Numa altura em que Portugal continental tem registado temperaturas acima dos 40 graus em várias regiões do território, surgem alegações de que esta não é a primeira vez que o país atravessa uma onda de calor semelhante.

Circula nas redes sociais uma imagem, com um recorte de uma página do Diário de Notícias, datada de 1 de agosto de 1944. “A vaga de calor de ontem. 39,2º à sombra em Lisboa. 45,8º em Coimbra”, pode ler-se no título da notícia. Esta imagem está a ser partilhada por vários utilizadores do Facebook para “comprovar” que as altas temperaturas que se têm verificado não são um fenómeno inédito — e não são, mas não no período aqui em análise e referido na publicação nas redes sociais.

Mais. Há utilizadores que sugerem que a atual onda de calor não é fruto das alterações climáticas ou do aquecimento global, porque já teriam lugar há décadas. No caso da publicação em análise, pode ler-se na descrição: “(…) não é caso único. Há 74 anos, as ondas de calor atingiram níveis semelhantes, conforme nos indica a imagem (…).

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Primeiro que tudo, é preciso confirmar que a página retirada do Diário de Notícias é verídica. O próprio jornal publicou recentemente essa mesma página na conta oficial de Facebook a recordar a notícia de agosto de 1944, que dava também conta: “O mês de julho que tanto nos fez suar teve o que pode chamar-se uma despedida calorosa. Segundo as informações do país, o dia de ontem chegou a atingir calor de fornalha”.

Importa, contudo, destacar que a notícia não faz qualquer referência direta a uma onda de calor, como sugerem várias publicações nas redes sociais. Dá, sim, apenas conta de um dia de calor em que se registaram temperaturas altas — o 31 de julho de 1944. “Caíram pássaros mortos das árvores — nos campos, trabalhadores tiveram de abandonar a sua faina — grandes prejuízos nos vinhedos, meloais e olivais”, pode ler-se também na entrada da notícia.

Conforme pode ser consultado no site oficial do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), para ser classificado como onda de calor, o fenómeno de temperaturas altas deve durar pelo menos seis dias consecutivos.

Sendo a definição do índice de duração da onda de calor, segundo a Organização Meteorológica Mundial, considera-se que ocorre uma onda de calor quando num intervalo de pelo menos 6 dias consecutivos, a temperatura máxima diária é superior em 5ºC ao valor médio diário no período de referência, refere o site do IPMA

Olhando à luz desta definição, não é correto classificar o período que comporta o dia 31 de julho de 1944 como um período em que o país atravessou uma onda de calor, porque as temperaturas altas não foram uma constante — foram registadas temperaturas mais altas apenas num só dia, algo que acabou por ser noticiado na edição do Diário de Notícias do dia seguinte.

Em respostas escritas enviadas ao Observador, o IPMA confirma que o dia 31 de julho de 1944 “foi um dia extremamente quente em quase todo o território”, mas desmente que tenha ocorrido uma onda de calor, porque “os valores da temperatura máxima do ar, no dia anterior e no seguinte, variaram entre 25 e 30.ºC”.

Na prática, não é possível falar de onda de calor porque não se registaram, num intervalo de pelo menos seis dias consecutivos, temperaturas máximas diárias superiores em 5.ºC ao valor médio diário no período de referência, como refere a definição do IPMA.

De acordo os dados fornecidos pelo instituto ao Observador, têm-se verificado ondas de calor “desde a década de 1940”, contudo é “a partir da década de 90 que se verifica a maior frequência” de ondas de calor em território português. Destacam-se assim, pela intensidade, duração e extensão espacial e também pelos impactos socio-económicos, as seguintes ondas de calor:

  • junho de 1981 (dias 10 a 20)
  • julho de 1991 (dias 10 a 18)
  • agosto de 2003 (29 julho a 15 de agosto)
  • junho de 2005 (dias 30 maio a 11 de junho; e dias15 a 23)
  • julho de 2006 (dias 6 a 18)
  • julho de 2013 (dias 3 a 13)
  • junho de 2015 (dias 01 a 11)
  • junho de 2017 (dias 7 a 24)
  • agosto de 2018 (dias 1 a 6)
  • julho de 2020 (dias 4 a 13; dias 9 a 18)
  • agosto de 2021 (dias 10 a 17)
  • junho de 2022 (dias 06 a 17)

Ondas de calor e alterações climáticas

Quanto à relação que está a ser feita por vários utilizadores que estão a partilhar a publicação aqui em análise, de que as ondas de calor não são consequência das alterações climáticas, o climatologista Mário Marques explica que o fenómeno “não pode ser” visto como uma relação direta. Ao Observador, o especialista indica que as ondas de calor são, sim, “uma consequência de um padrão atmosférico, que é normal ocorrer no verão”.

Quanto se fala em alterações climáticas, explica Mário Marques, fala-se em “padrões atmosféricos”, que “devem ser analisados a médio e longo prazo” e não em “padrões de uma semana”, como é o caso dos fenómenos de ondas de calor.

Contudo, este especialista garante que as alterações climáticas são um fenómeno “real”. Mário Marques sublinha que a atmosfera “tem sido influenciada pela ação antrópica”. E que, nesse sentido, o que está a causar as alterações climáticas é precisamente essa ação do ser humano: “A nossa constante delapidação dos recursos naturais, a ocupação e devastação dos solos e florestas ou a queima de combustíveis fósseis” estão a alterar todo o comportamento atmosférico.

“Sem dúvida que o clima está a mudar”, aponta Mário Marques, e “sobretudo quando falamos de aquecimento global, este é mais sentido ao nível da média da temperatura mínima, que está a subir de forma assustadora”, diz.

Conclusão

É verdadeira a informação que consta na página do Diário de Notícias, de 1 de agosto de 1944, que circula nas redes sociais. Contudo, não é verdadeira a informação que circula, associada à notícia, de que nessa época foi registada uma onda de calor. O IPMA confirma que apenas o dia em questão (31 de julho desse ano) registou temperaturas mais elevadas do que o normal para aquele período.

E também é errado afirmar que o país atravessou uma onda de calor nessa altura, uma vez que é preciso existirem temperaturas mais altas do que a média durante seis dias consecutivos.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de factchecking com o Facebook.

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