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Porque fechou a urgência pediátrica do hospital Garcia de Orta?

A razão é simples. “Não existem pediatras suficientes para assegurar de forma regular o serviço de urgência”, afirma o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, ao Observador.

Por “forma regular” entenda-se ter médicos que fazem “as horas de urgência que devem e não cinco vezes mais do que é suposto” e cumprindo “as equipas tipo”, de forma a “salvaguardar a segurança clínica dos doentes”, diz Miguel Guimarães.

“Para que as pessoas sejam atendidas de forma adequada, num tempo aceitável e que sejam bem vistas, com o máximo de qualidade, é necessário ter um número adequado de médicos, com disponibilidade mental para acompanhar os doentes de forma manter o que é fundamental numa relação entre quem precisa de ajuda e quem vai ajudar”, acrescenta.

Um dos problemas da urgência pediátrica do Garcia de Orta, em Almada (distrito de Setúbal), é precisamente essa equipa tipo. “Uma equipa deveria ser composta por quatro médicos, entre internos e especialistas — podem ser três ou dois especialistas e o resto internos da especialidade — e muitas vezes estavam apenas dois médicos”, adianta o bastonário, acrescentando que a urgência pediátrica fechou porque estava apenas um médico na escala. “Um médico não consegue fazer nada.”

“As equipas da urgência são obrigatoriamente constituídas por três especialistas. Passaram para dois especialistas e um interno e [os médicos] têm aceitado que seja um especialista, um interno e um médico de Medicina Geral e Familiar a bem do serviço, particularmente à noite”, afirma Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) ao Observador.

O bastonário da Ordem dos Médicos sublinha ainda “o peso” da urgência do hospital Garcia de Orta, que tem uma “população geral de referência superior a 300 mil habitantes”, que dá apoio às populações do Barreiro, Montijo e até Setúbal e cuja urgência pediátrica recebe em média 150 mil crianças por dia — “um volume elevado”, reforça.

“A [equipa de] pediatria precisa de um reforço”, defende Miguel Guimarães.

De acordo com Luís Amaro, presidente do Conselho de Administração do Garcia de Orta, o hospital perdeu 13 médicos desde 2017.

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Há quanto tempo há problemas na urgência pediátrica?

Os sinais de alerta começaram a surgir no final de 2018, adianta o bastonário da Ordem dos Médicos. A própria Ordem alertou para o risco de a urgência pediátrica do Garcia de Orta encerrar à noite no início do ano, mais concretamente em fevereiro.

Durante a visita que Miguel Guimarães efetuou ao hospital, em fevereiro de 2019, o bastonário alertou para a falta de profissionais, uma situação que “compromete a qualidade e segurança” do serviço prestado aos doentes.

Já Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, fala num desinvestimento nos médicos que dura há cinco anos, apontando responsabilidades ao anterior Conselho de Administração do hospital. “Não houve investimento no sentido de fixar os médicos: uns reformaram-se, mas outros saíram antes da reforma e não se abriram vagas para colmatar estas diferenças. É um problema que se tem vindo a acumular.”

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Em que condições trabalham os pediatras no Garcia de Orta?

Poucos recursos humanos, baixos ordenados, muitas urgências e excesso de horas extraordinárias. É com este cenário que os pediatras do hospital Garcia de Orta se deparam diariamente.

Numa carta enviada ao bastonário dos Médicos no início deste mês, citada pela Lusa, os pediatras do hospital explicavam que há “nove assistentes hospitalares que fazem urgência externa no serviço de pediatria, dos quais um se encontra em licença de maternidade, dois têm mais de 50 anos (estando isentos de trabalho noturno) e dois com mais de 55 anos que aceitam manter atividade regular na urgência”. Ou seja, “destes nove apenas quatro podem assegurar a urgência no período noturno“.

“As equipas da urgência estavam a um terço das necessidades”, reforça o sindicalista Jorge Roque da Cunha.

Esta situação acaba por se tornar um “ciclo vicioso”, acrescenta o bastonário, considerando que a situação deste hospital é “grave”. “Saíram 13 médicos entre especialistas mais novos e outros que se reformaram. Se isto dura há vários meses e não se resolve, acha que alguém vai para um hospital em que não há condições, quando pode ir para outro sítio?”

Tem havido uma incapacidade de contratar médicos para o Garcia de Orta. A pressão neste serviço é de tal maneira que ninguém vai para lá, vão para o privado. Ninguém quer trabalhar nestas condições”, acrescenta o secretário-geral do SIM.

Aliás, o mais recente concurso para contratação de pediatras para o Garcia de Orta demonstra precisamente isso: das quatro vagas que foram disponibilizadas, nenhuma foi ocupada. “O trabalho de um médico não é fazer só urgências”, diz Miguel Guimarães. “Há médicos a fazer 24 horas de urgência em vez de 12 porque não há mais ninguém [para fazer a urgência], colocando em risco a sua saúde e a do doente. Os médicos não têm de fazer mais do que 150 horas extraordinárias por ano e muitos chegam a fazer milhares, porque senão as coisas não se fazem.”

Em declarações à Lusa esta sexta-feira, João Proença, presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, adiantou que estes médicos estão “exaustos” e estão “a fazer bancos de 24 horas quatro vezes por semana”.

“[Estes médicos] fazem urgência atrás de urgência para manter a casa aberta”, acrescenta o bastonário. “Se [esta urgência] fechou, foi por impossibilidade total. Os próprios internos começam a colocar em causa a formação que estão lá a fazer.”

Além do limite das horas extraordinárias largamente ultrapassado pelos médicos, o secretário-geral do SIM refere que há médicos com 55 anos a fazer urgência e médicos com mais de 50 anos a fazer urgência noturna, quando já não são obrigados a isso, como refere o comunicado dos pediatras do Garcia de Orta. “A pressão é muito grande e o facto de se ter fechado a urgência só demonstra responsabilidade e alguma coragem por parte do atual Conselho de Administração. Não havendo condições, fecha-se.”

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É possível que esta urgência pediátrica volte a fechar?

Jorge Roque da Cunha não tem dúvidas: “Vai acontecer. Com toda a certeza que, nas próximas semanas, isto se vai repetir”, defende o secretário-geral do SIM, acrescentando que esta situação só não aconteceu mais cedo “porque, à última hora, foram buscar um colega ao hospital de Santa Maria e ao hospital Dona Estefânia”.

“Foram lá duas ou três vezes e assustaram-se, aquilo não é vida. As condições de trabalho são más, o volume de trabalho é grande e o número de colegas especialistas não é suficiente, portanto não vão para lá, nem mesmo os prestadores de serviços. É altamente desmotivante.”

Para o bastonário da Ordem dos Médicos, é possível que esta urgência pediátrica volte a encerrar, mas sublinha que os pediatras deste hospital estão “muito empenhados em arranjar uma solução”.

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Que consequências pode ter este encerramento para os doentes?

A SIC avançou que, devido ao encerramento da urgência pediátrica do Garcia de Orta, na noite de segunda para terça-feira, quatro crianças foram encaminhadas para outros hospitais.

Miguel Guimarães não acredita que o encerramento ponha em risco a vida dos doentes. Ainda assim, sublinha o transtorno que isso pode causar, não só às famílias como aos hospitais que recebem os doentes que inicialmente iriam para o Garcia de Orta. Recorde-se que, nas noites em que a urgência pediátrica esteve encerrada, as crianças tiveram que ser atendidas nos hospitais de Santa Maria e Dona Estefânia, em Lisboa.

“Obviamente que é sempre desagradável que a população de referência [do Garcia de Orta] tenha de ir para o Santa Maria e para a Estefânia, mas há serviços perto que podem assegurar o atendimento a estas crianças. Agora, estas famílias e o município de Almada querem ter o seu hospital e têm razão. Até porque os hospitais de Santa Maria e Dona Estefânia estão sobrecarregados, porque eles próprios têm as suas carências.”

Já o secretário-geral do SIM considera que a população da margem sul está a ser “prejudicada” porque, “apesar de pagarem os seus impostos, não têm especialistas em pediatria, tal como lhes faltam médicos de Medicina Geral e Familiar”.

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O que está a ser feito para evitar um novo encerramento?

O presidente do Conselho de Administração do hospital Garcia de Orta, em declarações aos jornalistas esta terça-feira, adiantou que o serviço de urgência pediátrica está assegurado até sexta-feira. O problema será o fim de semana. “Por consenso com o serviço ficou assegurado que as escalas de segunda a sexta-feira vão ser asseguradas pelo próprio serviço. Estamos a trabalhar e em conversações com a União das Misericórdias para encontrar soluções para o fim de semana“, referiu Luís Amaro.

De acordo com Miguel Guimarães, a administração do hospital Garcia de Orta, a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo e os pediatras estão “a tentar arranjar uma solução temporária” para resolver esta situação de crise. No entanto, a “solução definitiva” passa pela contratação de médicos.

O presidente do Conselho de Administração adiantou ainda que estão a decorrer negociações com o Ministério da Saúde e com a ARS precisamente para a contratação de novos médicos.

Apesar de não ter adiantado quantos médicos são necessários para o bom funcionamento do serviço nem quantos especialistas serão contratados, o bastonário adiantou que os pediatras daquele hospital dizem que “precisariam de perto de nove especialistas para poderem assegurar, de forma normal e tranquila, os serviços que têm de assegurar, incluindo as urgências”.

Miguel Guimarães diz ainda que irá criar uma “declaração de responsabilidade”, para os médicos assinarem quando sentirem que não têm as condições necessárias para assegurar o serviço.

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Como é que o SNS pode ter mais médicos?

A solução para esta situação do Garcia de Orta, segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, passa por uma intervenção da tutela, até porque a contratação de novos especialistas tem obrigatoriamente de passar pelo Governo. “Não vi o Ministério da Saúde nem a ARS empenhados em resolver [esta situação]”.

“Como é possível contratar mais gente se não há dinheiro? Se o Ministério das Finanças cativa as verbas na área da saúde? Os médicos estão fartos disto. As pessoas já perceberam que isto bateu no fundo e não vemos ninguém, de facto, na política, incluindo na Assembleia da República, a pegar nisto a sério”, afirma o bastonário da Ordem dos Médicos.

Miguel Guimarães defende a importância de os hospitais terem mais autonomia para facilitar a gestão hospitalar e poderem contratar pediatras, nomeadamente o Garcia de Orta. “Se amanhã o hospital quiser contratar pediatras, tem de passar pela ARS e pela dupla tutela da Saúde e das Finanças. Não há autonomia e flexibilidade na gestão dos hospitais.”

Mas é também preciso que os médicos queiram trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esta falta de condições de trabalho dos pediatras no hospital Garcia de Orta, que acaba por ser transversal a vários serviços dos hospitais do SNS, leva a que muitos médicos decidam não trabalhar nos hospitais públicos, optando por exercer apenas no setor privado ou saírem do país.

“É uma situação grave e os médicos estão a abandonar [o SNS] porque não têm condições de trabalho e não são respeitados pela tutela”, defende Miguel Guimarães. “Qual é a nossa capacidade de concorrência quando a valorização da saúde das pessoas em Portugal é menos de metade da média da União Europeia? Quando as remunerações são duas, três ou até quatro vezes superiores na UE relativamente a Portugal?”

“Se a tutela não valoriza, nem tem nenhum gesto de empatia para com as pessoas que trabalham para ela, está a mandá-los embora”, acrescenta o bastonário.

Jorge Roque da Cunha também aponta culpas ao Governo e considera que é necessário haver um investimento nos médicos, de forma a travar a sua saída do SNS. “Há mais de cinco anos que se tem assistido, em geral mas também na pediatria, a um desinvestimento dos médicos e à sua saída progressiva do SNS”, afirma o sindicalista, acrescentando que espera que o primeiro-ministro tenha em conta as preocupações do Presidente da República relativamente ao orçamento da saúde.

Miguel Guimarães recorda o editorial da revista médica The Lancet sobre o SNS português, onde se lê que tem havido uma saída dos “trabalhadores do SNS” para o privado e para o estrangeiro devido “às más condições de trabalho”. “O Governo reeleito deve aproveitar esta nova oportunidade para priorizar a saúde e tornar a assistência médica acessível a todos”, considera a publicação.

E o problema também está nos salários: “Tem de se fazer um trabalho de sedução [para os médicos ficarem no SNS] que não passa só por medidas administrativas. Tem de se alterar objetivamente os salários dos médicos.” adianta o secretário-geral do SIM. “Na Caixa Geral de Depósitos houve aquela questão com os salários dos dirigentes por causa [da competitividade] do privado. Para a banca existe essa possibilidade, mas para a saúde dos portugueses não?”

Mario Amorim Lopes, docente universitário e especialista em Economia da Saúde, faz outra ressalva: pediatria é uma das especialidades em que é mais fácil o médico ter um consultório. “É muito frequente os pediatras terem as suas próprias clínicas e acabam por não ter interesse em ir para um hospital onde trabalham muito mais e em condições muito mais stressantes.”

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Há poucos pediatras em Portugal?

Em declarações feitas esta terça-feira, o presidente do Conselho de Administração do Garcia de Orta disse que a falta de pediatras é um problema “estrutural” e comum aos restantes hospitais. “Não há pediatras em Portugal”, acrescentou.

De acordo com o Relatório Social do Ministério da Saúde e do Sistema Nacional de Saúde, pediatria é umas especialidades cujo número de vagas de entrada na especialidade tem vindo a aumentar “de forma significativa”. De 2010 para 2018 passaram de 70 para 93 vagas.

Em 2018, segundo o Balanço Social da ACSS, havia 1099 pediatras no SNS, mais 18 do que no ano anterior. O Relatório Social refere mesmo que pediatria é uma das especialidades hospitalares com maior expressão numérica de profissionais. Segundo estimativas da Ordem dos Médicos, existirão cerca de 512 pediatras inscritos e que estão fora do SNS.

Além de ser uma das especialidades, juntamente com Anestesiologia, Cirurgia Geral, Medicina Interna e Medicina Geral e Familiar, com maior volume de horas de trabalho suplementar, refere o Relatório Social. Em 2018, os pediatras fizeram mais de 389 mil horas suplementares, mais 17 mil horas do que em 2017. Uma média de 489 horas por ano de trabalho suplementar.

Jorge Roque da Cunha considera que “poderia haver mais pediatras, caso a ACSS [Administração Central do Sistema de Saúde] criasse condições para haver mais internos”.

O secretário-geral do SIM explica que, para formar um médico, são necessários 12 a 13 anos: seis anos de curso, um de ano comum e mais cinco ou seis de especialidade — no caso de pediatria, são cinco anos.

“O grande problema foi nunca se ter feito um trabalho aprofundado em termos de recursos humanos”, diz Jorge Roque da Cunha. “É uma questão de fazer contas: nos próximos quatro anos vão reformar-se 1500 médicos hospitalares e 1400 médicos de família e há 10 anos que já se sabia que isso ia acontecer. Estamos no pior dos mundos: há um grande número de reformas e há a repercussão de, há 37 anos, o governo ter tido uma política altamente restritiva de médicos, com a criação dos numerus clausus nas faculdades de medicina — chegou a haver cursos de 250 médicos nas cinco universidades.”

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Há outras urgências em risco de fechar?

O secretário-geral do SIM não descarta a hipótese de esta situação se repetir noutras urgências hospitalares, até porque há muitos hospitais a trabalharem “em situações de contingência” e abaixo dos mínimos por “ausência de decisão por parte dos Ministérios da Saúde e das Finanças”. As equipas de anestesia do Garcia de Orta e do Amadora-Sintra, a Maternidade Alfredo da Costa, a maternidade do Hospital de Portimão — que este verão esteve encerrada por falta de pediatras — e o serviço de “obstetrícia do hospital São Francisco Xavier” são apenas alguns dos exemplos referidos por Jorge Roque da Cunha.

“Só não irá acontecer porque há irresponsabilidade por parte de muitos diretores clínicos e diretores de hospitais que estão a trabalhar abaixo dos mínimos”, acrescenta.

O bastonário da Ordem já adiantou que vai escrever uma carta que irá enviar aos diretores clínicos dos hospitais de todo o país precisamente a falar desta questão das equipas tipo, uma vez que a Ordem detetou “várias deficiências”. “Estão a funcionar com um número abaixo [de médicos] do que deviam funcionar.”

E, uma vez que os médicos já são responsabilizados quando algo corre mal, Miguel Guimarães é da opinião de que “as pessoas que tomam as decisões políticas e que assumem a direção de grandes hospitais também têm de ser responsabilizadas”.