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O que se passa em Odemira?

Odemira é atualmente o concelho do país em que os números da pandemia são mais preocupantes. No mapa da Direção-Geral da Saúde, a mancha vermelha destaca-se num país em que a situação parece praticamente controlada: neste momento, o concelho tem uma incidência média de 562 casos por 100 mil habitantes.

Porém, a situação dramática no maior concelho do país em termos de área não se distribui de modo equitativo por todo o território: na verdade, o grande problema situa-se em duas freguesias específicas (São Teotónio e Longueira/Almograve), onde a incidência dos contágios é muitíssimo elevada, ao contrário do que sucede no resto do concelho. Em São Teotónio, há 1.910 casos por 100 mil habitantes; em Longueira/Almograve a incidência é de 510 casos por 100 mil habitantes.

A cerca sanitária em 2 freguesias de Odemira, os dois concelhos que recuam e os 27 que ficam em alerta

Na última quinta-feira, quando anunciou que a maioria do país avançaria este fim‑de‑semana para a fase final do desconfinamento, o primeiro-ministro, António Costa, explicou que o concelho de Odemira seria sujeito a uma medida excecional: enquanto a generalidade das freguesias acompanhariam o ritmo do desconfinamento do resto do país, aquelas duas onde a situação está descontrolada seriam sujeitas a uma cerca sanitária, como já aconteceu em Ovar e em Rabo de Peixe, de modo a conter a evolução do contágio.

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O que está na origem do problema?

No anúncio que fez na última quinta-feira, António Costa deixou claro qual é o problema que está na origem do surto descontrolado de Covid-19 naquelas duas freguesias do concelho de Odemira: a agricultura intensiva onde trabalha um grande número de imigrantes que vivem em condições precárias.

“Entendemos, em relação a Odemira, decretar em termos imediatos a cerca sanitária às freguesias de São Teotónio e de Longueira/Almograve, procedendo também à requisição de um conjunto de instalações que estão identificadas e que são suscetíveis de imediatamente permitir o isolamento profilático das pessoas que estão consideradas positivas, das pessoas que estão em risco e também de alguma população que vive em situações de insalubridade habitacional inadmissível, com hipersobrelotação das habitações“, disse António Costa.

O primeiro-ministro assinalou que o Governo tem como grande objetivo “quebrar essa sobrelotação porque é um risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos“.

A situação não é nova e já tem sido retratada pela comunicação social ao longo dos últimos anos. O Observador descreveu numa reportagem de 2014 como o recurso a trabalhadores estrangeiros resultou do descontentamento dos produtores com as “exigências” feitas pelos trabalhadores portugueses. Nas grandes estufas do litoral alentejano, que se concentram naquelas duas grandes freguesias de Odemira, cultivam-se amoras, framboesas, mirtilos e outros frutos vermelhos. A agricultura intensiva que ali se vem praticando mudou a paisagem alentejana e, sobretudo, foi responsável por uma significativa mudança demográfica na região.

No Alentejo, na fronteira da servidão

A grande necessidade de trabalho físico no cultivo e apanha dos frutos vermelhos atraiu para o Alentejo muitos imigrantes oriundos do Nepal, Tailândia, Bangladesh ou Paquistão, mas também da Ucrânia, das Honduras ou da Bulgária, recrutados por agências que lhes prometem melhores condições de vida com trabalho agrícola em Portugal. Há mais de dois anos, uma reportagem do Diário de Notícias já dava conta das condições precárias em que muitos deles vivem: ganham o salário mínimo, mas têm de o dividir com quem os recrutou para vir para Portugal, e vivem em grandes camaratas comunitárias, com pouco espaço e sem condições mínimas de conforto ou higiene. No ano passado, o Jornal do Algarve chegava a mesmo a descrever “situações a roçar a escravatura” e falava em 30 mil trabalhadores entre Algarve e Alentejo. De acordo com a Visão, estima-se que 20% a 25% da população do concelho de Odemira sejam estrangeiros — precisamente devido ao fenómeno da agricultura.

As condições precárias em que vivem os trabalhadores estrangeiros da região foram terreno fértil para que a pandemia da Covid-19 se propagasse descontroladamente naquelas comunidades, onde praticamente ninguém tem condições para se autoisolar caso tenha um teste positivo ao coronavírus. Como descreveu este domingo o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, em visita a Odemira, a pandemia “virou os holofotes para um conjunto de vulnerabilidades, dificuldades da nossa sociedade” — incluindo para o drama dos trabalhadores precários no litoral alentejano.

Ministro da Defesa visita Odemira e reconhece que a pandemia expôs “vulnerabilidades da nossa sociedade”

Este domingo, o Governo já confirmou estar a fazer um levantamento “de todas as necessidades permanentes de habitação da população, inclusive situações de sobrelotação” — que “permitir ter conhecimento de todas as carências habitacionais e garantir habitação digna”. À agência Lusa, o Governo confirmou conhecer a existência de 299 contentores de alojamento no concelho “todos cumprem com as condições de higiene e saúde obrigatórias”.

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Que medidas tomou o Governo?

A primeira medida do Governo foi a imposição de uma cerca sanitária àquelas duas freguesias onde a propagação da pandemia entre as comunidades de imigrantes está concentrada. Em simultâneo, António Costa anunciou que seria feita a requisição de várias instalações destinadas ao alojamento e isolamento dos casos positivos. O local escolhido foi o “Zmar Eco Experience”, um conhecido eco resort situado no concelho de Odemira, na freguesia de Longueira/Almograve, uma das duas sujeitas à cerca sanitária.

No despacho em que estabelece as condições em que é aplicada a situação de calamidade no município de Odemira, o Governo explica que tentou negociar com os proprietários do Zmar a utilização do espaço para acolher os imigrantes, mas não foi possível.

“A situação epidemiológica, particularmente grave no município de Odemira, bem como a falta de acordo com a sociedade comercial supra indicada, fundamenta que, por razões de interesse público e nacional, com caráter de urgência se reconheça a necessidade de requisitar temporariamente o ‘ZMar Eco Experience’ e os respetivos serviços, na medida do adequado e estritamente indispensável para a proteção da saúde pública na contenção e mitigação da pandemia no município de Odemira”, lê-se no documento do Governo.

“A declaração de requisição abrange a prestação de serviços necessários ao funcionamento do empreendimento em condições de higiene e segurança”, acrescenta o Governo, salientando que a requisição se mantém válida enquanto a situação de calamidade “for aplicável ao concelho de Odemira”. A gestão do empreendimento passou para as mãos da autarquia.

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Porque é que está a ser polémico?

A requisição do Zmar não foi aceite imediatamente pelos proprietários do empreendimento turístico — como, aliás, é possível deduzir pelo texto do despacho do Governo, que sublinha a falta de acordo com a empresa.

No centro da polémica, uma discórdia: enquanto o Governo considera que o Zmar é uma unidade hoteleira, os proprietários assinalam que ali existem várias casas particulares, permanentes ou de férias. O advogado Nuno Silva Vieira, que representa 114 dos 160 proprietários, garantiu que “ninguém vai sair das suas casas”.

O Zmar “não é apenas um parque de campismo, mas sim um espaço onde existem várias habitações particulares“, disse o advogado aos jornalistas durante uma pequena manifestação de cerca de 20 proprietários, esta sexta-feira.

Odemira. Sem acordo, Governo avança com requisição civil do Zmar, mas proprietários dizem que “ninguém vai sair das suas casas”

“Há 260 casas, 160 de particulares, e esta requisição civil é para todo o empreendimento, por isso, espero que esta decisão venha a ser alterada pelo Governo”, acrescentou Nuno Silva Vieira, contestando a decisão do executivo.

O dono do resort, o empresário Pedro Pidwell, alerta ainda para os constrangimentos financeiros que a decisão tem para a própria empresa, que está fechada há meses e se encontra em grandes dificuldades económicas.

“A requisição civil para os fins a que se propõe coloca em causa a época alta e a faturação que seria essencial para que a empresa pudesse prosseguir a sua recuperação”, disse Pidwell à Lusa. “Isto aponta para a liquidação da empresa e para a extinção de mais de 100 postos de trabalho“, sublinhou, acrescentando ainda: “Passar férias num sítio que foi um ‘covidário’ não é a solução mais apelativa.”

Quem também se pronunciou contra a requisição do empreendimento foi a artista Anna Westerlund, viúva do ator Pedro Lima, que é proprietária de uma das casas do Zmar. “Temos uma casa no Zmar Eco Experience, e o governo decidiu que a temos de disponibilizar para receber doentes Covid de Odemira, a maior parte deles trabalhadores nas estufas locais”, escreveu nas redes sociais.

Zmar. Artista Anna Westerlund, viúva de Pedro Lima, revoltada com requisição civil

“Pergunto eu, há quanto tempo é que eles não vivem em cima uns dos outros enfiados em casas sabe-se lá em que condições. Não é desde o tempo do covid!!! E agora não são os empresários que os contratam que são responsáveis por eles? Não é o governo que fecha os olhos à quantidade deles que devem estar ilegais que cuida deles? Sou eu que sou obrigada a ceder a minha casa para os receber“, acrescentou.

Para já, não é certo que os proprietários tenham de ceder as suas habitações particulares. De acordo com o administrador, a informação que lhe chegou até agora é a de que só será usada “uma parte afeta e da propriedade do próprio Zmar“, mas que fica afastada da zona onde estão as habitações particulares.

Entretanto, o advogado Nuno Silva Vieira já se reuniu com o autarca de Odemira e disse ao Jornal de Notícias que “se durante a próxima semana o Governo mantiver a postura de não dialogar” os proprietários vão recorrer aos tribunais “para travar a requisição”.

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Que argumentos estão a ser trocados no debate público sobre o caso?

O caso das duas freguesias de Odemira deu rapidamente lugar a um debate mais alargado sobre o problema que está na base.

O presidente da junta de freguesia de São Teotónio, Dário Guerreiro, acusou o Governo de já conhecer a situação da sobrelotação de habitações “há muito tempo” e de empurrar “com a barriga” a resolução do problema dos migrantes.

Odemira. Autarca de São Teotónio reconhece o problema de sobrelotação de casas, mas aponta falta de respostas do Governo

Por seu turno, a presidente da junta de freguesia de Longueira/Almograve, Glória Pacheco, lamentou os “prejuízos” da cerca sanitária numa “zona turística” que, com o desconfinamento, se preparava para retomar a atividade.

Covid-19. Autarca de Odemira alerta para prejuízos devido à cerca sanitária

O caso teve eco também no debate político nacional. O PSD foi um dos primeiros a comentar a situação em Odemira, considerando “da maior gravidade” as declarações de Costa sobre o caso, uma vez que no entender do PSD a situação dos migrantes na região foi “perpetuada pelo Governo” através de uma moratória que permitiu a manutenção dos contentores onde muitos vivem.

O Chega também aproveitou o caso para reagir e classificou como “inqualificável” a requisição civil do Zmar, decidida “unilateralmente pelo Governo”. Para o partido de extrema-direita, trata-se de uma situação “inconcebível numa democracia moderna” que faz lembrar os “tempos do PREC“. “Há muito tempo que o Governo tinha conhecimento da perigosa — em todos os sentidos — situação de imigração e sobrelotação habitacional no concelho de Odemira, sendo o Governo o único responsável pelo sucedido”, acrescentou o partido de André Ventura.

O Presidente da República também já falou publicamente sobre o caso. Na ilha da Madeira, que está a visitar este fim‑de‑semana, Marcelo Rebelo de Sousa destacou que há dois problemas em causa. “Há problemas em termos de direitos das pessoas e de trabalhadores naquele caso? Um problema. Outro problema, sanitário: impõe-se ou não proceder a um isolamento de um número apreciável de trabalhadores, com cadeias de transmissão contínuas, ininterruptas, e que importava quebrar, para o bem da comunidade?”

Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou que espera “que seja possível apurar” se há problemas de violação dos direitos humanos.

Este domingo em Odemira, o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, pronunciou-se no mesmo sentido do Presidente da República: “Temos de distinguir entre aquilo que são respostas muito imediatas relacionadas com a pandemia, e há várias, a questão de requisição de habitação para poder fazer o isolamento profilático, e portanto dessa forma impedir ou desacelerar a propagação do vírus, daquilo que são as respostas de médio prazo, e essas respostas competem às áreas da Economia, da Agricultura e do Ambiente. Há um trabalho em curso no seio do Governo para responder a esse problema.”

Ouvida pela agência Lusa, a especialista em migrações Inês Cabral, cuja tese incide precisamente sobre o impacto da imigração no concelho de Odemira, explicou que a solução para o problema tem de passar pela condenação da “rede mafiosa” que explora os trabalhadores. “Um dos grandes problemas é que entre o trabalhador e a empresa, entre a multinacional, existem vários intermediários, ou seja, existem agências de recrutamento, existem agências de prestação de serviço, que fazem com que as multinacionais explorem indiretamente os trabalhadores, mas que nunca fiquem com sangue nas mãos.

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Que implicações jurídicas estão em causa?

Apesar de o principal problema na base da controvérsia em Odemira ser a exploração e as violações dos direitos humanos dos imigrantes na agricultura, o surto naquelas freguesias alentejanas ganhou polémica devido à requisição do resort Zmar, cujos proprietários consideram ver os seus direitos humanos violados.

O mesmo considerou o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, que decidiu pedir a intervenção da Comissão de Direitos Humanos da Ordem.

“A requisição, ainda que temporária, de casas de habitação, obrigando à sua desocupação pelos proprietários para permitir a sua ocupação por terceiros”, pode vir a “constituir uma lesão de direitos humanos”, diz a Ordem. “A partir do momento em que é levantado o estado de emergência, e por isso deixaram de estar suspensos os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, e os donos das casas no Zmar “têm os mesmos direitos a ser protegidos contra intervenções arbitrárias do Estado na sua propriedade e no seu domicílio familiar“.