenseamento. Um ato voluntarista que poucos praticavam. Note-se ainda que muitos cidadãos, mesmo que o desejassem não podiam votar pois o direito de voto era condicionado pelas habilitações e valor das contribuições pagas. Este constrangimento da capacidade eleitoral era ainda diferenciado consoante o sexo, sendo agravado no caso das mulheres.

É provável por isso que muitos portugueses que manifestaram nas ruas o seu apoio ao “General sem medo” nem sequer estivessem em condições de votar. Note-se além disso que destes 1,4 milhões de recenseados só terão votado 999 mil cidadãos. A fraude terá passado não tanto por tirar votos a Delgado mas sim por atribuir a Américo Thomaz os votos dos abstencionistas, pelo que provavelmente o número real de votantes ficou abaixo dos 999 mil.

É também curioso ver como um homem do regime avalia o que aconteceu. Marcelo Caetano concede, nas suas “Memórias”, que, “aqui e acolá”, poderá ter havido fraude. Ora “admitindo mesmo, sem conceder, uma larga margem de 15% para essa fraude, o Almirante Américo Thomaz ganhou a eleição, pois resultaria uma relação de 60% – 38%”.

É impossível conhecer hoje a dimensão da fraude praticada no dia das eleições (8 de Junho de 1958) e a votação real. Ainda assim, os resultados oficiais atribuídos a Delgado podiam ser considerados uma vitória pelos seus apoiantes, tendo em conta o ambiente de repressão e intimidação. Além disso houve uma vitória complementar da oposição, agora referente à imagem do regime: para grande parte dos portugueses dessa época (e mesmo que isto não corresponda à verdade) Américo Thomaz só conseguiu ganhar porque houve fraude.

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O regime de Salazar esteve próximo de cair em 1958?

Mais do que acreditar em meios legais, como a eleição como Presidente da República, ou mesmo num levantamento popular, tradicionalmente defendido pelos setores mais à esquerda (respondia-lhes “Pois, pois, o povo levanta-se todas as manhãs…”), Humberto Delgado esperava que o ambiente de euforia que a sua candidatura tinha desencadeado no país inspirasse um número significativo de militares a derrubar o regime. Para isso contava também com o ambiente vivido nas Forças Armadas, então muito divididas pela animosidade que Fernando Santos Costa, ministro da Defesa e membro do Governo havia já 22 anos, tinha desencadeado nos meios castrenses.

Aparentemente estavam assim reunidas as condições para a eclosão de um golpe militar durante o período que antecedeu e em que decorreu a campanha eleitoral. O próprio Governo deve ter tido consciência da perigosidade da situação e mobilizou durante a campanha eleitoral meios excecionais, entregando a um comando único chefiado por Santos Costa que incluía não só a PSP e a GNR mas também as Forças Armadas, a missão de reprimir manifestações e reuniões, que se traduziu em cargas policiais e feridos entre a população. É possível que esta inclusão dos militares, chamados a participar em ações de repressão contra civis, atividade até aí da exclusiva responsabilidade das forças policiais e paramilitares, tenha agudizado ainda mais o ambiente nos quartéis.

As ambicionadas revoltas militares até chegaram a ser planeadas mas nunca chegaram a eclodir: ainda em 1958 há duas tentativas falhadas de revolta, no ano seguinte uma outra (revolta da Sé) e em 1961 uma derradeira tentativa de golpe encabeçada pelo próprio ministro da Defesa, General Botelho Moniz. Mas logo tocaram a reunir os clarins em resposta aos primeiros ataques da UPA no Norte de Angola, mobilizando as tropas e adiando por muitos anos (com exceção do assalto ao quartel de Beja) qualquer tentativa de derrube armado do regime.

Mas não se pode ignorar que Humberto Delgado criara no entanto uma situação nova. Até aí Salazar convivera com grupos de influência (monárquicos, republicanos conservadores), gerindo conflitualidades, ou então confrontara-se com forças políticas irredutíveis (comunistas, republicanos de esquerda), em relação aos quais usava os meios de repressão considerados adequados. Desta vez um antigo apoiante tinha pretendido configurar um duelo pessoal.

Não se sabe se Salazar o terá entendido assim. Em privado, segundo testemunhos, parecia lamentar-se do caminho que tinha seguido um colaborador tão próximo como o piloto-aviador Humberto Delgado. Mas nem por isso o seu Governo deixou de o demitir de todos os cargos oficiais. Em 1960, Delgado seria mesmo excluído da Força Aérea, deixando de receber o soldo de militar.

Até à sua morte Delgado nunca deixou de acreditar ser a ação militar, eventualmente com o apoio de civis armados, a única solução para fazer cair o regime. Em abril de 1974 a História dar-lhe-ia razão.

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Porque acaba o general incompatibilizado com a maioria dos opositores ao regime?

A partir de abril de 1959 Humberto Delgado está já a viver Brasil, contratando no fim desse ano Arajaryr Campos como secretária, e introduz uma azáfama nas atividades da oposição muito superior ao habitual. De Portugal traz consigo o MNI, Movimento Nacional Independente, criado no ano anterior, mas logo em janeiro de 1960 lança o DRIL, Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, por acordo com o Governo espanhol no exílio, e três anos depois preside à FPLN, Frente Patriótica de Libertação Nacional, que federou quase toda a oposição, com predomínio dos comunistas. Mas no verão de 1964 a rutura com esta frente é já total e irreversível. Delgado fica então reduzido a um pequeno número de apoiantes, nem todos confiáveis, com os quais ainda constitui outra FPLN (troca a designação “Patriótica” por “Portuguesa”) em outubro de 1964. Como passara o general de líder unitário a cavaleiro solitário na luta contra o regime?

A explicação mais comum prende-se com a sua “personalidade forte”, que tanto agrega como desagrega e que facilmente entra em choque com outras de perfil semelhante (caso de Henrique Galvão). Mas a culpa talvez não fosse apenas sua porque também a oposição sempre revelou essas duas pulsões, gregária e pulverizadora. Mais importante contudo era a resistência que os seus desejos de ação armada imediata encontrava perante a postura cautelosa da maioria dos opositores, tradicionalmente desconfiada de golpes militares que não podia controlar e que, para os setores mais à esquerda, estavam no zénite ideológico do levantamento de massas que defendiam.

Se fizermos um balanço destes seis anos de exílio temos de reconhecer, em primeiro lugar, que Humberto Delgado conseguiu que pela primeira vez a oposição a Salazar tivesse um rosto reconhecido internacionalmente, que os jornais europeus e americanos associavam ao combate a um ditador que se mantinha anacronicamente no poder passada a segunda guerra (até Abril de 1974 a figura de Cunhal circunscrevia-se aos países de leste e a de Soares, que se afirmaria mais tarde, nunca teve enquanto exilado a mesma dimensão).

Paralelamente nunca como neste período as ações dessa oposição se manifestaram em atos tão espetaculares. Em janeiro de 1961 foi o assalto ao paquete Santa Maria, após o qual Delgado entra em rutura com Henrique Galvão. Um ano depois o general dá entrevistas onde conta como esteve em Portugal durante duas semanas, a acompanhar a tentativa de golpe no quartel de Beja, sem que a polícia política o detetasse. Para o provar mostrava os carimbos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) colocados no passaporte falso que usou e as fotografias tiradas em vários locais de Lisboa. Fotografias que para alguns terão levado a PIDE humilhada a decidir neutralizar o general.

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O que levou Humberto Delgado a Badajoz, atraído por aquilo que tudo indicava ser uma armadilha?

Em outubro de 1964, Humberto Delgado está a ser operado numa clínica em Roma. É já a terceira cirurgia a que se submete em menos de dois anos e delas resultaram cicatrizes que até ao fim da sua vida irão recusar-se a sarar. Nos últimos anos tinha também conhecido períodos de grandes dificuldades económicas. Estava além disso de relações cortadas com os principais grupos oposicionistas, mesmo aqueles que sempre estiveram ao seu lado desde 1958 (Artur Andrade, por exemplo, que o convidara a candidatar-se à Presidência, considerara o assalto ao Santa Maria e a entrada em Portugal por ocasião do golpe de Beja aventuras irresponsáveis). Mas para Delgado a ideia de ação armada a curto prazo, que antes era uma convicção estratégica, agora é já uma imposição ditada pela urgência. Ou pelo desespero. É o tudo por tudo, que o leva a assumir riscos cada vez maiores. A qualquer aviso que lhe fosse feito sobre os perigos de uma armadilha, mesmo que o tivesse em consideração, já não podia obedecer-lhe.

O que entretanto Delgado não sabia era que o homem que organizara a sua entrada na clínica de Roma, Ernesto Bisogno, era alguém das relações do subdiretor da PIDE, Barbieri Cardoso, tal como ignorava que o oposicionista “professor” Mário de Carvalho, que Bisogno lhe apresentara, era um informador daquela polícia, com o pseudónimo “Oliveira”. Carvalho, que se tornara representante de Delgado em Itália no verão de 1961, seduz o general com a existência de uma organização em crescimento, formada por recentes dissidentes, alguns deles militares, interessados numa ação revolucionária e da qual dá dados fantasiosos (210 aderentes em Grândola, 491 em Setúbal) que só a impaciência de Delgado explica que tenha aceite como verosímeis (nem espera, aliás, que a existência desta estrutura seja confirmada por apoiantes seus no interior do país). Ao mesmo tempo que Carvalho lhe acena com financiamentos e uma (simulada) compra de armas vai reforçando a má imagem que o general já tinha da maioria dos oposicionistas, aumentando-lhe o isolamento.

Desde a partida de Humberto Delgado para o exílio que a polícia política portuguesa o vigiava, através de informadores que procuravam infiltrar-se nos meios oposicionistas. Mas é o ano de 1962 que se torna decisivo. É não só o ano que começa com a humilhação para PIDE do golpe de Beja como também aquele em que ascende ao poder nesta polícia o inspector Barbieri Cardoso que irá dar novo alento à “Operação Outono”. No quadro desta operação, centrada em Delgado, são utilizados meios técnicos e financeiros muito superiores ao que era comum na PIDE.

E assim, dois anos depois, o cerco a Delgado está montado: em 27 de Dezembro de 1964, no Hotel Caumartin, em Paris, o general encontra-se com Mário de Carvalho e um representante civil da organização revolucionária existente em Portugal, Ernesto Castro Sousa, que lhe diz poder contar com 4600 homens. Marca-se o local e a data para um encontro com militares vindos do interior de Portugal. Castro e Sousa (afinal o subinspetor Ernesto Ramos Lopes) iria encontrar-se com o general em Badajoz. Mais tarde será marcada a data, dia 13 de fevereiro. Estava tudo combinado. E Delgado orgulhava-se de ser sempre pontual.

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O que sabia a polícia espanhola?

No dia 11 de fevereiro de 1965, Humberto Delgado entra em território espanhol utilizando um passaporte falso em nome de Lorenzo Ibañez, nascido no Brasil, de 58 anos. Ia companhado de Arajaryr Campos, que exibiu um passaporte brasileiro verdadeiro.

Em Badajoz o comportamento do general foi tudo menos discreto, tendo sido visto em locais públicos tão expostos como os correios, a estação dos caminhos-de-ferro ou a Oficina de Turismo, recolhendo informações e fazendo perguntas em várias línguas. Também o vestuário vistoso de Arajaryr contribuiu para que o par se salientasse na pacatez estremenha de Badajoz.

Durante muitos anos predominou uma versão segundo a qual a polícia espanhola estava perfeitamente a par desta viagem. Um coronel da Guardia Civil teria até seguido os passos do general a partir de Argel, apenas lhe tendo perdido a pista em Algeciras. As autoridades do país vizinho sabiam assim da sua presença em Badajoz antes do dia 13, data da sua morte, admitindo-se que só nesse dia lhe perderam o rasto.

Decorria daqui que a polícia de Franco poderia, ou deveria, ter procedido à detenção do general, já que sobre ele pendia um mandado de captura, e que se não o fez foi em resposta a uma solicitação da sua congénere portuguesa nesse sentido. Esta versão tem contudo uma consequência: mesmo aceitando o pedido português, a Guardia Civil e a Seguridad ficariam alerta. Assim, seria uma loucura a PIDE enviar de seguida uma brigada àquele país para assassinar o general, desencadeando inevitavelmente as fúrias, justificadas, das autoridades espanholas que logo perceberiam o logro de que tinham sido vítimas.

Há contudo uma versão diferente, apresentada por Frederico Delgado Rosa, neto e autor de uma biografia do general, que se apoia em documentos dos arquivos espanhóis: a polícia do país vizinho desconhecia em absoluto a entrada de Delgado no seu país e não recebeu qualquer informação da PIDE nesse sentido. Apenas no dia 15 de fevereiro, passadas 48 horas sobre o duplo assassinato, recebeu as primeiras notícias acerca da viagem do general. Sublinhe-se que esta é a versão que se adequa melhor à tese de morte premeditada de Humberto Delgado: a PIDE pretenderia ir a Espanha, executar Delgado e regressar sem que a sua congénere se apercebesse. A ser isto verdade, terá a polícia portuguesa pesado os riscos? Tendo em conta o curso dos acontecimentos parece que não os pesou suficientemente.

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O que concluiu o processo judicial organizado em Espanha?

Passados dez dias sobre o desaparecimento de Humberto Delgado (verificado a 13 de Fevereiro), o seu representante em Marrocos, Henrique Cerqueira, dá o alerta, de acordo com o que tinha ficado acordado entre ambos. A 24 de fevereiro o desaparecimento é já notícia em todo o mundo. A suspeita recaía por enquanto sobre a polícia espanhola, apresentada como provável autora de uma detenção do general, mas esta desconhece por enquanto o seu paradeiro e o da sua secretária, sabendo que eles estiveram em Espanha e pouco mais.

A Brigada de Investigación Criminal começa a fazer as primeiras perguntas mas só em 24 de Abril surge um facto que lhe permite avançar: José Feijó e José Felipe Porras, entre os 13 e os 15 anos, andavam aos pássaros por Los Malos Pasos, perto de Villanueva del Fresno, quando o cão de um deles põe a descoberto uma caveira. Estavam encontrados os cadáveres de Delgado e Arajaryr. No dia seguinte é feita a exumação dos corpos mas devido ao seu estado de decomposição a autópsia tem de ser feita no local.

Entretanto, por iniciativa de Emídio Guerreiro, outro representante do general, neste caso em Paris, uma comissão da Federação Internacional dos Direitos do Homem inicia os seus trabalhos, passando entre outros locais por Badajoz, onde lhe é dito pelo comissário da Polícia que esta de nada sabia acerca do general. Isto no próprio dia em que os corpos são exumados.

Esta comissão não deixa no entanto de apresentar o seu relatório, onde aponta como provável a prisão ou assassinato de Delgado pela polícia de Franco, mas admitindo também a participação da PIDE. Para Espanha, o “caso Delgado” começava a tornar-se injustamente incómodo, apesar de esta ter feito vários esforços, sobretudo em contactos de bastidores com Portugal, com vista a uma colaboração entre as respetivas autoridades que estabelecesse uma sintonia de posições. O próprio vice-presidente do Governo de Espanha, capitão-general Munoz Grandes, de passagem por Lisboa a 8 de março, procura apurar junto de Salazar qual o papel das autoridades de Portugal no desaparecimento da principal figura da oposição portuguesa. Também o chefe do serviço de informações da Direcção-Geral de Segurança de Espanha visitou a sede da PIDE a 7 de maio, para coordenar as intervenções das duas polícias e dias depois era a vez de Barbieri Cardoso (na prática o nº 1 da polícia política portuguesa) retribuir a visita com uma deslocação a Espanha. Aparentemente não faltava boa vontade de parte a parte para esclarecer o caso. Mas só aparentemente: de facto os responsáveis portugueses nunca contribuíram com qualquer informação relevante, como rapidamente as autoridades de Espanha iriam compreender.

A PIDE chega até a autorizar a ida de um agente seu àquele país com todas as informações que dizia ter disponíveis, sendo que esse agente era exatamente Rosa Casaco, que a polícia espanhola já conhecia há muitos anos, tendo por isso sugerido o seu nome. O que os espanhóis não sabiam e Portugal também não lhes disse é que Rosa Casaco era o chefe da brigada que assassinara Delgado.

Espanha, que já tinha problemas de sobra no contexto ocidental em relação à sua imagem, não vê por que motivo deve suportar as culpas alheias. É assim nomeado um juiz especial para o caso Delgado, com jurisdição em todo o território espanhol, Don José Maria Crespo Marquez, que logo começa a investigar. Apesar de não ter obtido quaisquer condenações dos responsáveis, é graças ao processo judicial assim iniciado que dispomos hoje de um conjunto de informação bastante significativo. Entre outros elementos permitiu:

  • Relacionar os cadáveres com um homem e uma mulher que haviam desaparecido do Hotel Simancas, em Badajoz.
  • Identificar os corpos, utilizando, no caso de Delgado, os mais sofisticados meios técnicos disponíveis na época, já que os corpos se encontravam em avançado estado de putrefação.
  • Conexão entre os dois homicídios e a passagem pela fronteira, no dia 13 de fevereiro, de dois automóveis, tendo um dos ocupantes sido apresentado pelo funcionário do posto fronteiriço português António Semedo aos seus congéneres espanhóis como sendo seu colega, ou seja, elemento da polícia política portuguesa (a PIDE assegurava o serviço nas fronteiras, pelo que Semedo era funcionário da corporação).
  • Definir, através de autópsia, a causa da morte do general por “contusão cerebral e fratura da base do crânio” e sugerir, devido à falta de quatro vértebras, a “hipótese de graves lesões no pescoço que explicarão o mecanismo da morte”, no caso de Arajaryr Campos. Ou seja, uma pancada no primeiro caso, e estrangulamento no segundo.
  • Identificar, com base nos registos efetuados pelos guardas da fronteira espanhola, os referidos veículos, Opel e Renault, as respetivas matrículas e números do motor e chassis. Mais tarde, após ser inquirida sobre a identidade dos proprietários destas viaturas, a PIDE decidiu proceder à sua destruição. Os automóveis pertenciam a dois dos agentes que foram a Badajoz, Agostinho Tienza e Ernesto Lopes Ramos.
  • Identificar, através dos registos dos passaportes e testemunhos dos agentes da alfândega, os homens que viajavam nessas viaturas: Roberto Vurrita Barral, Ernesto Castro e Sousa, Filipe Garcia Tavares e Washdeo Kundanmal Mirpuri (na realidade António Rosa Casaco, Ernesto Lopes Ramos, Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, identidades estas que a justiça espanhola nunca chegou a conhecer).
  • Estabelecer uma ligação implícita entre PIDE e este grupo de homens: a polícia inglesa informara as autoridades espanholas que Washdeo Kundaumal Milpuri era um súbdito britânico cujo passaporte fora retido pela PIDE em Lisboa e supostamente extraviado por esta.
  • A identificação do local do crime, em Los Almerines, próximo de Olivença, devida à descoberta por um morador local, Casimiro Medina, de três balas por disparar e de dois cartuchos. Ao proceder à inspeção do terreno, a polícia encontrou mais uma bala por disparar e mais três cartuchos usados (num total de 3 balas por disparar e 5 cartuchos usados), assim como duas pontas de cigarro e um boletim do totobola português rasgado.
  • Reforçar uma provável ligação do local do crime às duas viaturas que passaram a fronteira no dia 13 de Fevereiro: um jovem pastor, Marcelino Balanza, avistara ali e nessa mesma data um grupo de homens próximos de dois carros, acrescentando que no dia seguinte encontrou também nesse sítio um rasto de sangue e um objeto que lhe pareceu uma bala (alertando depois o amigo Casimiro Medina para a sua descoberta). Há ainda o testemunho de um tractorista que ouvira um disparo próximo do local na mesma data.
  • Identifica a importância na decisão de Delgado de ir a Badajoz das figuras de Mário de Carvalho e de Ernesto Bisogno, que relacionou com a OAS, grupo de extrema-direita francesa (Ver pergunta 6. O que levou Humberto Delgado a Badajoz?) Chegou a pedir a Itália a sua extradição, que não foi concedida.

Em determinado ponto o processo espanhol ficou bloqueado. Os investigadores devem ter compreendido que apenas António Semedo podia revelar a verdadeira identidade dos homens que passaram a fronteira naquele dia 13, mas quando o interrogaram apenas obtiveram respostas vagas. O material recolhido pelo processo judicial dirigido pelo juiz Crespo Marquez era no entanto precioso para um futuro julgamento a realizar em Portugal se novas condições políticas o permitissem.

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E o julgamento em Portugal após o 25 de Abril?

Um mês passado sobre o 25 de abril, mais exatamente no dia 29 de Maio de de 1974, António Semedo, ex-funcionário do posto fronteiriço de São Leonardo que dera passagem à brigada que foi a Badajoz ao encontro de Humberto Delgado, revela finalmente o segredo que guardara durante nove anos: a verdadeira identidade dos agentes dessa brigada.

Um deles encontrava-se exatamente na mesma cidade onde Semedo fazia esta revelação, Luanda. Era o antigo subinspetor Ernesto Lopes Ramos, agora advogado em Angola, logo detido e conduzido para Lisboa. Outro agente era Agostinho Tienza, igualmente detido, dias depois, em Caxias. Os restantes elementos da brigada, exatamente aqueles cujo depoimento seria mais relevante, eram Rosa Casaco, que chefiou a missão a Espanha, e Casimiro Monteiro, ambos fugidos após o 25 de abril.

As declarações de António Semedo faziam-se já ao abrigo de uma participação que dera entrada na Polícia Judiciária no dia 29 de abril de 1974, por iniciativa do advogado Joaquim Pires de Lima, e que daria origem a um processo em Tribunal Militar, já que os funcionários da PIDE/DGS se encontravam sujeitos ao Código de Justiça Militar. A instrução prolongou-se por três anos, até 25 de julho de 1977, concluindo que apenas Casimiro Monteiro deveria ser julgado enquanto autor material do homicídio, já que atuara “por uma resolução sua e em isolado agir”. Esta decisão foi no entanto alterada posteriormente de modo a incluir, além dos quatro agentes da brigada, os seus superiores hierárquicos enquanto prováveis mandantes do crime.

O libelo acabou assim por imputar a autoria moral de dois crimes de homicídio a Fernando Silva Pais, Barbieri Cardoso (ausente de Portugal) e Pereira de Carvalho, responsáveis máximos da PIDE/DGS, e a Rosa Casaco, Lopes Ramos e Agostinho Tienza a autoria moral do crime de homicídio qualificado na pessoa de Humberto Delgado e a coautoria material do homicídio de Arajaryr Campos. Casimiro Monteiro era acusado não só deste último crime como também lhe era atribuída a autoria material do crime de homicídio qualificado de Humberto Delgado. Através deste libelo o promotor de Justiça, coronel Casimiro Dias Morgado, defendia que a missão da PIDE teria como objetivo reduzir Humberto Delgado à “não atuação”, e por isso devia prever que, para esse fim, pudessem ser utilizados quaisquer meios, incluindo a eliminação física, sublinhando em apoio desta ideia a utilização de cal viva e de ácido sulfúrico.

Parece poder concluir-se que o julgamento realizado no 2º Tribunal Militar de Lisboa e iniciado em 9 de outubro de 1978 não só privilegiou os depoimentos dos réus presentes como as versões que permitiam caracterizar a missão da PIDE em Badajoz como um ato meramente policial. Além de Rosa Casaco e de Casimiro Monteiro, o julgamento acabou por não contar com a presença de Ernesto Lopes Ramos, entretanto fugido do país mas que chegou a depor para o processo.

O tribunal acabou por apreciar em particular a versão apresentada por Silva Pais, segundo a qual o objetivo seria atrair Humberto Delgado a território português: um elemento da brigada, Rosa Casaco, fazia passar-se por alto responsável da suposta organização militar revolucionária existente no interior de Portugal e aliciaria o general a passar a fronteira espanhola. Casaco afirmava contudo, em depoimento escrito enviado para o tribunal, que antes pretendia cloroformizar Delgado e transportá-lo na bagageira do carro. Note-se contudo que o general o conhecia bem Rosa Casaco pelo que o ardil, mesmo a ter existido, estava comprometido à partida.

Em suma, os juízes acabaram por valorizar a tese de detenção falhada devido a um ato impulsivo e imprevisto de Monteiro que abrira fogo sobre o general (ver pergunta 11. Terá Humberto Delgado sido vítima de um rapto que correu mal ou, pelo contrário, a PIDE levava ordens para matar?). Ficavam deste modo arredadas não só as conclusões da autópsia do processo espanhol (do qual tinham sido extraídas certidões) e que apontavam para morte de Humberto Delgado por contusão como também a narrativa constante do depoimento de Ernesto Lopes que referia uma luta corpo a corpo entre Casimiro Monteiro e Delgado (ver pergunta 10. Como foram mortos Humberto Delgado e Arajaryr de Campos?).

O acórdão de 27 de julho de 1981 acabou assim por condenar apenas o réu (ausente) Casimiro Monteiro já que ele “e apenas ele, matou a tiro o general Humberto Delgado e Arajaryr Campos, disparando sobre eles e causando-lhes lesões, que foram causa necessária das suas mortes. Ao disparar, o réu Monteiro agiu com intenção de matar as vítimas”.

Os réus Barbieri Cardoso e Rosa Casaco foram condenados por crimes de falsificação e Ernesto Lopes Ramos e Agostinho Tienza pelo crime de uso de identidade falsa. Silva Pais tinha falecido entretanto e Pereira de Carvalho foi absolvido de todos os crimes. Quanto aos homicídios propriamente ditos afirmava-se o seguinte: “Em relação a este crime não se provou que qualquer dos restantes réus nele tivesse tido intervenção, quer ordenando ou facilitando a sua execução, quer tomando parte nesta”.

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Como foram mortos Humberto Delgado e Arajaryr Campos?

Para responder a esta pergunta podemos partir dos depoimento das principais testemunhas deste crime (porque, independentemente do modo e das causas, não restam dúvidas de que de um crime se tratou). Ora as principais testemunhas são neste caso os próprios membros da brigada da polícia política portuguesa que se deslocou a Badajoz, mais exatamente dos depoimentos de três agentes: Rosa Casaco, que chefiava a brigada, Agostinho Tienza e Ernesto Lopes Ramos. Do quarto elemento, Casimiro Monteiro, considerado o autor material de um ou mesmo dos dois homicídios, quase não existem declarações.

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Rosa Casaco, o chefe da brigada que foi atrás de Humberto Delgado

O local do crime é a base de um pequeno cerro, junto a uma estrada que levava à herdade Los Almerines e próximo da ponte sobre a ribeira de Olivença. Casaco, Tienza e Monteiro aguardaram aqui a chegada de Lopes Ramos, que tinha ido encontrar-se com Delgado em Badajoz (sob a falsa identidade de um oposicionista) para depois o transportar no seu automóvel até este local. Arajaryr teve de ser incluída neste encontro, facto com que ninguém contava.

As declarações de Casaco e Tienza são no essencial semelhantes: Humberto Delgado, que se encontraria desarmado, foi morto a tiro por Monteiro que, segundo Casaco (mas é o único que o afirma), empunhava uma pistola com silenciador. Este inspetor acrescenta que Tienza abateu Arajaryr Campos também com arma de fogo, mas o próprio Tienza afirma que não sabe como morreu a secretária. Sublinhe-se que esta versão é particularmente desculpabilizante para Casaco, pois se perante um assassinato a tiro é difícil reagir a tempo outra coisa é ter-se limitado a assistir imóvel ao homicídio por agressão do general a que ainda por cima se seguiu o estrangulamento da sua secretária.

casimiro monteiro

Casimiro Monteiro, o homem que matou Delgado

Ernesto Lopes Ramos apresenta uma versão radicalmente diferente. Segundo ele o general empunhou logo de início um revólver, ficando com o braço virado para o ar, braço esse que foi agarrado por Monteiro. Enquanto assim estavam Ramos ouviu dois tiros, tendo ficado convencido que foram disparados pelo revólver do general, após o que abandonou o local, em direção a Olivença, conseguindo ainda avistar Arajaryr que gritando se agarrava a Monteiro. Tanto Agostinho Tienza como Lopes Ramos afirmam que a reação de Delgado se deveu a ter descoberto a armadilha.

Cruzemos agora estes testemunhos com as provas materiais deixadas no local e com os resultados da autópsia.

Em Los Almerines são encontrados, primeiro por testemunhas locais e depois pela polícia espanhola, três balas por disparar e cinco cartuchos usados, correspondendo a oito projéteis. Nos corpos de Delgado e Arajaryr não são contudo encontradas balas. As perícias realizadas em Espanha apontam para morte causada por uma pancada na nuca (“contusão cerebral e fratura da base do crânio”), no caso do general, e sugerem ter sido a morte da secretária causada por estrangulamento.

A conclusão do acórdão do Tribunal Militar que julgou os agentes da PIDE difere da “tese oficial” da oposição no que se refere à intencionalidade: para o Tribunal tudo partiu de gesto imprevisto de um homem impulsivo, Casimiro Monteiro, e na versão mais frequente tratou-se de execução planeada. Mas ambas dão como verdade adquirida que as vítimas foram mortas a tiro. Torna-se no entanto difícil explicar a articulação entre estes tiros e as diversas marcas de contusões. Delgado e Arajaryr teriam sido espancados depois de mortos a tiro, num ritual macabro difícil de compreender dada a urgência que a brigada tinha de sair daquele local?

Frederico Delgado Rosa, neto e biógrafo do general, tem outra explicação que se baseia por um lado no testemunho de Ernesto Ramos Lopes (semelhante aliás ao que Rosa Casaco apresentou a Silva Pais logo em 1965, na sede da PIDE) e por outro nas perícias médico-legais feitas em Espanha: Casimiro Monteiro terá agredido repetidamente o general ao tentar desarmá-lo, o que explica as contusões menos graves, matando-o depois com um golpe fatal na nuca. De forma equivalente, por estrangulamento, foi morta Arajaryr Campos provavelmente também por Casimiro Monteiro.

As balas e cartuchos encontrados seriam portanto provenientes do revólver do general e não das pistolas dos agentes que, como se torna evidente, não estavam interessados em usá-las, causando alarme nas redondezas. Delgado sim, e por isso disparou, procurando socorro.

Restava agora à brigada da PIDE desembaraçar-se dos corpos. Vão encontrar um local mais a sul, próximo de Vila Nueva del Fresno e a 2 km do posto fronteiriço, conhecido por Los Malos Pasos, onde aproveitam duas fossas naturais abertas no terreno, depositando aí os cadáveres. O de Delgado foi coberto com cal viva para acelerar a decomposição e envolto numa manta. Os dois cadáveres são por fim tapados com paus e pedras. Entretanto o grupo de agentes é avistado por testemunhas locais e procura disfarçar os seus propósitos.

Os agentes da PIDE dormiram nessa noite em Espanha e regressaram depois a Portugal por Rosal de la Frontera, mais a sul. Ao longo dos dias e meses seguintes a PIDE vai procurando apagar vestígios: avisa António Gonçalves Semedo, funcionário da fronteira de São Leonardo, por cujo posto tinha passado para Espanha a brigada da PIDE, para não revelar a verdadeira identidade dos agentes. São destruídos os documentos que o general levava consigo. Os documentos que estavam no quarto de hotel terão sido levados provavelmente pelos membros de um misterioso grupo também alojado no hotel. (Ver pergunta 13. O que foi respondido atrás esgota todas as dúvidas?) e por fim as próprias viaturas. Mas para trás tinham ficado provas materiais, entre as quais o anel com as iniciais HD que o cadáver de Humberto Delgado conservava no dedo e os registos do posto fronteiriço espanhol, através das quais a polícia espanhola estabeleceria facilmente a ligação entre os corpos encontrados em Los Malos Pasos e a sua congénere portuguesa.

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Barbieri Cardoso, subdiretor da PIDE

Agostinho Tienza

Agostinho Tienza, membro da brigada que foi atrás de Delgado

António Gonçalves Semedo

António Gonçalves Semedo, funcionário da fronteira por onde passaram os agentes da PIDE

Ernesto Lopes Ramos

Ernesto Lopes Ramos, outro dos elementos da brigada que foi a Espanha atrás de Delgado

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Pereira Carvalho

 

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Terá Humberto Delgado sido vítima de um rapto que correu mal ou a PIDE tinha ordem para matar?

A versão mais difundida ao longo dos últimos 50 anos entre os oposicionistas ao Estado Novo defende que a PIDE partiu de Portugal com ordens precisas com vista à eliminação física de Delgado. Há no entanto diversos aspetos que parecem contrariar esta tese.

Comecemos pelos argumentos habitualmente adiantados para a sustentar:

  • A brigada da PIDE levava cal (são encontrados vestígios dela nos cadáveres) e ácido sulfúrico, destinados a tornar irreconhecíveis os cadáveres (do ácido a autópsia não deteta vestígios).
  • A inclusão na brigada de Casimiro Monteiro, havendo vários agentes mais antigos e experientes (Monteiro tinha entrado para a PIDE havia dois meses), só se justifica pelo seu longo historial de violência e assassinatos (que começa muito antes da sua entrada na PIDE) e pela perícia no manejo de armas.
  • A pistola de Monteiro estaria munida de silenciador (contudo só Rosa Casaco o afirma, além de que esse facto parece ser desmentido pelo testemunho de um tratorista que trabalhava ali perto e que afirma ter ouvido um disparo).
  • A PIDE devia sentir-se humilhada com a entrada de Humberto Delgado, disfarçado, em Portugal, aquando do golpe de Beja, sem que ela o tivesse detetado. Foi a partir deste golpe que, segundo afirmações de Rosa Casaco prestadas em Madrid, em 6 de junho de 1974, “surgiu na mente do então inspetor superior da PIDE, Agostinho Barbieri Cardoso, a ideia de neutralização do General Humberto Delgado” (veremos a seguir como Rosa Casaco consegue afirmar o contrário disto noutras ocasiões, o que aliás era vulgar neste agente).

Barbieri Cardoso

  • A possibilidade de o general conseguir realizar um novo golpe era real, pelo menos na perspetiva do Governo português que, por via diplomática, recebia frequentes avisos nesse sentido.
  • Gradualmente Delgado ia assumindo posições anticolonialistas.
  • “O General Sem Medo” continuava a ser incómodo no que respeita à imagem internacional de Portugal já que atraía as atenções para o regime vigente (contudo a descoberta do seu cadáver acabou por agravar este problema).
    Atentados a figuras políticas eram frequentes no ambiente violento daquela época (o atentado planeado não era todavia vulgar no regime de Salazar).

Há no entanto diversos aspetos que parecem contrariar esta tese de homicídio premeditado.

  • O regime português nada ganhava com a sua eliminação física (ganharia todavia alguma tranquilidade na sua imagem internacional, desde que os cadáveres de Delgado e Arajaryr nunca fossem descobertos).
  • Para quê ir a Espanha matar Humberto Delgado quando teria sido mais simples executá-lo nos locais onde esteve exilado, em Argel ou em Roma? (Foram no entanto feitas tentativas no Brasil e talvez o seu falhanço tenha conduzido ao abandono desta via).
  • Porque não foi contratado alguém exterior à PIDE para executá-lo? (Também isto chegou a ser experimentado numa das tentativas de homicídio anteriores orquestrada no Brasil pela PIDE).
  • Delgado estava naquela época completamente isolado nos meios oposicionistas, razão porque não constituía qualquer perigo (já vimos contudo que não parecia ser isso que a PIDE considerava).
  • Até se tinha tornado útil ao regime, nos últimos anos, enquanto desagregador da oposição, ao contrário do que acontecera no período eleitoral e nos anos imediatos.
  • Humberto Delgado não tinha recuperado da cirurgia a que fora submetido na Checoslováquia em janeiro de 1964, como testemunhou Mário Soares em Paris no Verão do mesmo ano e como provam alguns objetos encontrados no Hotel Simancas pela polícia espanhola, pelo que provavelmente não sobreviveria muito mais tempo.

Partindo destas objeções coloca-se uma questão: se a PIDE não pretendia matar o General Sem Medo porque enviou uma brigada de agentes seus a Espanha? É aqui que surge outra hipótese, de que o objetivo era a detenção. Silva Pais defende que o objetivo seria atrair Humberto Delgado a território português fazendo passar Rosa Casaco por um coronel responsável da suposta organização militar revolucionária existente no interior de Portugal. (Note-se contudo que o papel de militar conspirador seria difícil de representar por parte de Rosa Casaco já que o general o conhecia bem.)

Nesta perspetiva, que é a que vinga na tese do acórdão do Tribunal Militar que julgou os agentes da PIDE após o 25 de abril, a operação muda radicalmente de feição quando, perante o gesto de Delgado de sacar da arma, Casimiro Monteiro reage. Morto Delgado a eliminação de Arajaryr Campos ter-se-ia tornado assim inevitável, de forma a não deixar testemunhas.

Isso explicaria então a razão por que

  • os corpos não foram enterrados imediatamente no local do crime: por se tratar de situação imprevista;
  • essa ocultação foi feita de forma precipitada em Vilanueva del Fresno, com os corpos mal cobertos, de forma descuidada e deixando vários vestígios que foram facilmente encontrados: cápsulas de balas, balas por deflagrar, pontas de cigarro e um boletim do Totobola para o dia seguinte à operação,
  • foi escolhido um local próximo da fronteira portuguesa.

Também neste caso surgem algumas objeções:

  • Casimiro Monteiro era um operacional experiente que poderia ter desarmado o General sem o matar.
  • Se a polícia política portuguesa pretendia deter Delgado porque não pediu à sua congénere espanhola que o fizesse, o que teria sido fácil em Badajoz e seria absolutamente legal já que sobre ele pendia um mandado de captura? Aliás, já no passado o poderia ter feito recorrendo a outras polícias estrangeiras.
  • Os vestígios descuidadamente abandonados no local do crime explicam-se pela necessidade de abandonar com rapidez esse local, porque surgiram testemunhas e porque os disparos podiam alertar outras.
  • A forma precipitada como foram ocultados os corpos justifica-se pela proximidade do anoitecer.
  • As consequências da detenção de Humberto Delgado seriam piores do que executá-lo ou deixá-lo em liberdade. O que significaria manter o General encarcerado ou fazer um julgamento, com toda a publicidade internacional daí decorrente e oferecendo à oposição uma renovada oportunidade de mobilização em sua volta?

Há ainda uma terceira tese que combina as duas hipóteses acima expostas: a PIDE ia preparada para duas possibilidades, rapto e assassinato. É a ideia central defendida pela acusação no Tribunal Militar. (Ver pergunta 9. E o julgamento em Portugal após o 25 de Abril?) Ou então os elementos da brigada tinham duas missões distintas.

É esta a teoria insinuada por Rosa Casaco numa entrevista ao Expresso em 20 de julho de 2006: ele, e provavelmente também Ernesto Lopes Ramos, tinham partido de Lisboa com a missão de capturar Delgado mas Casimiro Monteiro, e talvez Agostinho Tienza, teriam recebido ordens para executar o general. Ordens essas dadas certamente por Pereira de Carvalho ou Barbieri Cardoso, ou mesmo de ambos. Ou seja, Monteiro e Tienza teriam recebido instruções que não correspondiam ao plano oficial. Decorre daqui que Barbieri ou Carvalho podiam estar a trabalhar à margem dos objetivos do Governo e ao serviço de terceiros. Quais? As opções aqui são ideológicas. Para uns poderia ser o Grupo de Argel, apontado como principal interessado na morte do general. Para outros tratar-se-ia de elementos da extrema-direita internacional com os quais a PIDE sempre teve relações privilegiadas, provavelmente a Rede Gládio.

Na miríade de hipóteses que procuram explicar as razões da morte de Humberto Delgado e Arajaryr Campos há ainda quem tenha conjeturado uma derradeira teoria: isolado, sem recursos e humilhado no ambiente hostil da oposição em Argel, o general teria decidido entregar-se às autoridades portuguesas. Torna-se no entanto difícil explicar neste contexto por que razão comprou dois bilhetes de autocarro para dia 15 de fevereiro e os pedidos de informação sobre voos disponíveis a partir de Madrid para Casablanca e outras capitais africanas. Mais ainda: se assim fosse por que motivo esta possibilidade generosamente oferecida ao regime de Salazar não foi aproveitada pela sua polícia que reage brutalmente quando fica diante de Delgado?

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O que sabia e o que decidiu Salazar?

De entre as perguntas habitualmente colocadas sobre o “caso Delgado” esta surge sempre como incontornável e tida por tão ou mais importante do que saber a forma ou as causas da sua morte. A razão disso é naturalmente ideológica. Se considerarmos que o ditador teve conhecimento prévio e apoiou um assassinato premeditado do general naturalmente que daí resulta uma imagem dele não apenas antidemocrática mas também cruel e sanguinária. Pelo contrário, ao pretender-se que o presidente do Conselho ignorava na totalidade ou em parte os planos da polícia (e mais ainda se esses planos consistiam numa detenção) isso funciona como atenuante ou mesmo desculpabilização da cúpula do regime. É por isto que os juízes do Tribunal Militar que julgou os agentes da PIDE envolvidos na morte do general são frequentemente acusados de, ao acolherem a tese de morte imprevista, procurarem ilibar os mais altos responsáveis daquela polícia e, por via deles, Salazar.

A tática adotada pelo regime após o desaparecimento de Delgado baseou-se essencialmente no silêncio e na ocultação de provas. Deste modo terão sido provavelmente destruídas pela PIDE as pastas dedicadas ao general com documentos referentes aos anos de 1964 e 1965. Em consequência disto só nos podemos apoiar hoje em alguns testemunhos e nalguns (poucos) documentos. Vejamos dois exemplos:

  • Na audiência de julgamento, em Tribunal Militar, de 20 de Outubro de 1978, o ex-director da PIDE/DGS, Silva Pais, faz a seguinte depoimento: “Quando informou Salazar e Santos Júnior acerca da projetada operação contra o general Humberto Delgado, Salazar disse para terem «muito cuidado» e Santos Júnior [ministro do Interior] sorriu e disse «vamos a ver se lhe deitamos a mão»”.
  • Silva Pais terá escrito a Salazar a 6 de Dezembro de 1963: “Temos de dar, sem demora, uma «pancada» forte em elementos das «Juntas Patrióticas» e outras, que se preparavam – com a vinda quase certa do Delgado à Europa e Argélia – para provocar agitação”.

Serão estas afirmações indício de que o ditador estava absolutamente inteirado das mais sinistras intenções da sua polícia? Há quem acredite que sim e adiante ainda as seguintes razões:

  • A seguir à operação de cerco e morte de Delgado os agentes envolvidos são promovidos e louvados. Se Salazar se sentisse desautorizado não teria punido os agentes em causa?
  • Não se conhecem, na história do regime, episódios de “afirmação autónoma” por parte da PIDE, gestos de independência ou rebeldia em relação ao chefe do governo, a quem obedecia fielmente e que mantinha informado de todas as suas iniciativas.

Não falta contudo quem argumente que Oliveira Salazar não poderia ter emitido uma ordem de execução nem sequer ter tido conhecimento dela. A decisão de matar Delgado, a ter existido, foi da exclusiva responsabilidade da PIDE. Vejamos esses argumentos:

  • O perfil político, ideológico ou mesmo psicológico do presidente do Conselho era absolutamente contrário à aceitação de uma execução premeditada. Não era esse o seu ‘estilo’.
  • A reação de Salazar quando sabe da morte de Delgado revela uma sincera contrariedade, surpresa e profunda preocupação, segundo os seus colaboradores mais próximos.
  • Humberto Delgado tinha deixado de ser uma ameaça. Executá-lo revelaria falta de inteligência e de sentido prático e não era isso que caracterizava António de Oliveira Salazar.
  • Nada nas informações prestadas por Silva Pais a Salazar refere a intenção de executar Humberto Delgado, apenas prevendo a sua detenção. Nesse caso por que devia ele preocupar-se?
  • É verdade que os agentes da brigada que se encontrou com Delgado foram promovidos a seguir mas isso segundo este argumentário tem outra explicação: ao garantir-lhes o encobrimento, em vez de os julgar, o Governo de Salazar tornou-se refém deles.
  • O facto de os agentes não terem sido castigados prova também que eles se tinham habituado a que dos seus erros ou excessos não resultassem consequências de maior. Ou seja, a PIDE tinha afinal, na prática, maior autonomia do que aparentava. O presidente do Conselho demonstrava aliás quase completa indiferença perante as mortes de opositores.

Uma outra interpretação dos factos é a adotada pelo biógrafo do General Sem Medo e seu neto, Frederico Delgado Rosa. Segundo o depoimento de Silva Pais em tribunal, Salazar e o seu ministro do Interior “não aprovaram senão tacitamente o plano, ao qual não fizeram oposição”. O Diretor da PIDE defendeu perante os juízes que apenas havia um plano de captura mas podia existir de facto a intenção por parte da PIDE de eliminar Delgado sem que a palavra “morte” ou um seu sinónimo tivessem sido pronunciados no diálogo entre Silva Pais e Salazar. Isso faria parte do “caráter sibilino” do ditador.

Em suma, o tão meticuloso Presidente do Conselho teria passado um cheque em branco à PIDE, sem cuidar de saber pormenores e sem exigir clareza de propósitos.

13

O que foi respondido atrás esgota todas as dúvidas sobre a morte de Humberto Delgado?

Como é habitual num crime político que envolve diferentes países (Espanha, Itália, Argélia, Portugal), instituições (polícias, grupos políticos) e pessoas (agentes infiltrados, exilados de longa data) a lista de dúvidas torna-se infindável. Limitemo-nos por isso a duas questões.

A primeira tem origem nos testemunhos dos empregados de mesa do Hotel Simancas, em Badajoz, onde Humberto Delgado e Arajaryr Campos se hospedaram. Segundo eles, quando o par almoçava na véspera do seu assassinato entrou um numeroso grupo de pessoas, incluindo alguns homens de porte musculado, que ocupou várias mesas. Por olhares ou gestos percebia-se que entre Delgado e esses homens existia um conhecimento prévio mas só uma vez o general foi visto a falar com um deles. Na manhã seguinte partiram.

No livro de registos do hotel ficaram dois nomes, correspondendo um deles a um homem com aspeto de norte-africano, Hazan Guy Isaac, que estivera presente na reunião realizada em Paris, no Hotel Caumartin. Tratou-se da reunião onde Delgado se encontrou com Ernesto Lopes Ramos e na qual foi combinado o encontro de Badajoz e esse homem, na altura acompanhado de outro, era provavelmente guarda-costas do general. Estaria assim aquele grupo de pessoas em Badajoz para garantir a segurança do general? E porque não o fizeram efetivamente no dia seguinte, 13 de fevereiro? Teriam sido dispensados por Delgado? E porquê? Mais uma vez as teses divergem. Para uns, Delgado consideraria que o mais arriscado chegar a Badajoz – tinha sido atingido. Logo o general sentir-se-ia seguro e dispensa-os. Uma dispensa tão mais necessária caso ponderasse passar a fronteira acompanhado dos oposicionistas com quem esperava encontrar-se.

A outra questão prende-se com a falta de profissionalismo da PIDE que parece tornar-se evidente em vários pontos das respostas anteriores. Se a “Operação Outono” tinha como objetivo a detenção de Humberto Delgado então esta polícia falhou completamente a sua missão. Mas se o fim era a eliminação física, também falhou, tendo em conta os vários vestígios do crime deixados em solo espanhol.

Esta profusão de vestígios materiais tem sido explicada de duas formas. Podia ser intencional, de forma a facilitar a descoberta do crime, não se explicando contudo por que razão os agentes da PIDE o fariam. Ou então por imposição das circunstâncias: a brigada teve de abandonar rapidamente o local do crime porque o som dos tiros poderia ter sido escutado e causar alarme. Por isso teve de procurar outro lugar para deposição dos corpos. Quando o encontrou já escurecia (em meados de fevereiro os dias ainda são curtos), além de que foi avistada por habitantes locais, pelo que a ocultação foi a possível naquelas circunstâncias, ou seja, bastante precária.

Aceitemos esta explicação como válida mas ela não arreda a imagem de amadorismo que aquela brigada revelou na fronteira espanhola. A PIDE dispôs de mais de dois anos para planear esta operação, à qual atribuiu recursos fora do comum. Contudo:

  • Casimiro Monteiro utiliza um passaporte verdadeiro, de um cidadão britânico, Washdeo Kundanmal Mirpuri. Quando o seu nome é tornado público pelas autoridades espanholas logo a Scotland Yard esclarece que aquele passaporte tinha sido entregue à PIDE pelo seu proprietário aquando da sua passagem por Lisboa, nunca tendo sido devolvido. A partir desse momento um dos suspeitos da justiça espanhola (aquele nome fora registado pelos funcionários da fronteira do país vizinho) fica desde logo associado à polícia portuguesa.
  • A brigada deslocou-se a Espanha em viaturas pessoais dos próprios agentes e embora usassem matrículas falsas os números de motor e chassis eram verdadeiros e foram igualmente registados pelos funcionários do posto fronteiriço. Se houvesse um acidente, se os automóveis fossem apreendidos, tudo se complicaria.
  • No local do crime deixaram um boletim do totobola português.
  • Não retiraram o anel com as iniciais HD do dedo de Humberto Delgado.
  • Os agentes acabaram por dispor de pouco tempo para ocultar os corpos e apagar vestígios porque anoitecia, o que pressupõe mau planeamento horário da operação.
  • Há quem afirme que o local de deposição dos corpos foi “previamente escolhido” por Rosa Casaco. A ser isso verdade teria sido pessimamente escolhido. Na realidade a brigada limitou-se a tirar partido de duas fossas naturais, formadas por um regato, o que poderia permitir que o corpo nela depositado fosse desocultado pelas águas.
  • Não parecem ter levado equipamento adequado que permitisse cavar mais profundamente estas fossas, deixando os corpos quase à superfície. Se tivessem ficado mais enterrados poderia passar muito mais tempo até serem descobertos.
  • A encenação criada em São Leonardo quando o funcionário da PIDE António Semedo, de serviço nessa fronteira, foi apresentar aos seus congéneres espanhóis um dos agentes da brigada como sendo seu colega da polícia acabou por chamar mais a atenção destes.
  • A seguir à notícia do desaparecimento de Delgado, e sobretudo após a descoberta dos cadáveres, os responsáveis da PIDE parecem improvisar, resolvendo os problemas resultantes das pressões de Espanha e do alarme internacional à medida que eles surgem.

Porque demonstrou então a PIDE tanta falta de eficiência? Ao contrário dos operacionais de nações democráticas, sempre sujeitos, nas suas operações encobertas, ao confronto com a Justiça e à curiosidade jornalística dos seus países, os agentes da polícia política portuguesa não tinham de se preocupar com o rasto que deixavam pois perante a sua brutalidade e os seus descuidos, o Governo fechava os olhos e nem os jornais nem a Justiça investigavam. A dada altura, pelos anos sessenta, a PIDE procurou modernizar-se, mas homens como Casaco eram ainda da velha guarda. De um modo geral os agentes não eram mais competentes porque não necessitavam de o ser, até porque a sua recolha de informações era baseada em interrogatórios e estes na tortura. Quando um dia se lhes colocou uma situação mais sofisticada, falharam.

Independentemente do que Salazar sabia sobre esta operação é óbvio que confiou demasiado na competência da sua polícia. Esta não estava preparada nem para prender nem para assassinar um homem como Delgado.